❝—— anjo caído.❞
PASSADO
DO OUTRO LADO DOS MUROS DA CIDADE DE KATTEGAT, UMA brisa gélida pairava no ar, com suaves flocos de neve rodopiando e pendendo no chão pálido do território viking.
Aquele não era um bom dia para sair, pensou Vrocke, empoleirado no alto da grande montanha enevoada que cobria uma enorme extensão de terra do lugar, com as pernas cruzadas e um semblante austero. Dali, ele conseguia visualizar a agitação na pequena cidade comercial, ouvindo, ao longe, murmúrios e a balbúrdia dos mercadores, enquanto, logo abaixo de si, as ondas quebravam na costa, plácidas, em um gritante contraste com a efervescência de Kattegat.
O homem encarou as mãos lívidas e calejadas antes de olhar para o céu de tons duros de azul, soltando um suspiro, que transformou-se em uma fumaça gélida no ar, dissipando-se logo em seguida, como se nunca tivesse existido. Foi quando ele ouviu aquele som, que automaticamente o fez olhar para o horizonte, com os olhos áureos atentos.
Ela está de volta, pensou ele.
Vrocke se levantou, com o coração galopando fervorosamente em seu peito. As madeixas de seu cabelo eram como fumo prateado, do mais puro tom de branco, o que combinava com suas orbes douradas como as de um felino. A brisa que o atingiu fez suas mechas voarem no sentido do vento e ele semicerrou os olhos, piscando algumas vezes para espantar a neve que se acumulara nos cílios.
Tiamat surgiu em meio à paisagem, batendo as grandes asas cor creme e silvando, estremecendo o chão abaixo dos pés de Vrocke. A besta alada sobrevoou o mar, fazendo as ondas dançaram em volta de si e, então, mergulhou suas enormes garras na água.
Ela atracou um peixe grande, com escamas prateadas, e aligeirou na direção da costa, arremessando sua vítima na areia da praia antes de subir até a montanha.
O homem olhou para o alto, observando-a enquanto Tiamat empoleirou-se na parte mais elevada da montanha, encarando Vrocke com os olhos dourados tais quais os dele, que esboçou um pequeno sorriso antes de dar um passo na direção da fera.
Ela saltou do pico rochoso e, quando as patas cheias de garras pontudas e mortais alcançaram o chão, tudo pareceu tremer ao redor dos dois. Tiamat não se importou tanto com isso quanto o seu pai.
Ele caminhou lentamente até ela, analisando o dragão fêmea com cuidado. Faziam meses desde que ele a contemplara pela última vez e, não poucas vezes, Vrocke se via no alto da montanha, esperando pelo dia que sua filha voltaria.
E Tiamat tinha, em suma, voltado para casa.
Não havia qualquer machucado em suas escamas pálidas e ele ficou instantaneamente aliviado por isso.
Dragões eram seres milenares. A representação dessas criaturas normalmente os colocava como animais de grande porte, por vezes gigantes, reptilianos, alados, cuspidores de fogo e com poderes mágicos. Tiamat era criada como um dragão livre e, por conta disso, seu tamanho era descomunal, muitas vezes cobrindo vilarejos inteiros apenas com uma de suas asas. Dragões eram seres inteligentes, até mais inteligentes que homens pela concepção de Vrocke. Eles tinham afeição por seus amigos e fúria para com seus inimigos. Tiamat era fogo em carne e fogo significava poder.
Mas, embora Tiamat possuísse um poder terrível e devastador, ela não era imortal.
O dragão, provavelmente, já havia explorado continentes distantes, muito além do que Vrocke já havia visto durante sua vida inteira e, por queimar e devorar tudo que tivesse vontade, Tiamat era caçada por muitos e isso preocupava seu pai.
— Trouxe o jantar — murmurou Vrocke, enquanto a besta debruçava-se no chão coberto de neve, descansando.
Ele se aproximou dela e tocou suas escamas, sentindo a textura dura como um escudo de bronze na ponta de seus dedos.
Os dragões tinham corpos serpentinos longos, com pescoços e caudas proporcionalmente longas. Seus corpos tinham quatro membros: duas pernas traseiras curtas e duas grandes asas como antebraço, uma estrutura corporal similar a de um morcego. Os dentes e as garras dos dragões adultos eram tão longos e afiados quanto espadas.
Ele olhou para a filha, sentindo seu coração galopar dentro do peito.
Vrocke estava feliz, embora seu semblante neutro não fosse capaz de trair seus sentimentos internos.
Ele era duro como uma rocha e sempre carregava uma expressão tão fria e indiferente quanto o inverno em seu rosto. Era um homem corpulento, com pelo menos 1.90 de altura e uma postura altiva, como se nada no mundo fosse capaz de atingi-lo. Vrocke era considerado um homem cobiçado pelas mulheres de Kattegat e, não poucas vezes, recebia propostas de casamento e juras de amor eterno.
Mas ele não se importava muito com isso, no fim das contas, o que não significava que ele era um imaculado. Muito pelo contrário.
Ele apenas sabia do poder que tinha nas mãos. E nem se referia à Tiamat, a grande besta alada que seria capaz de tudo para protegê-lo, assim como ele à ela. Vrocke se referia à si mesmo, ao poder que corria em suas veias, ao fogo que aquecia seu coração e sua alma.
Ele era o fogo, em sua mais pura e perfeita forma.
Tiamat se inclinou para o toque, apreciando a companhia do homem, mas uma agitação abaixo da montanha chamou a atenção da besta alada, que ergueu-se e caminhou até a beirada, observando atentamente a movimentação com as orbes douradas.
O homem se aproximou com passos lentos, vislumbrando algumas pessoas na praia, amontoando-se ao redor do peixe que o dragão havia pescado.
Ele lançou um pequeno sorriso à Tiamat, que o olhou como se entendesse que aquilo era um agradecimento. Ele se aproximou dela e montou em suas costas, como já fizera tantas outras vezes.
Ela se jogou da beira do abismo, batendo as grandes asas antes de alcançar o chão. As madeixas prateadas de Vrocke voaram com a brisa e ele respirou fundo, sentindo a sensação de liberdade que o atingia sempre que montava no dragão e voava através do mar, explorando as terras nórdicas ao redor de Kattegat.
Livre. Ele se sentia livre.
— Vrocke — disse um homem esguio e calvo, conforme se aproximava. Era o seu pai, Floki, que sorria orgulhosamente para o filho montado na besta.
O platinado deslizou de cima do lendário ser místico e olhou para o pai, neutro.
— Pai — murmurou. — Tiamat trouxe o jantar.
Um baque em suas pernas quase o desequilibrou e ele olhou para baixo, vislumbrando a cabeleira escura de sua irmã mais nova, Hella.
— Somente um cego não o veria — ela riu. — Tiamat é exagerada em demasia.
O dragão grunhiu em resposta, com insatisfação.
— Não fale assim dela, pequena — foi Helga quem disse, a mãe de Vrocke e Hella.
— Decerto — Floki concordou. — Graças a ela, não precisarei sair para pescar novamente. Que os deuses e o senhor seu pai lhe permitam que fique por mais tempo dessa vez, Tiamat. Mesmo sendo indolente, ainda é de grande ajuda por aqui.
Sua família sempre insistira para que Vrocke mantesse sua filha em território viking, perto dele, o único capaz de controlá-la. Mas ele nunca gostou dessa ideia.
Tiamat era um dragão livre e, se dependesse dele, continuaria sendo.
— Preciso preparar a janta — Helga disse. — Pequena, ajude-me a levar o peixe para dentro.
— Eu levo.
A voz grave de Vrocke retumbou no ar.
Sua mãe concordou com a cabeça, oferecendo um sorriso gentil para ele, que agarrou o grande peixe morto, caminhou até o mar, limpando a areia em suas escamas, e, por fim, o carregou para dentro, com Floki, Hella e Helga logo atrás, deixando Tiamat deitada na praia.
Ele jogou o animal sobre a mesa e caminhou novamente para o lado de fora, juntamente com seu pai, deixando sua mãe e irmã dentro da casa.
Eles contemplaram as ondas dançando na vastidão do oceano, em silêncio. Vrocke sabia exatamente o que se passava na cabeça de Floki, sabia das lembranças que atordoavam sua mente. Sabia que ele estava se recordando daquele dia.
— Eu lembro de você, à deriva nas ondas impetuosas do oceano, embrulhado para mim como um benevolente presente dos deuses — ele fez um gesto vago na direção do mar e olhou para o filho, apreciando-o. — Lembro da sensação de tê-lo em meus braços, pequeno e indefeso como um filhote que precisa de sua mãe, encharcado com a água salgada do mar, faminto, pálido tal qual um defunto e desidratado. Você é forte desde que nascera... Não derramara uma lágrima sequer, embora fosse apenas um bebê tentando fugir do abraço sombrio da morte.
Ele já havia dito a mesma história mais vezes do que Vrocke poderia contar, mas o homem platinado nunca se enjoava de escutá-la. Era a única coisa mais próxima que ele sabia sobre sua origem.
— E aninhada ao seu lado, estava Tiamat. Não passava de um ovo duro tal qual uma rocha, sem qualquer centelha que fosse de vida — ele riu, incrédulo. Daquele jeito maluco que somente Floki sabia fazer. — Nem em meus sonhos mais loucos poderia imaginar que aquele pequeno ovo inofensivo poderia se tornar... isso.
Ele olhou para Tiamat, deitada na areia, por cima do ombro.
— Eu jurava por todos os deuses que os dragões haviam sido extintos há uma porção de anos, mas lá estava ela, empoleirada no seu ombro. Quando se pôs em pé, seu dragão dourado silvou, com fumaça clara saindo da boca e das narinas e as asas translúcidas abrindo-se e agitando o ar. Pela primeira vez em centenas de anos, a noite ganhou vida com a música dos dragões.
Fizera uma pausa, com o olhar distante como se estivesse revivendo àquele mesmo dia.
— Quando o fogo enfim morreu e o chão ficou suficientemente frio para poder ser atravessado, encontrei-lhe entre as cinzas, rodeado por toras enegrecidas, fagulhas de brasas incandescentes e ossos queimados. Estava nu, coberto de fuligem, com as pequenas roupas transformadas em cinzas... mas incólume. Quando olhei para você, meu pequeno garoto, caminhava até mim sobre as chamas como se elas lhe fossem vitais, poderoso como Loki. O mar me entregou o próprio fogo, a Dádiva dos Deuses, minha pequena bênção.
Floki se referia ao dia em que sua casa foi incendiada por saxões, que, de alguma maneira, souberam sobre a criança exótica que o homem havia resgatado do mar e também sobre as origens de Helga, que, por muitos, era considerada uma bruxa. Sua filha mais velha, Sigrid, morrera carbonizada nesse fastidioso dia.
— Sigrid morreu por minha causa naquela noite. Foi culpa minha, eu fui um imbecil que não conseguiu salvá-la. Eu não sou uma dádiva — respondeu Vrocke. — Sou apenas um forasteiro, um mero guerreiro dentre tantos outros.
Floki negou suavemente com a cabeça.
— Você é mais do que um guerreiro, pequeno dragão — disse. — Você não nasceu para isso, garoto. Ser um peão nesse joguinho de tronos, matando pessoas que não o fizeram mal algum.
— Pai...
— Você não terá nada aqui, Vrocke — falou Floki. — Não o criei com as melhores condições, você sabe disso, mas eu nunca...
— Eu vou continuar lutando, goste você ou não — Vrocke protestou. — Eu estou aqui com vocês agora. Faço o que faço por você, mamãe e por Hella. — ele olhou para o dragão. — Não me importo de ser um peão, contanto que isso o ajude.
— Vocês saqueiam pobres vilarejos, meu filho — Floki respondeu. — Roubam e matam pessoas que estão em piores condições que as nossas. Eles não são nossos inimigos, são o nosso povo. Nossos inimigos são os saxões.
— Eles são fracos, por isso os matamos — Vrocke titubeou. — E se você escolheu não lutar pelos deuses, isso é problema seu. — os olhos amarelos esquadrinharam o rosto do pescador. — Minha vida, minhas escolhas.
— Você está lutando guerras que não são suas — disse Floki. — Você está lutando por Haraldson.
— Sim, estou lutando por Haraldson, mas, pelo menos, eu estou diminuindo nossa maldita dívida — esbravejou o mais novo. — E se eu tiver que dilacerar um vilarejo de vikings inteiro para isso, eu o farei.
— Vrocke... — murmurou, o pai, em um lamento.
— Eu não sou um pacifista como você.
Vrocke sabia o porquê de seu pai estar abordando aquele assunto e por isso sua cólera começava a subir a cabeça.
Para alimentar e cuidar de uma criança anêmica, uma mulher grávida e um dragão filhote, depois de ter a casa incendiada, uma filha morta e os animais roubados por saxões e perder tudo, Floki se viu em uma situação desesperadora. O dragão ficou escondido até que conseguisse sobreviver sozinho, caçando e assando sua própria comida, então não passava de mais uma boca para alimentar.
Todas as suas necessidades obrigaram o homem a recorrer ao Earl Haraldson, que o emprestou uma generosa quantia de capital para que reconstruísse sua moradia e alimentasse seus filhos e esposa.
Mas agora, depois de anos, o empréstimo estava sendo cobrado e Floki, mesmo construindo seus barcos, ainda não havia juntado nem metade do que havia emprestado do lorde. E era aí que Vrocke entrava, servindo aos deuses como um guerreiro que matava em nome deles e roubando o quanto pudesse durante os saques para pagar a dívida.
Mas agora, o Earl estava cobrando cada vez mais, e o pior: com juros.
Pensando em uma catástrofe, o mais velho vinha insistindo para que Vrocke partisse com Hella e Tiamat para o mais longe possível, antes que Haraldson decidisse cobrar a dívida com a vida. Mas Vrocke era teimoso e sempre recusava os pedidos absurdos do pai.
— Você é como seu tio.
Floki balançou a cabeça.
— Todos ficaremos bem — Vrocke garantiu. — Tiamat está aqui.
O homem não gostava de usar seu dragão para suprir suas próprias ambições, por isso era raro que envolvesse a filha em suas batalhas.
Um dragão não é um escravo, dizia ele quando alguém o perguntava o motivo de sua privatização.
— Tiamat não é imortal, Vrocke.
— Ela é capaz de queimar essa cidade em segundos e reduzi-la a cinzas — a determinação na voz do filho fez Floki estremecer. — E se o Earl ousar ameaçar a minha família, ele é quem pagará o preço por isso.
Embora fosse difícil, não era impossível que Vrocke decidisse queimar Kattegat, ainda mais se fosse ameaçado.
— Não jogue palavras ao vento, garoto. Os deuses as escutam.
— Que fique claro, meu pai — ele olhou para Floki, com os olhos amarelos penetrantes. — Se Haraldson tocar em um fio de cabelo de qualquer um de vocês, eu não precisarei de Tiamat para dilacerá-lo.
— Essa é uma dívida que preciso pagar — disse o mais velho. — Eu sabia o que estava enfrentando quando decidi emprestar esse valor do earl.
— Estávamos famintos e dormindo na sarjeta — Vrocke aumentou alguns decibéis no tom de voz. — Você estava desesperado, o que mais poderia fazer?
— Você precisa ir! — exclamou Floki. — Você precisa sair daqui e levar a sua irmã. Precisa salvá-la e também a si mesmo. Chega de guerras, Vrocke!
— Eu não vou deixar vocês — Vrocke rebateu. — Eu não vou sair correndo com medo de Haraldson. Eu não tenho medo de nada, muito menos dele.
No outro segundo, Tiamat ergueu a cabeça em um súpeto, olhando para o céu atentamente, com os olhos áureos vidrados, como se tivesse percebido alguma movimentação. Já era fim de tarde e o céu estava limpo, pincelado com tons de laranja e amarelo.
Vrocke se virou e olhou para o dragão, confuso.
— O que se passa, Tiamat?
Ela olhou para ele e, logo em seguida, desviou sua atenção para algo atrás dos homens. O platinado seguiu sua linha de raciocínio e olhou para trás, arregalando os olhos à medida que compreendia a situação.
No horizonte, uma enorme sombra alada sobrevoava o mar do mesmo jeito que Tiamat havia feito. Suas escamas negras moviam-se conforme ele alcançava a margem em uma velocidade impressionante. Ele era quase do tamanho de Tiamat, provavelmente da mesma espécie que ela.
O animal pousou sobre a areia da praia, silvando para a filha de Vrocke, que levantava os folhos, sentindo-se ameaçada pela presença do outro dragão.
Um calafrio subiu pela espinha do homem, que esperava pelo pior.
A movimentação incomum fez com que Helga e Hella saíssem de casa estardalhadamente, dando gritos diante da cena.
— Voltem para dentro! — ordenou Floki. — Voltem agora e não saiam.
As mulheres acataram a ordem, fazendo o caminho de volta para a casa, atemorizadas.
— Tiamat! — Vrocke chamou. Ela se aproximou lentamente, rondando o pai em um gesto protetor.
Ela queria que o outro dragão entendesse que era ela quem mandava ali. Mas ele não se importou muito com isso, pois apenas se jogou na areia, exausto e soltando sons dolorosos.
— Está ferido? — Floki perguntou.
Vrocke deu um passo na direção do outro dragão, que o reprimiu com um grito que fez o chão estremecer e a areia rodopiar. Tiamat gritou de volta, sem se intimidar por nem um segundo.
— Não — disse o mais novo. — Ele protege algo.
— Algo? — o mais velho exalou, perplexo.
Vrocke não respondeu, pois estava ocupado demais analisando o dragão, com um turbilhão de pensamentos rondando sua mente.
Dragões são seres inteligentes, pensou ele.
— Eu não vou machucar você — disse, alto o suficiente para que o dragão o ouvisse com clareza. — E ela também não irá, eu garanto. Se eu puder ajudá-lo, farei isso se me aceitar.
O dragão não reagiu. Apenas o encarou, com o ar intimidador que faria qualquer um tremer dos pés a cabeça, mas Vrocke não era qualquer um, por isso insistiu:
— Me deixe te ajudar — ofereceu sua mão ao dragão, em sinal de paz. — Por favor, me deixe aliviar sua dor.
Num súpeto, o animal tombou na areia, exausto, permitindo que Vrocke vislumbrasse uma cabeleira platinada como a sua própria, repleta de tranças embutidas, enrolada na silhueta do dragão.
Ele se aproximou com passos cautelosos, esperando alguma reação negativa vinda da fera alada, o que não veio em nenhum momento. Tiamat se empertigara quando Vrocke finalmente pudera visualizar melhor do que se tratava.
Tinha uma mulher.
Seu semblante imperturbável, descansando na escuridão sombria do perecimento, e a pele pálida tal qual de um defunto eram um enorme contraste com a sua atual condição. Estava vestida como um lorde, com um grande manto vermelho sobressaindo a roupa e, cravada em seu coração, estava uma adaga.
Ele arregalou os olhos, atônito, e não pensou duas vezes antes de se aproximar. Ouvindo fracos grunhidos de protesto vindos do dragão, ele a tomou nos braços. Para ele, não era tão pesada.
Tinha sangue seco por todo o tecido de sua roupa, e um filete escorria de seu nariz e boca.
Ele correu até a casa, segurando firmemente o corpo frio, com Floki em seu encalço. Abriu a porta com um chute e entrou avassaladoramente, rumando até o quarto para depositá-la em sua própria cama.
Helga, Hella e seu pai apareceram logo em seguida, confusos.
— O que há, Vrocke? — perguntou Helga. — Quem é essa mulher?
Ele encarou a mãe, desorientado.
— Eu não sei — respondeu vagamente. — Mas preciso que a salve.
O dragão não era um tolo e, com certeza, trouxera a mulher com a intenção de salvá-la. Vrocke não sabia o que a besta faria se percebesse que não havia obtido ajuda ali.
A mulher loira engoliu seco.
— Vrocke...
— Por favor, salve essa mulher — implorou. — Eu sei que é capaz disso. Você não precisa se esconder de nós, somos sua família.
Helga não era bruxa nenhuma, mas sim uma maegi. Uma mulher que, segundo as lendas nórdicas, dormia com demônios e praticava a mais negra das feitiçarias, uma coisa vil, maldosa e sem alma, que vinha até os homens no escuro da noite e sugava a vida e a força de seus corpos.
Sou uma curandeira, dizia Helga, em resposta às ofensas.
Sua mãe foi esposa dos deuses antes dela e ensinou-lhe todas as canções e feitiços que mais agradam ao Pai de Todos, e como fazer os fumos sagrados e unguentos das folhas, raízes e bagas. Quando era criança, fora numa caravana a Aaarhus, para estudar com os magos de lá. Chegavam navios de muitas terras, e ela ficara durante muito tempo estudando os costumes de curar de povos distantes. Uma cantora de Lua de Jogos, Nhai, deu-lhe de presente as suas canções de parto, uma mulher do povo de Kattegat ensinou-lhe as magias do capim, dos grãos e dos cavalos, e um ancião abriu um cadáver e mostrou-lhe todos os segredos que se escondem sob a pele.
Agora, mais velha, Helga dedicara seu tempo exclusivamente à sua família, deixando de lado suas habilidades.
Ela pareceu pensar por alguns instantes, cogitando a possibilidade de arrancar a mulher dos braços da morte, antes de olhar para Vrocke, decidida.
— É preciso sair. Quando eu começar a cantar, ninguém deve entrar nesta casa. A canção acordará poderes antigos e escuros. Os mortos dançarão aqui esta noite. Nenhum vivente deve vê-los.
Vrocke inclinou a cabeça, impotente.
— Ninguém entrará.
Um calafrio subiu pela espinha do homem quando ela o olhou. Estava pálida e fria. O homem se limitou a concordar com a cabeça, sutilmente empurrando Hella para fora de casa enquanto seu pai vinha logo atrás.
— Floki — Helga chamou. — Traga-me uma das escravas.
O Viking concordou com a cabeça, infeliz. Quando tudo estava feito, Vrocke sentou-se na areia e passou um tempo observando a movimentação na casa. As janelas brilhavam com a luz vinda dos braseiros que tinha no interior. Através da sedareia que as cobria, Vrocke viu sangue jorrar e depois sombras que se moviam.
Helga dançava, e não estava só.
Ele viu um medo nu no rosto de sua irmã mais nova, que recuou para se aninhar nos braços do pai, que olhava a cena com os olhos sarapintados de um profundo negro, como a maioria dos vikings, e com a larga testa de quem vai perdendo cabelo salpicada de suor.
— O que fez, pequeno louco? — a voz de Floki saira vacilante.
— Tinha de salvá-la.
— Podíamos tê-la devolvido ao dragão — respondeu. — Está morta, meu menino. Com a morte não se brinca.
A mulher uivava dentro da casa como se não tivesse nada de humano.
— Sou mesmo seu menino? — Vrocke perguntou.
— Sabe que sim, que os deuses nos salvem a todos.
— Então me ajude agora.
O viking fez uma careta.
— Bem gostaria de saber como.
— Acolhemos-a, meu pai. — disse o mais novo. — À ela e ao dragão que a trouxera.
— Isto não pode ser — trovejou Floki.
Vrocke virou a cabeça para ele, determinado.
— Isto será.
O platinado olhou para a residência. Conseguia vislumbrar sombras de pessoas e animais, algumas possuindo formas desconhecidas para ele, dançando com Helga através da iluminação dos archotes enquanto uma cantiga sôfrega e ululante vinda de lá alcançava seus ouvidos. Vira a sombra de um grande lobo, e outra que era como um homem envolvido em chamas.
Vrocke estava certo. Aquele não era um bom dia para sair.
🐉
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.