Aquele beijo me lembrou bastante do Kameel. Foi como beijar ele de novo, coisa que chegava a ser estranha. Há tempos eu tento não focar meus pensamentos no Kame porque tenho medo das lembranças ruins que acompanham nossos bons momentos. Entretanto, lá estava eu, sentindo aquele calor familiar e único que me fazia sentir aconchegante.
Encerrei o beijo ao perceber que loucura estava fazendo. Afinal, eu estava beijando o Malek. O detestável Malek. Só pode ser obra dessa maldita Conexão. Essa mesma coisa fez o Tanay acabar me beijando. Comecei a ficar vermelha a medida que afastava nossos rostos e o encarava.
— Tá bom, essa foi a cena mais estranha que eu já vi na minha vida — declarou Utae, se virando para contemplar a paisagem catastrófica ao nosso redor.
— E que você nunca mais vai ver — digo, me levantando.
Limpei a boca, decidida a mostrar que não havia gostado nem um pouco daquele beijo — e não havia! Tá, talvez um pouquinho. Ah, céus, o que você tá fazendo consigo mesma, Kary? Semanas atrás você queria beijar o Imma! Daqui a pouco vai querer o Utae também, eu sentia vergonha de mim naquele momento. E teve o Tanay, o Kameel... Onde você vai parar?
Estava tão perdida em meus pensamentos que não percebi Malek se levantando do chão e tocando a minha cintura. Virei de imediato e neguei com a cabeça, colocando uma expressão séria no rosto.
— Não me toca.
Chegava a ser triste ver o quão sujo e machucado ele estava, tudo por minha causa. Ele podia ter pegado a benção pra ele, mas não, decidiu me salvar pela milésima vez no jogo. Não havia mais sujeira ou machucado algum no meu corpo enquanto ele se encontrava deplorável. É claro que eu deveria trata-lo melhor do que agora, porém, não queria que ele pensasse que eu caía de amores por ele agora. Não alimentaria seu ego.
Eu 1: você fez a mesma coisa com Kameel.
Eu 2: SHHHHHH! Consciência, não me perturba agora.
Eu 1: se você começar a tratar o Malek mal, ele vai voltar com as implicâncias e nada de beijinhos.
Eu 2: calada, sua consciência pervertida.
Eu 1: vocês dois estão conectados pela Conexão. Um pode puxar a linha do outro e matar o parceiro. Quer mesmo arriscar tudo agora?
Massageei as têmporas. Discutir comigo mesma não estava me levando a lugar algum. Balancei levemente a cabeça e decidi falar com Utae. Não estava preparada ainda para trocar algumas palavras com Malek.
— E agora? Por que o cenário ainda não mudou? — questionei ao líder.
— Porque a terra possivelmente não consegue se sobrepor ao fogo — raciocinou. — Se sairmos desse vale de lava acho que conseguimos encontrar o caminho para próxima pedra.
Decidi que a melhor coisa no momento era abrir o relógio e o fiz, ampliando o mapa e pedindo para que me mostrasse a localização da próxima pedra. Direção oeste. Estávamos na parte leste do mapa. Teríamos que atravessar todo um território para alcançarmos a última pedra.
Olhei pra trás vendo que o Malek não parecia muito bem. Algumas partes de si ainda sangravam. Mesmo não querendo papear muito com ele, acabo dizendo:
— Puxe a linha.
Fechei os olhos, sentindo aquele puxão na linha que nos ligava. Era o mínimo que eu poderia fazer por ele. Quase havia sido eliminada do jogo. Fiquei um pouco mais aliviada quando seus machucados melhoraram, fechando-se numa cicatriz.
Depois de todo aquele conflito com a quentura e a lava, deu pra perceber que assim que a pedra passou a fazer parte do meu colar, os gêiseres desapareceram e o chão passou a ficar numa temperatura normal. O céu, embora ainda negro, não parecia dar sinais de derramar outra saraivada de fogo.
— Vamos descansar aqui por umas duas noites — determinou Utae, sentando-se no chão, claramente exausto.
Me abaixei um pouco para observar que o chão havia assumido uma diferente característica. Não era mais uma grama fumegante. A mesma estava sendo substituída por uma terra intensamente marrom. Toquei e a senti úmida. Finalmente o reino da terra estava tomando conta do fogo. Bastou só a temperatura diminuir.
Também acabei me sentando no chão. Faltava só mais uma pedra e eu seria a última Elemental a existir. Até onde eu sabia, no jogo poderia ter no máximo três. Xander, Odd e futuramente eu. Por um segundo imaginei a guerra que aconteceria entre nós. Já estava determinado que Xander era meu inimigo, mas Odd... ele poderia escolher qual lado iria preferir, porém, já sabia que ele iria preferir o Xander à mim. Minha equipe havia matado sua namorada e a sua companheira, Vibeke.
Malek foi o último a se sentar, entretanto, logo ele acabou se deitando, encarando o negro céu. Pela claridade, eu julgava que estávamos ou no amanhecer ou no entardecer. De qualquer forma, eu percebia o tanto que Utae e Malek estavam cansados.
— Descansem vocês dois, eu vigio a área — digo.
Utae nem assente, apenas se deita e fecha os olhos. Quanto a Malek, o mesmo já estava com os olhos fechados quando eu disse. Sono era uma coisa que não habitava meu corpo no momento, até porque, não conseguia tirar da cabeça que o detestável Malek havia me salvado da morte.️
❄
Aquela claridade indicava o entardecer e a escuridão só aumentou ao nosso redor à medida que a noite chegava sorrateiramente. Meu olhar se perdia ao longe, distraída, procurando algum inimigo à espreita. Em determinado tempo, faço uma fogueira, não pra esquentar, apenas pra iluminar.
Havia decidido me sentar um pouco mais afastada deles para que tivessem mais espaço para descansar. Eu era a única sortuda que não estava me sentindo extremamente cansada. Passei as mãos pelo rosto. Quanto mais eu tentava desviar os pensamentos do Malek, mais eles retornavam para me assombrar. Maldito, devia ter me deixado morrer. Seria uma tortura mais rápida.
— Já perdeu a vergonha de falar comigo? — Levo um sobressalto ao ouvir a voz de Malek.
Ele se senta ao meu lado na terra. Apoio minhas costas no tronco de uma árvore que crescera por ali. Aquele campo queimado já não existia mais. Tudo havia sido transformado numa imensa floresta.
— O que você quer, Malek? — questiono com indiferença.
— Ei, ei, ei, isso é jeito de falar com quem salvou sua vida? — Uma mistura de deboche e divertimento se juntava num sorriso em seu rosto.
Revirei os olhos, mas acabei forçando um sorriso.
— O que você quer, meu herói? — forcei uma voz meiga e até corei minhas bochechas.
Ele alargou o sorriso.
— Então, qual foi a do beijo?
Fiz desaparecer toda minha atuação.
— Eu estava agradecida, tá legal? Mas não quer dizer que vá acontecer de novo.
— Será? Vou começar a deixar você felizinha mais vezes pra ver o que acontece.
Deixei uma expressão séria no rosto.
— Se quer tanto fazer esse experimento é porque deve ter gostado.
— Gostei.
A sua declaração subida deu um grande impacto no meu rosto. Enrubesci de imediato. Uma tosse escapou da minha garganta — até a saliva de mal jeito eu engoli no desespero.
— Como é?
— Você pode ser irritante as vezes, mas não deixa de ser bonitinha.
— Você tem um péssimo jeito pra conquistar mulheres, francamente. — Sou obrigada a revirar os olhos mais uma vez.
— Deixar de te tratar mal foi um bom começo, não?
— E deixar de encher meu saco que é bom, nada.
Malek achou graça.
— Qual é, não vai mesmo me dar uma chance?
— Daria se tirasse esse sorriso idiota do rosto.
Empurrei seu ombro levemente.
— O que foi que disse? — Fiquei ainda mais vermelha quando percebi o que havia dito. Seu sorriso sacana não estava ajudando em nada a diminuir os batimentos cardíacos.
Fui obrigada a tapar o rosto com as mãos de tanta vergonha de mim mesma que estava sentindo.
— Ei, olha pra mim — pediu ele.
Devagar fui tirando as mãos do rosto e percebi que finalmente seu sorriso idiota havia desaparecido. Aliviada por isso, levei outro sobressalto quando rapidamente me roubou um selinho. Meu coração voltou a martelar no peito. Rosnei, passando as mãos nas bochechas ainda quentes.
— Você não sabe o quanto eu te odeio — resmunguei.
Virei o rosto para evitar contato visual.
— Depois do beijo, não sei nem mais se você de fato me odeia.
Ao ouvir sua voz tão perto de mim, acabo virando para encará-lo e subitamente descubro que ele está mais próximo do que eu gostaria. As batidas do meu coração ficam mais aceleradas e eu fecho os olhos, esperando aquilo que eu já sabia que ele roubaria de mim: um beijo.
Era estranho aceitar de bom grado algo tão íntimo vindo dele, mas... num momento de tanta tensão em que podemos perder pessoas especiais quando menos esperamos, talvez relaxar um pouco ao beijar Malek talvez não seja assim tão ruim.
Sua mão tocou minha bochecha enquanto nossos lábios faziam todo resto. A sensação de conforto; familiaridade, retornou a mim. Não sabia se era efeito da pedra Elemental do fogo ou uma inconsciente lembrança do Kameel. Qualquer que tenha sido a causa, teve muitos bons efeitos e por alguns segundos, eu não me sentia mais dentro de um jogo tenso e competitivo em que tínhamos que matar uns aos outros. Não. Agora eram dois adolescentes num canto mais reservado, trocando alguns beijinhos.
— Sério que a partir de agora vai ser eu virar as costas pra vocês começarem a se beijar? — a voz de Utae interrompeu nosso beijo.
Meu coração continuou acelerado. Ah céus, daqui a pouco acabaria tendo um infarto — e entraria em combustão por causa das minhas bochechas avermelhadas.
— E será que a partir de agora você vai sempre nos interromper com seu ataquezinho de ciúmes? — rebati, tentando não demonstrar timidez.
Utae revirou os olhos e nos deu as costas.
— Tá, tá, se peguem aí.
Levantei de onde eu estava sentada e o abracei por trás.
— Meu irmãozinho tá tão ciumento — digo numa voz como se estivesse falando com um bebê.
— Me solta Karyyyy — reclamou.
Soltei uma risadinha para provoca-lo e olhei pra trás pra que Malek pudesse vir implicar com ele também. Entretanto, franzi o cenho ao perceber que o filho de Héstia já não estava mais ali. Tudo bem, ele deve ter ido se esconder em algum lugar para assustar Utae, tentei me confortar mentalmente.
— Vai, volta pro seu novo namoradinho — ouvi ele resmungar e não consegui conter outra risada.
Kary..., a voz dele surgiu na minha cabeça, porém, incrivelmente parecia estar sofrendo alguma interferência. Alguma coisa me pegou enquanto estavam distraídos... fica de olho no sinal.
Eu: sinal? Que sinal? Do que diabos você tá falando, Malek? O que aconteceu? — mais e mais perguntas queriam fluir da minha mente.
Ele: sinal... olha...
As interferências voltaram e eu em vão tentei chama-lo de volta. Aquilo era mesmo verdade? Temia que fosse.
— Kary? — Utae chamou por mim.
Balancei levemente a cabeça, o soltando. Empurrei seu ombro para o lado para que me encarasse. A expressão divertida desaparecera do meu rosto, sendo substituída por uma séria.
— Acho que alguém pegou o Malek.
Utae arqueou uma sobrancelha.
— Tá falando mesmo sério? — desconfiança aparecia em todas as suas feições.
— Claro que eu tô! — soei exasperada. — Céus, por que mentiria sobre algo tão sério?
— Oras, segundos atrás você tava me zoando — disse em protesto.
— Mas acabou a brincadeira tá legal? — digo como se fosse algo óbvio.
— O que é? Agora vai ficar irritadinha porque ele sumiu? — ele acabou ficando irritado. — Um dia atrás você não dava nada por ele. Agora tá toda preocupadinha porque beijou ele? Porque ele salvou você?
— Utae, desde quando você ficou tão babaca? — vociferei.
— Na mesma época que você ficou idiota.
Bufei. Aquela discussão estava passando dos limites.
— Tá, eu encontro o Malek sozinha. Não preciso da sua ajuda de *****. Por que também não vai ir lá atrás da sua namoradinha, hein? Eu desaparecida por aí e você ******* pra mim, agarrando ela!
Fogo brincou na ponta dos meus dedos. Então essa é a sensação de estar esquentada? Que seja, uma enorme vontade de transformá-lo em carvão preencheu meu coração. Kary, pelos deuses, fique calma. Lembra do que aconteceu com Nerea? Perder alguém especial pra esse tipo de coisa não vale a pena, tentei me controlar mentalmente.
— Você bateu na minha irmã e agora tá tentando se fazer de vítima?
— Ah, quer saber? Vá se *****, Utae! — gritei, cerrando os punhos. — Vou perder meu tempo com algo útil agora.
E lhe dei as costas, decidida a fazer as coisas sozinhas a partir de agora. Era a nossa primeira briga. Nunca havíamos discutido dessa maneira e por dentro, a vontade de mata-lo foi preenchida por culpa e saudade. Será que a equipe acabou sendo repartida dessa maneira cruel? Me recusei a olhar pra trás e descobrir.
Conseguiu ver o sinal que eu mandei?, questionou Malek mentalmente a mim. Droga. Ainda por cima havia deixado de prestar atenção na única maneira que havia de saber pra onde Malek tinha sido levado. Passei as mãos no rosto, engolindo a vontade de chorar. Tudo parecia estar dando errado.
Então, enquanto caminhava pela floresta, ao pisar numa determinada área, pó negro e branco subiu, me fazendo tossir pela quantidade. Algo tinha sido carbonizado. Olhando bem, descobrir ser uma plantinha que estava crescendo. Olhei pra frente, vendo que uma espécie de rastro negro entrava em contraste com a terra marrom.
Aquele devia ser o sinal do Malek. Tinha que ser. Respirei fundo e decidi segui-lo. Porque pelo menos com ele, eu não poderia falhar, afinal, era a única pessoa que me restava agora.
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