O vento enregelante batia com força contra seu corpo esguio, mas a plumagem acinzentada lhe protegia, mantendo-se aquecida. Bateu as asas, alçando-se ainda mais em direção a camada cinzenta do céu, de onde os flocos eram cuspidos. Estava acima das montanhas, que, donde estava, pareciam pequenos pináculos branqueados, o tamanho a diminuir ainda mais conforme afastava-se do solo humano. Até a construção das pessoas da terra, que ficava no pináculo maior, tinha um aspecto insignificante ali.
Quando atravessou a camada cinzenta, passando por ela sem dificuldade alguma, pôde ver o azul-claro da alvorada, com um misto de dourado-baço, criado pela fulgência do sol matutino, que pintava tudo o que tocava com seu rebrilhar intenso.
Bateu as asas, sentindo-as ficarem mais leves graças ao degelo. Seu corpo voejou no azul lusco-fusco, parecendo dançar enquanto variava entre planar e adejar.
Então desceu, fechando as asas.
O vento cortante pareceu tentar aumentar a pressão contra sua figura esguia, mas não a deteve; atravessou, novamente, o cinza abaixo de si, como que atravessando uma fumaça. Seu bico curvado parecia uma adaga cortando uma cortina. Apesar de ainda não ver, sabia onde estava sua presa.
Abriu as garras.
A pequena ave, uma bela, gorducha, e (acima de tudo) gorducha coruja, deu um guincho ao ser atingida pelo seu bico. Penas e pingos rubros saltaram no ar. O voo da presa foi interrompida, com esta sendo empurrada para baixo. Fechou suas garras nela, rasgando a camada de plumagem e pele. O ar rugia contra seus corpos em queda, como uma predador irritado.
O gosto de sangue adentrou no bico, que cavava na carne da coruja, a qual fazia movimentos débeis para se libertar, sem sucesso algum. Não importava, suas costas estavam perfuradas; acabou por ter um naco de carne arrancado, fazendo um fio rosado alongar-se entre o corpinho ferido da coruja e o seu bico. Mais plumas saltavam à vista. O animal estava paralisado.
Vendo como aquilo acabaria, soltou suas garras do corpinho da coruja; bateu as asas, pairando no ar, enquanto o corpo da gorducha presa diminuía ao cair, sumindo entre a relva verde-escura, coberta por branco.
Apesar da distância, ainda via bem o local onde sua comida havia caído. Desceu, dando círculos no ar. Tinha de se apressar; os outros animais da floresta logo viriam a comer sua presa. Sabia que a competição pela comida estava ficando mais acirrada: os animais do chão e os animais do céus estavam mais famintos desde que os ventos ficaram mais gelados e o branco caía do céu com mais constância.
Quando abriu os olhos, Alayne achou ainda sentir o gosto de sangue, mas logo percebeu que não tinha nada em sua boca seca. O frio havia dissipado-se, dando lugar ao calor aconchegante — não de penas, mas de uma pelugem perfumada de urso. A fome ainda persistia, porém.
Fechou e abriu os olhos, piscando-os ruidosamente ao sentir as luzes douradas do sol, perpassando as cortinas do aposento, lhe machucando a sua vista. A lareira estava apagada, sobrando apenas cinzas.
Afastou o cobertor, sentindo que seu braço estava molenga. Olhou ao redor, vendo Randa dormir ao seu lado, ressonando levemente. Mya estava numa esteira no chão, roncando de forma mais alta e deselegante.
Suspirando, Alayne tirou as pernas da cama, sentindo o chão frio de pedra. Empertigou-se para fora do colchão de plumas. Andou até a janela, afastando as cortinas brancas, olhando para o mundo de fora.
Apesar da nublagem, o céu tinha uma abertura que permitia a entrada do sol para o mundo, lançando seus raios d’ouro para aquecer a terra com seu resplendor.
Alayne respirou fundo, sentindo que seu belo e sangrento sonho era real em algum nível: o vento, o bater das asas, o cansaço e a adrenalina; o sangue e a fome que faziam-na jogar-se do céu, mirando e abatendo a sua presa. Ainda sentia-se leve e voraz. Fora um sonho sombrio e belo.
Balançou a cabeça. Não era o momento de pensar em sonhos estranhos causados pelo vinho. Suspirou novamente, tentando lembrar-se da noite anterior. Era uma turbulência de informações: Cersei e Margaery, presas; a Fé Militante rearmada; a Campina, saqueada; Jaime Lannister, desaparecido; Sor Loras, (provavelmente) morto na batalha para tomar Pedra do Dragão.
Passada a euforia da bebida da noite passada, Alayne agora podia sopesar melhor as consequências do que ocorria nos Sete Reinos; a desordem, as divisões, a descentralização do poder…
Como tudo chegará a isso? Quando foi que os Sete Reinos viraram uma bagunça?
(Quando meu pai morreu, uma voz murmurou no fundo de sua mente.)
Nada fazia sentido.
Agora percebia o solo instável em que estava pisando (bem, mais instável do que ela imaginava que era). Para sua vergonha, o dourado de Arbor havia embotado sua percepção, fazendo-a rir como uma menininha.
Tivera medo do que Randa e Mya poderiam pensar a respeito de suas risadas; mas, para sua sorte (e talvez pelas outras duas também estarem embriagadas), conseguiu recompor-se e botar uma máscara mais neutra quando Myranda lhe contara sobre a atual questão do Norte.
— Stannis Baratheon marcha contra Winterfell — Randa contava-lhe, por cima da taça de vinho. — Saiu da Muralha há tempos, de certo já deve ter chegado defronte as muralhas de Winterfell.
Alayne assentira, calma, apesar das implicações de que Jon, o meio-irmão de Sansa, estava com o dedo nas ações de Stannis a forçara a segurar o sorriso. (Apesar da bebida, conseguiu fazê-lo.)
Randa deu um leve franzir de cenho.
— Ouvi que eles já lutaram e Stannis veio a morrer após a batalha — Mya comentou.
Randa a olhou de soslaio.
— Bem pode ter ocorrido. — Deu de ombros. Voltou a relancear Alayne. — Ramsay está casado agora. Casou-se recentemente.
Alayne assentiu. Estava bem a par disso, pois seu pai a avisou de que ouviria tais notícias:
— A esposa não é nenhuma Arya Stark, como você ouvirá lhe dizerem. Ela é uma puta qualquer, das mais fracas, diga-se de passagem, que eu dei a coroa para passar como a filha morta de Ned Stark e casá-la com o bastardo doentio de Bolton. Ela é nortenha e tem aparência e idade parecida a de Arya.
Quando Alayne lhe indagara como poderia ter certeza de que uma prostituta, mesmo que nem treinada, saberia responder às perguntas acerca da vida de Arya em Winterfell, seu pai apenas sorrira:
— Acredite, sei bem como são as minhas mercadorias; todas tem o seu potencial, mesmo as mais insossas. Está chorava muito, e teve de aprender muito com a base no chicote até que parasse de chorar e se urinar na cama; mas nunca deu muita resistência de todo o modo.
Apesar de não conhecer a prostituta, Alayne sentiu uma pontada de piedade sobre ela: além dos maus tratos infligidos por Lorde Baelish, conhecia o bastante das horríveis histórias dos Bolton e seu Forte do Pacote para saber que eles eram um verdadeiro conto de horror.
São apenas histórias, disse a si mesma, embora soubesse que boa parte dos Bolton não era conhecida por sua benevolência: eles foram inimigos dos Starks por eras, e Roose Bolton traíra e matara os últimos Starks no Casamento Vermelho.
Ela vira o atual Lorde do Forte do Pavor uma vez, no Salão de Winterfell: um homem pálido, como uma cara que mais parecia uma mortalha; olhos cinzentos e sujos, pálidos como a pele de um animal moribundo e adoentado, dando desconforto ao olhar; um tenor baixo que parecia murmurar distante. A imagem dele era mais enregelante do que a imagem dos próprios Outros.
Havia trevas e sangue no nome Bolton, fosse nas lendas ou na vida real.
Não importava; caso Stannis não viesse a finalizá-los, quando o exército do Vale subisse rumo a Winterfell, os Bolton estariam finalizados. Alayne teria de não pensar neles até lá, e fazer-se de desentendida para sua querida amiga Randa.
— Soube que ele casou-se com a filha de Lorde Stark, certo? O falecido, no caso.
Myranda não gostou de ouvir aquilo pelo que Alayne pode perceber — ou talvez estivessem ambas confusas pela bebida.
— Sim, ele casou-se. — Myranda não falou mais nada. Após perceber que Alayne nada tinha a dizer, ela voltou a falar: — Não vai perguntar nada?
Alayne deu de ombros, ainda meio sorridente pelo vinho. Estava tão alegre!
— Arya. O nome é Arya Stark.
Alayne assentiu, após bebericar um pouco do vinho. A taça estava acabando, para sua infelicidade.
— Ela é a irmã da que sumiu não? A Sansa Stark.
Randa aquiesceu, comprimindo levemente os lábios. Devia estar irritada pelo fato da amiga não estar tão disposta a mexericar.
— Ela mesma… Casou-se em Winterfell, aquela ruína torrada. Nem para os Bolton terem um bom gosto para saber onde realizar a cerimônia.
Ela estava bem treinada para não se abalar aos insultos a respeito de sua sede ancestral. Além do mais, Theon queimará o castelo, então podia-se dizer que Randa estava certa ao ralhar as escolhas dos Bolton para realizar a cerimônia — era uma ótima ideia para mostrar que agora eram os regentes do Norte; mas péssima ao se considerar a guerra de Stannis Baratheon. Era desesperador e insensato, para dizer o mínimo.
Myranda mostrara-se irritada com o simples gesto de menear a cabeça da bastarda do regente.
No fim, Alayne acabara por adormecer e agora nem lembrava-se se chegaram a falar algo mais.
Sentindo a lufada gelada do ar do mundo lá fora, fechou os olhos, saboreando o tocar enregelante em sua pele. Ficou um pouco mais relaxada. Abriu as pestanas novamente, vendo o pátio lá fora, vendo os homens treinando suas espadas e golpes, os escudeiros levando as armas e peças de armaduras para seus chefes; alguns ainda giravam barris cheios de areia, para lavar cota de malha; outros coziam couro, para que os participantes do torneio pudessem ter o melhor material possível para novo dia da disputa. A neve caía com mais pessoas nesse dia, cobrindo tudo e todos com pontos brancos que se apinhavam e formavam coberturas brancas.
Sabendo que precisava ir até seus aposentos, preparar-se para o Torneio e para Lorde Robin. Após isso, procuraria seu pai, para saber o que mais precisava — e avisá-lo para ficar de olho em Oswell, caso ainda não estivesse a par de tudo (embora duvidasse que Petyr já não o soubesse).
Ao invés de chamar uma serva, Alayne apenas amarrou seu vestido, mesmo que com certas dificuldade nos laços das costas, saiu em direção aos seus próprios aposentos, dando passos acelerados.
Quando chegou no local, fechou a porta e acordou a idosa Dorcas, ordenando-lhe que a ajudasse a se vestir.
Decidiu por um vestido mais simples, de lã marrom e renda preta floral, com a bainha punicea; o corte da roupa era um tanto antiquado, mas não viu problema nisso. Resolveu usar uma simples corrente de prata em volta do pescoço pálido. Ao invés de um manto, preferiu por uma estola de raposa, de pelo bem castanho-avermelhado, para proteger-se do frio.
Uma roupa boa o bastante para a bastarda do Lorde Regente; bem mais rica do que a maioria das outras bastardas, mas nada muito aparatosa.
Por precaução, colocou também um tecido um tanto transparente e branco para cobrir o cabelo. Cobriu bem o topo, para ninguém notar-lhe caso as raízes estivessem avermelhadas.
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O orgulho de Sor Harrold poderia estar ferido, mas a chama de sua fornalha interna persistia em queimar. Precisava de Alayne. Precisa cheirar os cabelos dela, acariciar suas bochechas, beijar-lhe os lábios; tinha de tocar nas pontas rosadas de seus mamilos e adentrar a fenda que havia em suas pernas. (ele tinha uma particular imaginação dessa região — poucos pelos, bem rosada e pequena. Até imaginava como seu membro viril ficaria deveras rubro ao dar o que uma bastarda-donzela como Alayne precisava, tal qual uma grande espada.)
Apesar de sentir-se humilhado pela sua derrota contra o Rato Louco, Harry foi bem bonzinho ao perdoar Alayne por dar a sua liga para o oponente de Harrold; seria bonzinho com ela… desta vez.
E ter sido derrubado de sua montaria teve seus prêmios: a atenção da filha de Petyr. Ah, como ele aproveitara cada toque suave da mão dela (era bem macia, tipo seda); o olhar azul profundo que o lembrava de um céu límpido de dia de verão; os dentes perfeitos e retos, feitos de porcelana, escondidos em lábios rosados, pequenos e carnudos e convidativos; as maçãs do rosto, bem altas e ovaladas, vermelhas de paixão… Ah, e as ancas, perfeitas para ter partos tranquilos e rápidos, sem estragar nada no corpo? Ou, então, a cintura fina onde Harrold poderia botar a mão e encaixar perfeitamente? Aqueles pequenos seios empinados…
Respirou fundo. Tinha de se controlar, ou Alayne acabaria por afastar-se novamente; apesar de bastarda, parecia menos fogosa do que a maioria — algo estranho, afinal, bastardos são seres devassos, tal qual os Dorneses (embora estes fossem mais exóticos, Harry deduzia).
Bom, tinha de estar com boa pompa para a sua amada. Usaria as cores Arryn, não Hardyng, dessa vez. Um bom gibão azul-celeste, com cortes que mostravam o tecido branco-prateado; um chapéu azul-escuro com uma pena de prata; calções azul-escuro; um pingente em formato de falcão, feito de prata polida, estava engastado no peito de seu casaco azul-claro, com vinhas de ouro, debruado com arminho. Nos ombros, uma elegante corrente de prata com safiras que combinavam com seus olhos.
Que mais faltava? Ah, sim! Os sapatos! Tinha um novo par de sapatos vermelhos, que vão combinar com as meias largas que cobrem-lhe as pernas.
Olhou-se no espelho de bronze polido. Perfeito. Estava perfeito, para variar.
Sua roupa continha muito elação para um Hardyng — mas era perfeita para um Arryn.
Logo, Harry sabia, o nome Hardyng ficaria no esquecimento.
Agora, estava belamente rico para sua prometida. Logo teria alguns presentes para ela.
— Quanta elação — comentou sua tia ao vê-lo.
Harry virou-se para observá-la, surpreso por ela entrar sem avisar. Lady Anya usava um simples traje verde com renda em formato de espirais, junto de uma capa verde-musgo presa por um pingente de azeviche preto em formato de roda. O cabelo estava enrolado para cima, coberto por fios de pérolas que pareciam estrelas em um céu que branco-acinzentado.
— Para um homem com orgulho ferido — disse Lady Anya — parece de muito bom humor.
Harry deu um sorriso afável, enquanto sentia-se ficar corado.
— Tudo isto é por Alayne? — indagou a mulher mais velha, sorrindo.
— Ela me deu alguma alegria após minha derrota.
Sua tia levantou uma sobrancelha castanha, formando um arco quase perfeito.
— Foi o escolhido dela quem lhe derrubou — pontificou-lhe.
O rapaz fez pouco caso da situação, gesticulando a mão, abanando o ar.
— Ela apenas o fez para provocar-me.
— E isso não o desagrada?
Franziu o cenho, refletindo as palavras da tia. Devia estar irritado? Por fim, deu de ombros.
— Não, penso que não.
Lady Anya sorriu e anuiu.
— Bom saber que sua prometida lhe agrada.
— Agrada-me — confirmou ele. — De fato, ela agrada-me muito, e… acho que ela merece um agrado de minha parte também, pois? Afinal, sou seu prometido.
Anya o olhou, curiosa, analisando-lhe o semblante com os seus olhos apertados.
— E… que tipo de agrado, posso saber?
Harrold voltou a enrubescer, abaixou um pouco a cabeça, deu um sorriso sem graça.
— Joias são um bom agrado, não acha?
Sua tia abriu os olhos, parecendo surpresa, pigarreou:
— Joias? Para uma bastarda Baelish?
O rapaz enamorado aquiesceu com a cabeça.
— Sim, e por que não? Afinal, não és uma bastarda qualquer; és minha prometida!
Sua tia deixou a fisionomia surpresa, substituindo-a por um meio-sorriso. Por fim, meneou a cabeça.
— Pois bem — concordou ela —, acho justo.
O cavaleiro ficou surpreso.
— Ah, sério?
Ela riu.
— Sim, Harry, sério. Demorará para chegar até aqui, mas mandarei corvos para os melhores ourives de Ferrobles. Quais joias há de querer para sua Alayne?
— Safiras! — Ele não hesitou em responder. — Safiras combinam com os olhos dela, não acha? Ah, e rubis, por que não? Talvez um anel d’ouro com um imenso rubi! Sim, seria perfeito para a minha prometida! — Passada a adrenalina em seu coração, ele sustou-se. — E, é claro, eu hei de pagar vós pelo auxílio, minha tia.
Sua tia deu-lhe um sorriso divertido.
— E como terá dinheiro para tal, Sor?
Quando a porcaria chorona do meu primo morrer. Amaldiçoava o rapazinho xexelento todos os dias. Afinal, qual o sentido dele ainda viver? Era uma humilhação para o reino!
— Em breve hei de ter como — foi tudo que respondeu.
Os lábios sorridentes de sua tia formaram uma expressão lupina.
— Ah, Harry, eu sei que sim.
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Alayne andava até o local onde a nova disputa do torneio iria ocorrer, passando por um caminho de paralelepípedos, margeado por neve. Arrependia-se por não tomado um desjejum — simplesmente acabara por achar o seu sonho no céu tão real que acabou por achar-se de barriga cheia. Balançou a cabeça, criticando-se por ser tão leviana e sonhadora. Sua cabeça tinha de estar no chão, não no céu.
Ela sabia o que uma cabeça nas nuvens podia causar.
(Ah, mas fora um sonho tão lindo!)
Balançou a cabeça novamente, fazendo seu véu balançar, apressou os passos, subindo a barra rubra de seu vestido.
Enquanto caminhava, acabou por esbarrar em Sor Shadrich. Suscitou-se, à contragosto, forçou um sorriso. Tinha de falar com o pai, não com ele! Aquele cavaleiro já fizera o que lhe era devido!
— Bom dia, Sor! — ela o comprimentou, suave, escondendo com perfeição sua agitação. — Não devia estar se aprontando para a sua justa de hoje?
O cavaleiro com cara de raposa deu um dar de ombros como resposta.
— Tenho pouca vontade de continuar agora que derrotei Sor Harrold — revelou ele. — Bem sabes que só entrei na disputa para agradar a vós e ao seu pai, o qual presto meus serviços.
Alayne anuiu, imaginando que ele estava querendo ser dispensado da disputa e devolver-lhe o favor que ela o dera.
— Bem, lamento, mas não sei se poder-lhe-ei dispensá-lo, Sor — respondeu ela. — Mas existem quase duzentos competidores restantes, de certo algum pode derrubá-lo, talvez até mais cedo do que o senhor imagina? — Deixe que ele pense nisso. — De toda a forma, meu pai e eu agradecemos-lho serviço.
Tentou pedir-lhe licença, mas o Rato Louco foi mais rápido e falou:
— Gostaria que eu lhe devolvesse a vossa liga, milady?
Voltou a forçar um sorriso:
— Ah, claro, se não se importar. Se bem que não tenho mais nenhum campeão em mente agora que Harrold saiu da competição. — Quando o cavaleiro abriu a boca para falar algo, ela o interrompeu. — Desculpe-me, Sor, mas devo apressar-me, pois devo falar com meu pai a respeito de algumas festividades que planejamos.
Antes que ele sequer pudesse redarguir, ela fez um aceno rápido com a cabeça, bateu os pés para fora dali.
Alayne estava subindo no palanque, indo para o seu lugar especial para ver a justa, quando percebeu que Randa a esperava, de pé, no fim dos degraus de madeira, com uma mão na cintura. Usava um vestido marrom, com renda cor-marfim no formato de luas minguantes nas mangas, bainha e peitilho. Seu cabelo castanho-escuro, quase preto, estava solto, caindo até o meio das costas em cascatas onduladas.
O semblante de sua amiga não parecia muito amigável, notou Alayne.
— Seu pai quer que você vá buscar lorde Robin — murmurou-lhe Myranda, após ambas ficarem defronte uma à outra.
Alayne olhou para além da amiga, notou que os pais de ambas murmuravam alguma coisa uns para o outro, de pé, noutro canto da construção de madeira. Ao relancear para a cadeirona do lorde, notou que lá estavam as almofadas, mas não o lorde.
Olhou novamente para Randa, fez um rápido aceno com a cabeça, fez as saias farfalhar ao virar-se, erguendo a barra do vestido ao puxar a saia. Desceu os degraus. Uma rajada de vento subiu pela escadaria de madeira, mordeu o corpo de Alayne, fazendo suas saias esvoaçarem, bagunçou o véu, arrepiou todo o seu corpo, obrigando-a a tremer.
O golpe de ar fez sua mente espiralhar para um passado assustador, onde tia Lysa a empurrava em direção a Porta da Lua. Não havia nada depois da soleira; apenas o céu e a neve. O vento mordia suas pernas, a saia do vestido esvoaçada ruidosamente, lágrimas ardiam no rosto; sua tia gritava, Marillion cantava. A sensação de horror e impotência que sentira naquele dia parecia ter voltado para atazanar seu corpo.
Não é nada, disse a si mesma, apesar de sentir-se um tanto perturbada, enquanto arrumava seu véu.
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