Camila
Chegamos a Green Valley quase três horas depois. Ambas ficamos em silêncio a maior parte da viagem. Eu tinha muito em que pensar, muitas questões não resolvidas para compreender, o que nem cheguei perto de fazer em tão pouco tempo. E vou demorar muito até parar de me sentir culpada, se é que um dia vou conseguir. Não importa que as coisas que Lauren disse façam sentido; ainda me sinto a pessoa mais egoísta do mundo pelo que fiz. Provavelmente vou me sentir assim para sempre.
E perguntei a Lauren por que estávamos indo para Green Valley. Ela já tinha dito que iria me contar o que estava acontecendo, mas na hora foi vaga. Disse que precisava fazer uma troca perto de Green Valley, mas não quis entrar em detalhes. Acho que todo aquele falatório no hotel em Douglas estourou seu limite de palavras para conversa. Porque ela voltou rapidamente a ser como era, a assassina quieta, reservada e intimidadora com o qual, por motivos que eu desconhecia, me sentia quase completamente segura.
Paramos em um estacionamento no fim de uma estrada ladeada por casas de veraneio. Já estive aqui antes, uma vez, com minha melhor amiga, quando a irmã mais velha dela foi nos pegar na escola no seu carro novo. Nós nos perdemos e ela deu meia-volta neste lugar. Isso foi semanas antes de minha mãe me obrigar a ir para o México com ela e Javier. Este lugar familiar me faz lembrar que estou muito perto de casa. Estou tão perto que poderia ir para lá a pé. Levaria várias horas, mas eu conseguiria.
Mas para onde eu iria?
Lauren desliga o motor da picape. Eu olho pelo para-brisa e vejo uma faixa de árvores e mato separando o estacionamento da rodovia interestadual. Um carro chispa a cada poucos segundos. Mas o estacionamento está vazio, exceto por outro carro solitário à distância, estacionado ao lado de uma caçamba de lixo. Já do outro lado do estacionamento, depois de um muro baixo de concreto, há muitos carros estacionados em volta de um shopping center.
Eu me pergunto por que ele escolheu um lugar público, ainda que quieto e abandonado no momento, para fazer o que veio fazer aqui, seja lá o que for. Porque Javier não se importa com o público, nem com o risco de um espectador inocente ficar no meio do fogo cruzado.
— Fique na picape — manda Lauren, antes de fechar a pesada porta de metal.
Ela dá a volta por trás enquanto uma reluzente van preta entra no estacionamento, vindo de trás das casas. Meu coração imediatamente começa a bater forte. Eu me encolho no banco, mas vou para o lado do motorista, para poder ver melhor pela janela. Quero ver, mas não quero ser vista.
Lauren vai ao encontro da van, a uns 15 metros de onde estou, e o veículo para no meio da estrada. Vejo um homem. Parece um homem branco, o que me deixa confusa. Lauren assente, e então vejo seus lábios se mexendo. Estico o braço e abro o vidro, girando a manivela antiquada. Ela emperra de início, mas depois uma fresta se abre e eu consigo baixar alguns centímetros. Mas eles estão longe demais para eu ouvir o que dizem.
Lauren começa a voltar para a picape, e a van a segue. Engulo em seco e me vejo praticamente deitada no assoalho agora, com o alto da cabeça encostado no volante duro. A porta do lado do motorista se abre, me expondo em minha posição constrangedora. O homem está ao lado de Lauren, os dois olhando para mim.
O desconhecido, que eu noto que se parece um pouco com Lauren, alta, de cabelo castanho escuro, olhos castanhos e maçãs do rosto angulosas, me faz um aceno de cabeça, como se fosse seu jeito de cumprimentar. Inútil dizer que estou apavorada e insegura demais para retribuir a cortesia.
O homem, embora continue me olhando como se eu fosse algum espécime peculiar que merece ser estudado, diz algo para Lauren em outra língua. Não é espanhol. Lauren responde no mesmo idioma, que começo a achar que provavelmente é alemão. O homem finalmente olha para Lauren.
— Este é Christopher — diz Lauren. — Você vai no carro dele e vocês vão me seguir para outro lugar perto daqui.
Instantaneamente, sinto minha cabeça balançando em negativa.
Lauren estende a mão para mim, mas eu a rejeito. Em vez disso, começo a me levantar do assoalho e ir para o outro lado da picape. Sinto a mão de Lauren se fechando ao redor da minha coxa.
— Ele não vai machucar você — diz Lauren. — Esta picape não é segura para você, caso Javier ou seus homens abram fogo contra nós.
Olho pelo vidro de trás para a van, presumindo que ela seja blindada. Não me dou ao trabalho de perguntar; simplesmente não quero ficar a sós com esse homem, em um veículo mais seguro ou não.
— Essa aí não coopera muito — diz o homem chamado Christopher, em inglês. Ele com certeza tem sotaque, diferente de Lauren, que parece ter fluência em todos os idiomas que conhece.
— Karla. — Lauren diz meu nome e isso me imobiliza; ela nunca me chamou pelo nome antes. — Estou pedindo para você cooperar.
Eu encaro os olhos sérios de Lauren e mantenho o olhar neles por um momento, deixando minha mente se desanuviar da reação inesperada que o fato de ela dizer meu nome provocou.
Meu corpo relaxa, e então, logo depois, os dedos de Lauren soltam minha coxa. Olho de um para outro devagar, ainda hesitante, mas agora mais disposta.
— Você vai me dizer o que vai acontecer? — pergunto, olhando para os dois, mas Lauren sabe que a pergunta foi para ela.
Christopher mantém seus frios olhos azuis cravados em mim, mas aparentemente mais por ser de natureza observadora do que possessiva.
— Vamos nos encontrar com Javier perto daqui, em um lugar mais isolado. Lá, sua amiga vai ser entregue para nós.
Uma sensação sombria de incerteza surge de repente no fundo do meu estômago.
Eu estreito os olhos para Lauren.
— Fácil assim? — pergunto, cética. — Não, Javier não vai entregá-la e pronto. Ele vai... — Volto a recuar para a porta do lado do passageiro, minha mão já na maçaneta, para o caso de eu precisar fugir. —... De jeito nenhum ele vai fazer isso. Você vai trocá-la por mim, não vai? — Eu levanto a voz. — Não vai?!
— Sim — diz Lauren.
Christopher continua quieto, calmo e sempre muito observador. Está começando a me dar nos nervos.
Mas então eu me controlo e desvio o olhar dos dois. Olho através do para-brisa para a paisagem e os carros do outro lado da mureta de concreto, mas não vejo realmente nada daquilo. Tudo o que vejo em minha mente é o rosto de Demi, como a vi pela última vez naquele vídeo: machucada, ensanguentada, debulhada em lágrimas e apavorada. Sei que é isso que precisa ser feito. Uma troca: eu por Demi. Isso é algo que eu sei que Javier aceitaria, agora mais do que nunca.
Mas ele quer que eu morra...
Minhas mãos agarram o couro rasgado do assento debaixo de mim, afundando os dedos no enchimento exposto. Meu corpo todo treme de pavor. Mas então eu empurro resolutamente esse medo para o fundo da minha mente. Talvez ele não me mate quando me tiver de volta.
Posso continuar a fingir que quero estar com ele. Posso até fingir que Lauren me raptou. Eu sei que consigo enrolar Javier. Sei que consigo! Fiz isso por anos! Fiz com que ele confiasse em mim, a ponto de achar que me amava. Posso fazer isso de novo.
O bastante para ter minha primeira oportunidade de matá-lo.
Sim, é exatamente o que vou fazer. Porque a esta altura, só duas coisas me importam: proteger Demi e matar Javier. Sei que quando fizer isso vou assinar minha própria sentença de morte. Izabel ou um dos homens de Javier vão me alcançar antes que eu me afaste um quilômetro da fortaleza e vão me abater a tiros, como Lauren fez com aquele dono de loja no México.
Mas pelo menos Javier estará morto.
E eu não tenho medo da morte.
Abro a porta da picape e encontro Christopher ao lado, esperando por mim. Eu estava tão perdida em pensamentos que nem vi quando ele deu a volta no veículo.
Fecho a porta e olho por cima do capô para Lauren, que está do outro lado. Nunca consegui ler de verdade seu rosto, porque suas emoções, se é que ela tem alguma, parecem impenetráveis, mas agora detecto o traço mais tênue de algo incomum em seus olhos. Poderia ser remorso? Não, talvez seja indecisão ou... Não, não pode ser isso.
— Eu topo — anuncio, sem desviar os olhos de Lauren. — Se você puder levar Demi embora em segurança, eu topo.
Lauren assente. Depois vai até a porta aberta da picape, e eu a seguro.
— Mas, Lauren, por favor, leve Demi para casa. Eu imploro. Leve-a para casa. Ela mora em El Paso, Texas. Com os avós. Por favor.
Lauren não assente nem dá uma resposta verbal dessa vez, mas eu sei, só por seu olhar, que ela fará isso. Não sei ao certo por que acredito nisso, mas acredito.
Depois de passar suas bolsas para a van, ela entra na picape, e o rugido da partida do motor ecoa segundos depois.
— Venha — diz Christopher, me levando pelo braço, seus dedos me apertando com um pouco mais de força do que Lauren jamais usou.
Ele me leva para o banco de trás, abrindo a porta e ficando bem atrás de mim, como se estivesse vigiando para que eu entrasse e não tentasse fugir. Quando entro, o cheiro de couro novo e de purificador de ar preenche meus sentidos. Barras de metal separam o banco de trás do da frente, como a que os policiais têm em viaturas. Eu já me sinto presa. Ouço um estalo quando Christopher trava todas as portas depois de entrar. Olho para a esquerda e a direita e verifico que as portas de trás não têm pinos para destravar. Estou realmente presa ali dentro.
Pegamos a Interstate 19, seguindo de perto Lauren na velha picape surrada.
— Você virou uma tremenda pedra no sapato — diz Christopher do banco do motorista.
Eu o olho nos olhos pelo retrovisor.
Não gosto muito dele. Não que eu devesse gostar, considerando a situação, mas pelo menos com Lauren, apesar de ela ser uma assassina, eu tinha uma sensação de segurança. Até na fortaleza, quando eu e Demi a vimos pela fresta da porta, senti que podia confiar nela, que ela me ajudaria. Meu instinto estava completamente errado, admito, mas ela nunca me machucou.
Independentemente do que ela é ou do que já fez e das complicações que lhe causei, nunca me maltratou.
Christopher, por outro lado, sinto que é um pouco mais intolerante.
Tento manter os olhos na estrada à frente, mas é difícil não cruzar olhares com ele pelo espelho de vez em quando. Porque ele está sempre olhando.
Engulo em seco e digo:
— Eu não queria causar problemas para você e para Lauren. — Seus olhos se estreitam de repente no espelho, e eu noto imediatamente. — Mas não entendo por que é tão absurdamente inconveniente me ajudar, para vocês. — Tento disfarçar a amargura do comentário, mas não consigo fazer isso muito bem.
— Lauren — diz Christopher com gelo na voz, o que me impressiona da pior maneira —, visto que vocês já se chamam pelo nome, deveria ter arrastado você de volta para Javier Ruiz assim que a encontrou.
Eu odeio esse cara.
Cerro os dentes e respiro fundo.
— Mas ela não fez isso — digo rispidamente. — E isso mostra que ela é mais humana do que você parece ser.
Minhas palavras ácidas não o abalam como eu esperava. Em vez disso, ele faz a coisa que eu menos esperava: sorri.
— Ah, já entendi o que você acha que está acontecendo — diz ele, com aquele sotaque alemão evidente. — Você acha que de alguma forma a enfeitiçou com seus inocentes encantos. Só para você saber, não é nada disso. Lauren, tudo o que ela faz, faz pelo bem da nossa Ordem. Se ela acha melhor não libertar nem entregar você, isso não tem nada a ver com seu bem-estar.
Não quero acreditar nele, embora uma pequena parte de mim acredite, mas me recuso a dar a Christopher a satisfação de saber que conseguiu me perturbar.
Ergo o queixo e desvio o olhar, focando-o na picape que Lauren está guiando à nossa frente.
Logo viramos à direita e pegamos uma estrada de terra poeirenta que começa na Interstate. A estrada serpenteia entre várias áreas de arbustos baixos e árvores jovens, mas na maior parte do trajeto não há nada senão poeira e um solo estéril sem fim por toda a volta. Há algumas casas encarapitadas ao longe, no alto de colinas nuas, mas tenho a sensação de que ninguém viaja por aquelas terras há muito tempo, nem seus proprietários nem pessoa alguma, na verdade.
A frente da van se ergue acima da terra quando começamos a subir uma colina. Quando o chão volta a ficar plano no topo e a poeira começa a baixar, vejo quatro picapes velhas, bem parecidas com a que Lauren está guiando, estacionadas no meio do nada, à nossa espera.
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