A flecha retorna.
E o fluir do rio de acontecimentos ininterruptos, irá retornar a Aljava de Deus.
Ela inclinou levemente a cabeça e apertou os olhos.
Viu ali uma moça de idade avançada, até então desconhecida, porém longe de estranha. Com o olhar, a seguiu para sair pela entrada lateral do hall e caminhar até uma das portas que emolduravam a escuridão. Seu olhar estava fixo no chão e seu progresso parecia instável.
Ela só a vira de longe. Calculou que a senhora tinha cerca de setenta anos, mas parecia que podia ter entre noventa, ou até mesmo um século. Ela possuía cabelos cinzas na altura dos ombros, um rosto oval e consumido pelo tempo e um corpo corpulento. Ela usava as tradicionais vestes escuras, botas e luvas. Ela era local e falava com sotaque. Deixou cair um capuz forrado para a neve nas costas e sinalizou para outra servente da torre da lua.
“Fechem o portão e vamos dormir”.
A observadora estava fundida às sombras com suas roupas negras. Ela engoliu o seco e permaneceu imóvel. Sem virar a cabeça, ela desviou o olhar para o horizonte e encontrou as paredes da torre da lua. Ela podia sentir Caim Lake respirar através de um grupo de árvores e do lago que a afastava do mundo. Sentiu-se protegida do mundo lá fora. Como se Caim Lake nunca pudesse fazê-la mal.
Protegida, como era um pássaro em uma gaiola.
Mesmo estando frio, ela sentiu uma gota de suor escorrendo pela sobrancelha. Ela não gostava de tomar banho de sol. Havia passado os dias na sombra, tanto quanto possível, e mesmo agora, as portas do fim de mais um inverno, estava planejando hibernar sob o toldo.
Ela de repente se sentiu irritada e olhou novamente para a senhora, que acabara de receber um copo de uma bebida de outra ocupante do posto.
Não era seu problema, mas não conseguia entender por que a senhora permanecia calada. Durante quatro noites, desde a sua chegada da missão expedicionária, ela ouviu o terror mudo que se desenrolava na vida daquela senhora. Ela tinha ouvido choro e vozes baixas, e às vezes o som inconfundível de bofetadas. O responsável pelos golpes - A observadora presumiu que fosse o marido da moça - tinha cabelos lisos e escuros repartidos ao meio por uma faixa branca de fios, à moda antiga, Ele lembrava irritantemente seu primo, Gelard. Ela não fazia ideia de seu nome, mas todas as manhãs o maldito aparecia de roupas pretas, botas e luvas, tomava seu café da manhã, e dialogava com todos na morada da tocha antes de sair para treinar.
Ele voltava para a morada da tocha no final da tarde, sempre em horários diferentes das meninas que ali também aprendiam a ser caçadoras. Era nestes momentos, quando o sol estava prestes a se por, que os dois eram vistos juntos. Senhor e senhora. Eles jantaram juntos no que aparentemente parecia ser uma forma tranquila e amorosa. Eram bons caçadores. Esforçados e devotos à besta. A senhora, porém, pode ter falado demais, mas aquela característica não era desagradável.
Aquele era seu último ano na morada da tocha. Estaria se graduando em breve e gozava de privilégios que seus colegas não possuíam. Na verdade, todos os mestres da morada da tocha assumiram que a Heinsnodt nada mais tinha a aprender alí.
Ela concordava. Nada mais havia. Pelo menos, não por eles. Naquele ano, com um casal que nunca soube o nome. Ela aprenderá que as mulheres não amam caçadores e que os caçadores não amavam as mulheres.
Tudo que aprenderam a amar em sua existência, era a Besta.
E finalmente, o caminho estava livre. Fundida a escuridão, ela avançou em silêncio. Até o local mais afastado que poderia existir em Caim Lake. Abaixo da torre da lua, no alçapão que descia abaixo da terra no posto mais alto de Caim Lake. Ela adentrou sem medo na escuridão. Por tantas vezes ela caminhou pelo alçapão que conseguiria fazer seu caminho de olhos fechados.
Ela tinha o sangue da besta em suas veias. Conseguia ver dentro da escuridão como a luz da manhã.
E ali, esquecido em um local fora do contato da luz. A estátua de um homem brandindo uma espada em sua mão esquerda e uma tocha na mão direita. Eternizado ali, em pose de combate, o primeiro caçador travava uma batalha sem fim com a escuridão.
Que ironia, ela pensou. E sentou-se, de costas para a estátua. E em silêncio, se pôs a meditar.
Se fechasse seus olhos, Caim Lake deixaria de existir. Os sons não a alcançaram abaixo da terra. E a escuridão de suas roupas misturaram-se com o ambiente como se seus contornos fossem apagados por um trapaceiro deus menor.
Não tinha mais o sangue da besta. Não era mais caçadora. Era apenas uma mulher.
E o silêncio se quebrou quando a voz soou novamente em sua mente.
“Helena… Helena…” A voz do primeiro caçador a encontrou. Como sempre acontecia, aquele chamado foi atendido. “Por que está tão triste?”.
E Helena respondeu em seus pensamentos.
“Hoje eu não ouvi o meu nome. Os adoradores da besta continuam a me chamar de Vênus. Eu me tornarei caçadora amanhã, somente por formalidades. Não é como se eu precisasse de provas… Eu já nasci amaldiçoada…”.
E seu coração se tornou pesado.
“Eu não entendo… Por que… Porque os caçadores se esqueceram do propósito? Parece que só nascemos para matar e adorar ao que vocês combateram. A terra onde eu cresci foi banhada pela desgraça…”.
E a voz do caçador soou uma vez mais.
“Helena… Isso lhe entristesce?”.
“É claro… Que beleza poderia nascer em um abismo de calamidades?”.
“Você está enganada…” Ela respondeu. “...Onde há calamidade, há milagres… E o contrário também é verdade… Os verdadeiros caçadores nasceram disto. A linda coragem nasce, de onde o puro medo morre. Tudo nesse mundo possui sua contra-parte… Sempre opostos, nunca igual. Tudo e nada. E a vida, Helena… Também é assim…”.
“Mas, se nessa terra, a calamidade é inevitavel. Então, talvez seja ela que domine nossas vidas. Por mais que eu tente superar o sofrimento e use minha vida para buscar o amor e a felicidade…”.
E uma lágrima caiu de seu rosto.
“...No fim, a Besta irá transformar tudo em desgraça…”. Ela respirou fundo. “...Eu não entendo, caçador… Não entendo porque vim a este mundo… Se para que eu seja feliz, preciso enfrentar algo tão terrível e invencível quanto a besta...”.
“Helena…” O caçador disse. “Parece que você se esqueceu…”.
“Me esqueci…?”
“Em tempos de calamidade… O amor se torna maior e mais nobre… Todos aqueles que nasceram nessa terra e depois foram chamados de homens santos, carregam isso em seu âmago”.
E Helena permaneceu em silêncio.
“Helena… Se esta verdade ilumina o seu peito… Certamente você, em sua condição imortal impura…”.
“...Se transformará naquela… Que carregará as vontades puras dos verdadeiros caçadores… E a calamidade da sua existẽncia, será preenchida pelo milagre do amor…”.
E o silêncio retornou. Helena Heinsnodt levantou-se e seus olhos enxergaram além da escuridão.
Tinha que se preparar. Amanhã, para todos os adoradores da besta, seu nome morreria para sempre.
E das cinzas de um corpo que não pode morrer, Helena daria lugar a mais uma caçadora da muito antiga casa dos Heinsnodt.
Vênus.
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