Após a última colherada de sopa, a vasilha por fim estava vazia. Ainda que fosse um príncipe de paladar extremamente seletivo, admitia ter gostado da comida servida pela humilde senhora, ou quem sabe só estivesse com muita fome. Sendo sincero, era como se houvesse passado dias sem ingerir nenhum tipo de alimento, então até a mais repugnante das comidas lhe seria muita bem vinda.
Guzmán, até o momento, não proferiu sequer uma palavra, fingia ainda está em estado de choque ou algo do tipo, tudo por medo que, de alguma forma, descobrissem sua verdadeira identidade. Hilda não demoraria muito em espalhar cartazes por todo o reino, anunciando o suposto crime cometido pelo príncipe herdeiro de shadows, rumores dessa categoria se espalham rápido.
Sua sorte era que sempre foi um príncipe recluso, raramente aparecia em público, portanto boa parte dos plebeus desconheciam sua aparência, apesar de que... Ser ruivo seria um grande problema, podiam até nunca terem o visto, mas caso espalhem uma descrição de sua aparência, a tarefa de capturá-lo se tornaria cada vez mais fácil. Mais do que nunca tinha que fugir para longe, antes de buscar qualquer ajuda, deveria esperar a poeira baixar, e provavelmente faria isso no reino de Cartozza, ao seu ver, era o único lugar onde estaria parcialmente protegido da ganância de sua madrasta assassina.
— Querido, você não disse nada até agora, por acaso não consegue falar? - a senhora de cabelos grisalhos e vestimentas desgastadas, pergunta apreensiva, seu rosto contendo algumas rugas devido a idade, demostrava um semblante preocupado.
Guzmán sabia que precisava falar, mesmo que isso lhe custasse algo. A choupana encontrava-se vazia, apenas os dois faziam companhia um ao outro, ao que o ruivo entendeu, o caçador de antes havia ido selar os cavalos, levando junto de si, seu filho, Pietro. Logo partiria rumo á Cartozza, Guzmán precisava saber se ele aceitaria levá-lo consigo. Como nunca saiu de shadows, não fazia a menor ideia de por onde começar sua jornada, a ajuda de alguém conhecedor de tal região, com certeza lhe seria de muita utilidade.
— Peço perdão, fiquei acanhado, por isso não disse nada. - Guzmán se pronunciou pela primeira vez desde que acordou. A mulher de idade sorriu aliviada, por um instante chegou a pensar que o garoto fosse um surdo mudo.
— Tudo bem. - arrumou o lençol sobre o corpo do príncipe, o cobrindo para que ficasse mais confortável. — Você ficou desacordado por três dias, cheguei a pensar que-
— Como? - cortou-a incrédulo. Três dias? Ficou desacordado por três dias?! Muita coisa deve ter acontecido nesse meio tempo, e agora mais do que nunca precisava fugir, era um milagre que não tenham o encontrado ainda. — Agradeço por ter salvo minha vida, serei eternamente grato, mas agora tenho que partir. - em um só movimento, estava de pé. Sentiu uma leve tontura por causa da ação repentina, mas nada que o fizesse mudar de ideia, estava completamente curado, caso contrário não teria ficado de pé.
— Para onde vai, rapaz?! - questionou desacreditada, pareceu muito suspeito a mudança subida de atitude, porém em nenhum momento passou pela sua cabeça que estava diante de um príncipe fugitivo. — Você nem me disse seu nome!
Dizer o nome verdadeiro estava fora de cogitação, inventaria um falso apenas para afastar suspeitas.
— Me chamo Sebastian Miller. - mentiu descaradamente, nunca pensou que teria de renegar seu sobrenome, e junto dele o posto de príncipe de shadows. — A senhora saberia me dizer se seu filho aceitaria me escoltar até Cartozza? Digo... Ele deixaria eu o acompanhar? Não sei bem o caminho.
O semblante nervoso da senhora foi evidente após ouvir o questionamento do rapaz á sua frente, parecia temer por algo.
— O-Olhe... Eu não recomendo que o acompanhasse, pelo menos não se tem apresso por sua vida. - Guzmán franziu a testa ao escutar tais palavras, ela deu a entender que seu filho atentaria contra a vida do ruivo se insistisse em segui-lo? — Já ouviu falar do Drago serpente?
O clima do lugar ficou estranhando pesado apenas com a simples menção do serpente. Tudo o que sabiam sobre o dito cujo, não passavam de rumores, como quando se espalhou o boato de que Drago havia cortado a cabeça de três criminosos acusados de crimes brutais, e fincado-as em estacas próximo á floresta mirral. Dizem que ninguém nunca teve coragem de removê-las e que estão lá até hoje.
Muitas histórias rodavam sobre o assassino da serpente. Ele cuidava dos casos ignorados pelos governantes do reino, proporcionava vingança aos que buscavam seus serviços. Não era como um caçador de recompensas que apenas capturava fugitivos, e os entregava às autoridades do reino. O serpente era procurado para matar, e não havia outra descrição. Seu preço era alto, e esse detalhe foi o que mais chamou a atenção de Guzmán. Afinal se ganhava tão bem sendo um caçador de cabeças, então por qual motivo sua família vivia em um ambiente tão hostil?
— Está me dizendo que seu filho é o homem mais procurado dentre os sete reinos? - Cruzou os braços, exalando um ar de sarcasmo. Se aquela senhora estivesse mesmo dizendo a verdade, viveria em melhores condições, é ridículo ganhar tanto dinheiro colecionando mortes e sequer poder proporcionar uma boa vida para sua tão querida mãe.
Sem dúvidas a mulher não queria que fosse á Cartozza com seu filho, a razão até então é desconhecida, mas é muito improvável que esteja realmente sendo sincera.
— N-N-Não, n-não é bem assim, é que... - seu nervosismo desnecessário só causava mais irritação em Guzmán, que assim como qualquer membro da realeza, tinha um alto nível de soberba no sangue, tolerar plebeus é sempre um incomodo não importa a situação. — Meu filho já esteve com o Drago, ele anda com pessoas que poderiam te machucar, só estou tentando te proteger!
Acabou de refazer sua fala anterior. Mesmo que antes não tenha dito com todas as letras que o caçador de javalis, era o assassino, de certa forma insinuou isso. Então porquê refez a fala? Se por acaso for verdade, pagaria pra ver. Na verdade não tinha muitas opções no momento, de qualquer forma ficaria alerta.
— Esqueça isso, a senhora teria uma capa para me emprestar? - mudou de assunto, sua única intenção era chegar até seu destino em Cartozza, e faria isso, nem que tivesse de seguir o homem sorrateiramente.
— Claro...
[...]
A fumaça que saía de sua boca, mostrava o quão frio estava o clima, sem contar que resolveu esperar no galho de uma árvore perto do vilarejo. Fazia horas que aguardava o homem assustador passar, pretendia segui-lo apenas por precaução, não podia se dá o luxo de morrer depois de ter sobrevivido três dias em cima de uma cama e enfermo. Rezava para que não tivesse o deixado passar desapercebido, nunca se perdoaria por tamanha burrice.
A capa dada pela senhora Amélia - só soube seu nome quando já estava de partida, e por causa de um vizinho que a chamou para perguntar algo, senão nunca teria descoberto - amenizava o frio, mas ainda assim era insuportável. Não nevava tanto como nos últimos dias, talvez porque o inverno estivesse passando, no entanto a noite não deixa de ser menos torturante por causa disso. No seu colo, t uma bolsa feita do couro de algum animal o qual não soube identificar, contendo algumas frutas dadas pela gentil mulher, seria o bastante para não morrer de fome por enquanto.
Olhando a lua cheia brilhar fascinantemente no céu, Guzmán se perguntava onde seu pai estava. Se houvesse um paraíso e um inferno, aonde Erasto estaria? Ele não foi o mais misericordioso dos reis, mas também nunca foi o mais cruel. Se fosse para chutar, diria que estava entre os dois. Ou quem sabe, preferia pensar dessa forma para não ter que admitir que estaria queimando no inferno, pagando por seus pecados. Quantas mortes carregava nas costas? Diversas.
— Perdão por não rezar por sua alma, papai. - Murmurou.
O som de galhos sendo pisados embaixo da árvore, tomou de novo sua atenção. Mirou rapidamente para baixo, se deparando com um grande homem andando em meio aos arbusto. Vestia a mesma capa de pele de urso de mais cedo. Seu porte físico era absurdamente assustador, parando para pensar, não seria tão absurdo assim acreditar que fosse um assassino sanguinário. Guzmán esperou que se afastasse mais um pouco, para que tomasse uma distância segura do mesmo.
Desceu cuidadosamente da árvore, começando assim a perseguição discreta. Odiava mato, insetos e qualquer animal que não fosse um cavalo, então saber que teria de passar dias dentro de uma floresta, o assustava. Cartozza era muito longe, se tivesse uma charrete chegaria lá em um dia e meio no máximo, mas com essas pernas lentas, seria uma longa jornada. Chegou a pensar que o caçador iria á cavalo, mas pelo visto não foi o caso.
....
Passou-se três horas desde que iniciou a jornada, provavelmente estava de madrugada. Por quê aquele homem não parava de andar?! Parecia que não cansava, era algum tipo de monstro incansável?! Guzmán sentia as pernas fraquejarem, nunca andou tanto na vida, era um príncipe! Tinha os melhores cavalos do reino ao seu dispor, para levá-lo onde quisesse ir, andar longas distâncias á pé nunca foi necessário.
Decidiu parar somente para tomar um fôlego, se continuasse andando sem descansar, acabaria morrendo. Uma das mãos repousava sobre o peito que subia e descia, encostou as costas na árvore atrás de si. Quase esqueceu que ainda fazia muito frio, adrenalina fez com que esquentasse por dentro. Desviou o olhar por apenas cinco segundos, por incrível que pudesse parecer, foi tempo suficiente para perder o homem de vista.
Que azar, será que o perdi mesmo?! - pensou consigo mesmo, vasculhando a escuridão em volta. Por mais difícil que fosse procurar entre as árvores, se esforçou bastante, uma mísera distração de alguns segundos fez com que jogasse tudo abaixo. Até nisso foi um completo incompetente.
— Você...
Guzmán sentiu um hálito gelado tocar-lhe a nuca. Simplesmente travou no lugar onde estava, sem poder dar sequer um passo adiante. Uma presença avassaladora tapava a luz da lua no céu, estava em suas costas, tão próximo que podia sentir o calor corporal que exalava.
— Está... Me seguindo? - a última frase soou tão amedrontadora, que qualquer outra pessoa que estivesse ali no lugar do príncipe, teria fugido o mais rápido possível.
O que fazer? Não tinha certeza de quem poderia ser o dono da voz. Talvez só estivesse alucinando ou algo parecido... Não, essa possibilidade é quase nula, não tinha como ser coisa da sua cabeça, sentia a presença de alguém bem próximo das costas. Só podia ser o caçador de javalis, outra pessoa não estaria no meio da floresta gelada àquela hora da noite.
— Só... Estávamos indo na mesma direção, não estou te seguindo. - paralisado, Guzmán tentou explicar da forma mais segura que encontrou, não fazia a menor ideia sobre o nome ou profissão do outro, acreditava que toda cautela era necessária.
— Você é da realeza?
Agora sim teve coragem para correr. Não era como se tivesse controle sobre o próprio corpo, agiu sem pensar, levado pelo calor do momento, o instinto de sobrevivência falou mais alto. Na correria sempre acabava esbarrando em algum galho e consequentemente adquirindo arranhões na delicada pele de príncipe. Infelizmente não conseguiu tomar uma boa distância, como se uma flecha tivesse atravessado sua perna, caiu do chão, não demorando muito para um dor insuportável manifestar em tal parte do corpo.
Olhou para baixo, assim como supôs antes, havia uma flecha atravessando-a. A quantidade de sangue era imensa, sua vestimenta antes branca, agora era machada por um vermelho intenso. Ignorando a dor, puxou-a sem pensar duas vezes, quanto antes tirasse dali, melhor seria. Sangue e mais sangue jorrava, teve que rasgar boa parte da calça para que pudesse estancar o sangramento. Todas as suas ações eram automáticas.
Pela visão periférica, viu as pernas alheias andar para perto de si. Ele agachou á alguns centímetros, tendo um arco e flecha nas mãos, olhando fixamente o ferimento que ele mesmo provocou no ruivo. Guzmán já não aguenta de tanta dor, sentia como se algo o tivesse dilacerando por dentro. O choro não pode ser evitado, lágrimas de dor e ódio.
— Você se tornou a presa quando decidiu fugir. - o príncipe ergueu o rosto, vislumbrando os olhos de coras diferentes. Enquanto o azul reluzia o brilho da lua, o preto perfurava almas como uma espada afiada. — Veja só... - pegou calmante a flecha coberta de sangue no chão, fechou os olhos e cheirou-a, como um animal selvagem buscando sua refeição da noite. — Até o cheiro do seu sangue... - dizia em um tom baixo, surpreendendo Guzmán ao lamber o objeto e sorrir de modo sádico. — Nunca na minha vida... - era estranho como não pronunciava nenhuma frase completa.
— Quem é você?! - tirou coragem de onde não tinha para confrontá-lo. Ao menos raciocinava direito tamanha a dor que lhe acometia na perna, porquê isso tinha que acontecer?! Tudo girava contra si, todos queriam sua cabeça!
— Você... - tocou algo no próprio pescoço, em seguida mostrando o pingente com o brasão da família real. O ruivo esbugalhou os olhos, o colar era seu, presente herdado de sua falecida mãe, o quê aquele caçador fazia com isso?!
— Isso não é meu. - arrastou-se para trás, evitando proximidade com alguém de personalidade tão duvidosa. Se admitisse ser o dono, ficaria na cara que pertencia á família real.
— Estava com você. - sentou no chão por completo, sempre com uma feição séria no rosto. — Parece que... - sem aviso prévio, trouxe-o para perto com um só puxão. Segurou justamente a perna machucada para fazer isso, Guzmán soltou um grito de dor que espantou vários pássaros nas árvores em volta. — Tá doendo? Eu deveria... Acertar a outra perna? - quando estava prestes a fazer exatamente isso, foi impedido pelo outro que segurou-o pelo pulso desesperadamente.
— Eu sou da realeza, por favor, para de machucar! - implorou embargado em choro, quase engasgando.
— O príncipe fujão? - perguntava apenas por diversão, desde o início sabia tudo sobre a indentidade daquela pessoa. Mas a sua sede doentia por ver outros sofrerem, fazia com que a vontade de brincar com o príncipe, fosse mais forte. — Eu deveria fazer reverência?
— Eu imploro - choramingou, esqueceu o fato de ser um príncipe e que foi ensinado desde cedo a nunca abaixar a cabeça para ninguém que viesse de baixo. Estava no topo da hierarquia, todos lhe deviam respeito e submissão, porém lá estava ele, se debruçando em lágrimas, suplicando por sua miserável vida. — Poupe minha vida...
— Até o momento sua cabeça não está valendo nada. - Levantou — Mas em breve... - fitou a grande lua no céu — Tanto caçadores de recompensa, quanto caçadores de cabeças... Será uma festança... - não demonstrava animação por fora, contudo por dentro, fervia de excitação, um banquete caiu no seu prato sem nem precisar caçar. A sorte estava mesmo do seu lado.
— Antes disso eu me mato, não darei o gostinho a nenhum deles. - até nisso seria orgulhoso, claro. — você é um deles?! Seja qual for a recompensa que coloquem na minha captura, eu posso dobrar!
— Não... Você não pode - olhou-o jogado no chão, sangrando e quase desmaiando de dor. — Matou o próprio pai, seu único destino é a morte.
— Eu não matei meu pai! - gritou enfurecido, sofrendo com a dor que nunca parava. — Aquela bruxa imunda! Foi ela, eu não fiz nada!! - o grito quase rasgava a garganta.
— Será bom te manter comigo até que coloquem um preço. - não deu importância á fala do príncipe, só tinha interesse na montanha de ouro que ganharia se entregasse a cabeça do príncipe traidor. — Tenho dois trabalhos em Cartozza. - Rumou na direção do ruivo, este que mais uma vez rastejava para trás, mas sem sucesso. Fora jogado sobre os ombros alheios, como um saco de batatas ou uma presa prestes a ser devorada.
— Como se atreve a tocar em mim?! Seu animal nojento! - estava consumido pela dor, seu orgulho real não valia de nada agora, mas ainda assim insistia em ser soberbo. — Ouse fazer algo contra mim, e te mandarei á forca!!
— Estou sujo de sangue, será que... Talvez tenha um riacho aqui perto. - mudou de direção, novamente ignorando as reclamações do príncipe.
— Você é um mostro fedorento e asqueroso, me larga, eu juro que vou te matar!
Logo o caçador escutou o barulho da água corrente, indicando que ia pelo caminho certo. Após minutos passando por arbustos de espinhos, chegou ao riacho. Como um monte de lixo, largou o ruivo no chão, perto da água, e caminhou para dentro. Os xingamos não paravam, mas nada que o fizesse perder a calma. Deixou a capa e o restante da roupa na beirada. Impossível não perceber tantas cicatrizes, uma maior que a outra. A que com certeza mais chamava a atenção, tinha um formato de serpente, cobria boa parte do abdômen e peitoral. Guzmán estava muito ocupado rastejando para longe, como se isso fosse adiantar alguma coisa. Príncipe tolinho.
— É melhor não se afastar muito, os lobos já devem estar rastreando o cheiro do seu sangue. - imediatamente, ele parou de se mover.
— Eu pago o que você quiser, só não me mate.
— Você não tem mais nada, majestade. - Murmurou enquanto boiava na água cintilante. — Está arruinado, completamente sozinho, nem Deus poderá te ajudar.
— Não! - exclamou de volta — Cale a boca! - o desespero só aumentava, se negava a admitir que ele tinha razão em cada palavra que disse. — O rei de Cartozza me ajudará, eu vou recuperar meu reino!
— Acha mesmo que tem tempo? Você... Está com os dias contados. Sua cabeça será disputada por centenas de caçadores. - soltou um risinho silencioso — Estou... Mergulhado em excitação...
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.