━━━━━━━━ 𝐜𝐚𝐩𝐢𝐭𝐮𝐥𝐨 ⁵ ━━━━━━━
– Por que você fugiu? – perguntei esfregando minhas mãos em volta de minha têmpora, na tentativa de não avançar contra a mulher.
– Talvez, seja porque vocês pretendiam me manter trancada no Olimpo. – respondeu ácida, sem desviar os olhos da paisagem morta.
Um tremor mínimo passou pelas minhas veias, e com esta breve resposta todos os meus possíveis planos foram por água abaixo. Qualquer chance de uma aliança envolta em um acordo futuro, se esvaiu perante meus olhos. Ravena cresceu com Hades a alertando sobre nós, isso se embrenhou em suas memórias mais profundas resultando em nenhuma confiança vinda dela, e com essa incoerência e "armadilha" dúvido muito que volte em paz e por livre espontânea vontade comigo.
– Zeus não iria te manter ali a força. – menti, sem peso na consciência, afinal, isso era para algo mais importante.
Escutei a risada forçada da mulher, que em um movimento se pôs a pouquíssimos centímetros de mim. Perto demais. Os olhos me analisavam com determinação, examinando cada traço presente em meu rosto, com um sorriso de canto pintando seus lábios. Que eu não conseguia distinguir se era extremamente amedrontador, ou incrivelmente sexy.
Ela se aproximou ainda mais, um cheiro floral invadiu minhas narinas se sobrepondo ao aroma de enxofre que o lugar carregava. O perfume – ou sua própria pele – cheirava a gardênia, lembro claramente dessas flores tomando conta do ar no Olimpo durante a primavera. Ravena é filha de Perséfone também, a deusa que cuidava da estação rosa, talvez a pele perfumada por flores seja por conta disso.
Vi atentamente a garota aspirar o ar em minha volta enquanto seu sorriso de canto se transformava em um ato debochado.
– Eu consigo sentir o cheiro da sua mentira. – ela riu com escárnio recuando alguns passos. Soltei o ar que nem sabia estar prendendo quando a morena se afastou
– Independente se isso é mentira ou não, vamos voltar agora para o Olimpo. – ordenei com a voz um tanto rouca.
– Você sabe que estamos no Submundo, não é? – perguntou com a sobrancelha erguida, acenei com a cabeça revirando os olhos – Aqui você não tem autoridade nenhuma, não pode me ordenar a fazer nada.
Ah, merda. Tinha me esquecido disso.
Hades deu tudo de si para que apenas ele tivesse o respeito e a lealdade de todos aqui. Nem ao menos Zeus tem autoridade, ninguém no Olimpo consegue entrar sem um pedido, ou uma autorização, mesmo depois da morte de Trigon.
Todos os deuses – incluindo a mim mesmo – tem a entrada proibida, e como o Submundo só pode ser acessado pelo portão, ou por um portal feito pelo próprio Hades, fica difícil se tornar alguém que mereça respeito.
Então, como um deus, também não deveria ter vindo, já que não tenho direito algum neste lugar. Mesmo mantendo meus poderes, não posso mandar e desmandar nas pessoas aqui, e caso tentasse fazer isso atrairia a atenção dos bastardos de Hades, e como Ravena foi levada para tirar o trono deles, duvido muito que os seis teriam uma reação boa.
– Vamos fazer assim… – ela começou com uma expressão ardilosa – Você, volta para o Olimpo e diz que não me achou, e eu – a morena colocou as mãos em seu busto apontando para si – Vou continuar meu caminho até conseguir voltar para minha vida. – arqueei as sobrancelhas, ela não se lembrava sobre os portões?
– Adoraria aceitar esse acordo, mas infelizmente temos um pequeno problema. – debochei encontrando a expressão decepcionada da garota – Não consigo sair daqui com meu poder.
– Por que? – indagou suplicante.
– Porque… – andei em volta de seu corpo circulando a terra solta com a ponta dos pés. – Seu pai proibiu e se certificou que ninguém conseguisse entrar ou sair aqui sem sua permissão, e isso incrivelmente inclui a mim e aos outros deuses.
– Você não vai nem tentar? – pediu praticamente implorando.
– Acho que não. – falei ficando em sua frente – Mas, agora minha responsabilidade é te levar de volta para o Olimpo.
– E como você vai levar se não consegue nem sair daqui, me diga gênio? – ironizou com um tom traçado de raiva.
– Simples, você vai abrir um portal para nós irmos direto para o Olimpo. – terminei com um sorriso mínimo.
– Nem fodendo.
– Olhe a boca, uma dama não deveria falar assim. – impliquei com sarcasmo, ganhando um revirar de olhos.
– Eu até poderia aceitar isso, só que… – a frase da garota morreu no ar, com certa vergonha.
– Só que? – insisti querendo saber o verdadeiro porquê.
– Só que, mesmo que quisesse, eu simplesmente não sei como consegui abrir um portal para cá – ela fez uma pausa me encarando – Nunca tinha feito isso, acho que depois da.. – a menina parecia ainda não conseguir tocar no assunto da morte do pai, o que era bem compreensível – Depois daquilo, talvez eu tenha ganho algumas coisas que apenas Hades conseguia fazer.
Isso, de certa forma, fazia sentido, já que ela, como todos repetiram várias vezes, é a verdadeira herdeira de Hades.
Ravena suspirou com uma diversão suspeita, se aproximando da colina que levava a uma queda d'água, observando a parte de baixo onde só se via uma densa escuridão, a qual camuflava qualquer coisa que pudesse estar ali.
– Infelizmente, acho que não chegaremos a um acordo. – Cérbero se aproximou da dona embrenhando as patas em sua perna – Então, boa sorte para sair daqui.
A garota disse e se virou aparentemente se preparando para simplesmente, se jogar de um penhasco, de novo.
Mas, eu não estava nem um pouco afim de fazer isso novamente.
Então, uma pequena lembrança veio à tona em minha mente. Era Zatanna ensinando uma antiga maldição, nada muito complicado, já que não tenho talento para magia igual a deusa, apenas possuía o mínimo que um deus grego deveria ter correndo em suas veias.
Sem pensar muito disse as palavras em pequenos murmúrios fazendo um fio avermelhado se amarrar no pulso da garota e a outra ponta prendeu firmemente em minha pele na mesma região. A corda se tornou transparente causando uma leve queimação onde tinha se embrenhado.
Ravena pareceu sentir o mesmo me encarando como se perguntasse silenciosamente o que eu tinha feito, abri um sorriso maldoso puxando bruscamente meu pulso contra mim.
Assisti em primeira mão a garota ser levada à força pelo braço por algo invisível, e logo em seguida cair contra a grama morta praguejando alto diversos xingamentos, variando de "seu desgraçado" para "tomara que você apodreça no Tártaro".
A maldição não era nada demais, apenas um laço que podia ligar duas pessoas e impedi-las de ficar a mais de dez metros de distância, pode até ser simples, mas é extremamente eficaz. O único problema, é que aprendi apenas como fazer o laço, então vou deixar a parte de nós libertar disso para Atena.
– Pelos deuses, me diga que você não me amarrou em sua companhia?! – gritou raivosa limpando os grãos de terras que se prenderam em seu vestido.
– Sim, eu fiz isso. – declarei a encarando – Era isso, ou tentar te deixar inconsciente em uma luta, e sem dúvida destruiriamos boa parte do Submundo no processo, o que significaria uma atenção que com certeza quero evitar, então você vai vir comigo para os portões e vamos dar um jeito de sair desse inferno em sigilo. – declarei com um tom ríspido.
– Qual parte do "nem fodendo" você não entendeu?! – gritou, fazendo uma breve luz avermelhada brilhar em seus olhos.
– Você sabe que se suspeitarem que alguém pode tirar o trono deles, vão te caçar até o fim do mundo, não sabe? – vi uma breve oscilação em seus olhos – Então, nesse momento sua melhor opção é vir comigo, e não atrair o olhar dos seis.
Conseguia ver a raiva estampada no violeta, a vontade de simplesmente me matar ali mesmo, às vezes via esse brilho nos meus olhos também.
Entretanto, o fato dela não ter tentado me jogar desse precipício significa que vai priorizar a razão ao invés da emoção. Ótima escolha.
– Vou deixar uma coisa bem clara. – ela se levantou com o olhar sério – Não pense nem ao menos por um segundo que só porque estou indo com você vou seguir as ordens do grande Zeus, saiba que até o momento em que atravessarmos aquele portão estarei planejando uma forma de me livrar desse laço. – declarou com ódio – Então não ache que confio em você, a única coisa que eu quero é descobrir quem matou meus pais e o castigar da maneira mais dolorosa que conheço.
Acenei em concordância, era justo. Eu não confiava nela e a morena retribuía o sentimento na mesma intensidade. Desconfiança mútua.
Algo perfeito para alguém que queremos como aliada.
Olhei em volta procurando uma rota que nos levasse direto para os portões, não conhecia o Submundo de forma aprofundada, sabia apenas o básico das divisões e localizações.
E usando o mínimo conhecimento, supus que a saída ficava ao norte, já que julgando pelo estado de onde estávamos sem dúvida era bem longe do Campo Elísios, provavelmente o Tártaro ficava mais perto do que qualquer outro lugar.
Suspirei derrotado seguindo o caminho imaginário que tracei, poderia usar minha velocidade ou minha força para facilitar ou abrir um caminho melhor, mas se alguém, por mais insignificante que seja, souber que um deus está aqui sem permissão… as consequências seriam péssimas para mim, afinal, por mais que não goste dos bastardos que comandam aqui, não posso, ou melhor, não quero matar eles agora.
– Para onde você tá indo? – ela perguntou enquanto me seguia à força.
– Como eu já disse várias vezes, nós estamos indo para os portões.
– Você sabe que estamos praticamente no lado oposto do portão, não sabe? – assenti sem me importar com o assunto – Hum, então você também sabe que leva mais ou menos um mês para atravessarmos toda a extensão andando, não é?
– Um mês?! – disse em um tom mais alto
– Sim, achei que soubesse. – retrucou com graça se colocando ao meu lado – Como todos que vêm para cá são demônios, a distância nunca foi um problema, já que com as asas eles fazem essa viagem em menos de uma semana.
– Não tem nenhuma rota para chegar mais rápido aos portões? – perguntei a muito contragosto.
– Sinto te informar, mas não. – respondeu pegando o cachorro no colo.
– Por que você não faz esse bicho crescer para nos levar direto para o portão?
– Ele é uma besta milenal, não um burro de carga. – vociferou enquanto o animal me mostrava os caninos afiados.
Dei de ombros olhando para os lados. O lugar realmente representava com sucesso as lendas sobre o que habitava aqui, o cheiro podre que era presente em todos os cantos, a escuridão que se apossava de qualquer brecha ou canto desnivelados. O chão que se alternava em uma terra sangrenta e uma grama amarelada com pequenos fiapos negros no meio. Não havia nenhuma planta, nem ao menos uma suculenta jogada por aí, parecia que o solo era de fato podre. Tudo tinha uma atmosfera tão pesada que chegava a ser sufocante
Com muito cuidado descemos o desfiladeiro dando a volta pela maior borda rochosa, chegamos em uma planície, mas pensando seriamente, talvez eu preferisse o desfiladeiro.
O lugar era um caminho isolado por duas grandes quedas vazias em ambos os lados, tinha milhares de buracos fundos espalhados pelo chão como se realmente fossem armadilhas.
Antes que pudesse dizer algo a garota ao meu lado tomou a frente atravessando com cautela, não a impedi, seguindo logo atrás enquanto olhava os arredores.
Havia uma enorme cratera totalmente aberta, a única coisa que poderia obstruir a passagem eram as grandes estacas de pedra maciça na parte superior, mas duvidava muito que isso atrapalhasse qualquer coisa que viva ali. Já que para uma besta precisar de um lugar enorme desse apenas para ela, essas estacas não seriam nada em comparação.
– Não olhe para ele. – Ravena declarou apertando com mais força Cérbero em seu colo, o cão observava atentamente com as orelhas levantadas o que quer que viva naquele lugar.
Virei meu rosto para frente sentindo uma leve respiração em meu pescoço, uma vontade descomunal de virar meu rosto para encarar quem ou o que fez isso, se instalou na minha mente junto com um sussurro doce me chamando.
– Não ouse se virar, apenas siga em frente. – ordenou obedecendo suas próprias ordens – Aqui é o lar das piores bestas do Mundo Inferior, esse é só mais um das centenas de irmãos que Cérbero tem espalhados por aí. Todos totalmente diferentes, mas igualmente mortais, cada um pode te matar de uma forma mais dolorosa, e este em específico só consegue atacar se a pessoa o olhar nos olhos, então se você não deseja morrer fique quieto e ignore essa voz irritante em sua mente.
Suspirei encarando o caminho turbulento em nossa frente, era realmente um esforço não ceder ao chamado que insistia na minha cabeça.
– Se você pensar em algo importante para você, a voz vai ficando mais quieta. – Exibiu a informação como se não fosse nada de importante.
Isso explicava como ela não parecia nem um pouco afetada pela besta.
Respirei fundo procurando alguma memória importante para mim.
A imagem de um senhor com curtos cabelos grisalhos apontando uma espada de esgrima para mim tomou conta dos meus olhos, ele me atacava veementemente sem deixar nenhuma chance para defesa, o homem acertava meu peito diversas vezes me fazendo recomeçar de novo, e de novo. Lembro-me perfeitamente do quanto aquilo era frustrante, mas mesmo assim eu não desistia, o atacava cada vez mais forte com uma rapidez esplêndida. Até que finalmente acertei o abdômen dele, marquei o uniforme completamente branco com uma pequena circunferência acinzentada, algo que achei ser brasas frias. Essa memória vivia aparecendo em minha cabeça, nunca entendi o motivo ao certo, já que pelo que Zeus disse Alfred me treinava todos os dias.
– Viu eu falei que funcionava. – declarou olhando para trás – Já passamos da parte mais atormentadora – confirmei com um aceno sentindo um arrepio percorrer meu corpo com avidez.
– Por que essa sensação? – queixei-me irritado.
– Nós estávamos sendo observados por dezenas de feras ao mesmo tempo, podíamos não as ver mas elas estavam ali. – afirmou caminhando – Essa sensação demora um pouco para passar.
Confirmei com a esperança que fosse apenas isso. Esperei, e esperei, mas eu ainda sentia que havia alguém nos observando.
Torcia para que fosse apenas uma paranóia minha, porém quando vi um vulto parar na nossa frente, tive a certeza que aquilo com certeza não era apenas uma paranóia.
O vento enorme causado pelos movimentos das asas, jogou para longe todos os pequenos empecilhos presentes no chão, abrindo espaço para que o ser pousasse sem problemas.
As enormes asas possuíam uma coloração avermelhada intensa, ao contrário das dos anjos, essa não tinha penas mas era feita de um material que me lembrou membranas. Havia duas enormes envergaduras acinzentadas unindo as partes em uma só, as cicatrizes espalhadas por toda a extensão rubi deixavam em implícito que já tinha se envolvido em centenas de lutas. Estava bem vestido demais para ser um guarda, então o julguei como um general ou governante.
O homem utilizava uma armadura de couro em tons de preto e cinza escuro, possuía algumas partes de ferro para proteger os ombros e os antebraços, a pequena amarração de fitas negras em sua cintura segurava uma espada de cabo fino entalhada com uma pedra vermelha no pomo.
O cabelo ébano estava jogado em seu rosto de forma desleixada cobrindo boa parte dos olhos azuis cristalinos, as sobrancelhas grossas estavam franzidas em seriedade e desconfiança. O nariz reto e marcado combinava perfeitamente com a boca de lábios grossos, e agora franzidos do rapaz. Tudo se encaixava muito bem com a pele estranhamente pálida do homem.
Ele levou as mãos com rapidez para punho da lâmina guardada na bainha reforçada, mas quando ele parou de me encarar e se atentou a mulher ao meu lado, vi o aperto no pomo diminuir gradualmente.
O interesse e excitação se estamparam descaradamente em seu rosto, um sorriso amplo pintou os lábios mostrando os dentes brancos e brilhantes com caninos afiados. O homem arqueou as costas em uma referência direta apenas para ela, transformando seu sorriso em algo que chegava a ser malicioso, o que me fez franzir a testa.
– Seja bem-vinda novamente, minha senhora. – cumprimentou com a voz rouca e baixa, a olhando por baixo.
Ravena cerrou os olhos o encarando superiormente, ela suspirou com leveza o cumprimentando no mesmo tom.
– É um prazer te reencontrar, Conner.
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