Um acidente havia acontecido com os dragões.
A pequena Sakura observava, agarrada ao vestido de sua mãe, enquanto seu pai inspecionava a área junto aos guardas.
Era época de colheita, e o reino de Cerasus, famoso por suas terras férteis e lavouras fartas, estava mais uma vez recebendo os frutos de suas plantações. Infelizmente, uma tragédia impediria que muitas famílias tivessem o que comer naquele ano.
— Malditos bichos — ela escutava a mãe resmungar, feição brava enquanto olhava para todo o estrago. — Dragões… Não dá para confiar. Domados uma ova. Pelo menos na época em que eles viviam longe das cidades, não causavam mal a ninguém, agora até incendeiam plantações inteiras.
A criança ergueu os enormes olhos verdes, curiosa.
Todo o milharal tinha sido queimado, restavam algumas poucas espigas torradas, o amarelo-alaranjado tomado pela negritude causada pelo fogo. O solo estava maculado, coberto por cinzas, e os talos ainda em pé estavam desprovidos de qualquer folhagem.
Alguns camponeses caminhavam ao redor da lavoura de milho, todos trabalhadores deprimidos ou encolerizados devido à perda. Repetiam uns aos outros que queriam o sacrifício daquelas malditas feras cuspidoras de fogo, era imperdoável que uma colheita inteira fosse arruinada por causa de monstros escamosos.
— De que adianta domar uns demônios desses? — Reclamava um homem de meia-idade, e tentava desesperadamente salvar o que podia das espigas carbonizadas, correndo ao redor dos talos na lavoura irrecuperável. — Eles nos servem para a guerra e para locomoção, mas daí tacam fogo na nossa plantação! Monstros! Demônios!
— Dragões não atacam por nada, deve ter havido algum gatilho — o rei argumentou, reflexivo e ajoelhado em frente às cinzas no chão. Esfregava a terra entre seus dedos como se o simples gesto pudesse revelar a resposta de seu enigma.
— Dragões são animais irracionais como qualquer outro, meu rei. — Rebateu a rainha Mebuki.
— Mebuki…
— Eles não pensam, apenas fazem o estrago que os convém. É tolice da nossa parte achar que é possível dominá-los.
Com isso, a rainha deu as costas ao seu marido, dirigindo-se à carruagem.
O monarca suspirou e ficou de pé, lançando um olhar soturno aos camponeses próximos.
— Eu sinto muitíssimo — disse ele. — Prometo recompensá-los por isso, seu trabalho não será em vão. Mandarei uma quantia de auxílio às suas famílias.
Acompanhado de dois guardas, Kizashi fez uma reverência aos súditos e saiu de cena, seguindo a esposa.
— Vamos, Sakura.
A criança — agora livre da saia da mãe —, juntou as pequenas mãos em frente ao corpo e expressou descontentamento.
— Ainda não quero ir embora! — Protestou a menininha de quatro anos.
— Você não tem que querer nada — a mãe retrucou, friamente, já acomodada no interior do veículo.
Os pais estavam acostumados com a rebeldia frágil de Sakura. A princesa era birrenta e teimosa, porém, depois que ignorada, sempre se calava e obedecia. Era assim que o rei e a rainha a criavam.
Portanto, ao invés de chamá-la mais uma vez, eles apenas esperaram. De qualquer modo, os guardas reais estavam lá fora, não havia perigo.
A pequena menina bufou e andou até o milharal, sempre seguida de perto pelos cavaleiros.
— O rei e a rainha a esperam — falou um dos homens.
Ela ignorou e ajoelhou-se no solo da mesma maneira que seu pai tinha feito, sem se importar se iria sujar o vestido de terra. Esfregou a cinza entre seu indicador e o polegar.
Com um ar de mistério, enfiou as mãos no chão e esperou. Os cavaleiros desistiram e retornaram para perto dos soberanos.
A garotinha não tinha ideia do que estava fazendo, foi apenas um reflexo repentino. Todavia, em questão de segundos, ela sentiu um tremor sinistro ultrapassar seu corpo e o solo, sua própria energia fundindo-se à da terra, e um broto verde emergiu das profundezas até a superfície, surgindo como mágica sob o olhar fascinado da criança.
— Alteza! — Os guardas chamavam. — Vamos!
Assustada, ela olhou para todos os lados e ficou de pé, sacudindo a poeira e correndo de volta para seus pais.
— Estou indo!
◇
Muitos tempo depois, na primavera, quando a princesa ceraseana completaria dez anos de idade em um período de poucos dias, o rei e seus cavaleiros prepararam uma viagem para presenteá-la.
Sakura era uma grande amante do ar livre, sempre sonhou em ultrapassar os limites de seu reinado para conhecer o mundo. Como surpresa, o rei decidiu levá-la para acampar longe das fronteiras, em uma longa excursão que duraria dias a fio.
Três dias apenas de ida, com pausas para as refeições, para esticar as pernas e descansar os cavalos.
As tendas foram montadas em uma enorme campina, a vários metros de — nada mais nada menos — que a maior floresta do continente, formada por gigantescas árvores de troncos retorcidos, com galhos afiados e pesados que projetavam-se em arcos, e folhagens esvoaçantes que pingavam gotas de orvalho. Um rio sinuoso atravessava o arvoredo, e mato alto crescia ao redor, como também porções de pesadas rochas cobertas por musgo. Ao longe, era possível avistar imensas montanhas com seus picos nevados.
A primeira noite foi tranquila, todos sentados em volta de uma fogueira contando lendas só para assustar a menininha — que apenas ria e debochava, mostrando que era mais corajosa do que pensava-se. Depois, na tarde do dia seguinte, a guerra foi instaurada; o que deveria ser um sossegado passeio a cavalo, tornou-se uma corrida elaborada pela princesa, que cavalgava tão veloz que se tornava quase impossível de acompanhar.
— Quero ver quem de vocês consegue me alcançar!!! — Gritava ela, e gargalhava alto com a cara de espanto que os homens faziam. — Vamos! Mais rápido! Molengas!
— Pelo amor de Deus! — O pai começou a rir, e aumentou a velocidade.
O guarda fez o mesmo.
De repente, ela viu-se desesperada ao percebê-los tão próximos — não de um jeito ruim, apenas riu mais alto e gritou de susto, tentando inutilmente fazer o seu cavalo correr mais à frente para que não fosse pega.
— Sua irresponsável! — Seu pai gritou quando seu cavalo ficou lado a lado com o da filha e agarrou as suas rédeas firmemente, puxando-a para trás.
O guarda saltou e se pôs em frente a ela, a obrigando a parar antes que os cavalos se chocassem.
— Qual é o seu problema?! — Ralhou o guarda.
O pai ainda ria, apesar de também sentir uma ponta de raiva pela aflição que a filha lhe causava toda vez que tentavam ter um passeio tranquilo.
— Então vocês sabem correr! — Ela zombou. Estava suada, sem ar e com o rosto enrubescido de tanto rir.
— Isso não tem graça! — Disse o guarda.
A fizeram cavalgar ao lado deles, segurando suas rédeas.
— Juro que nunca mais te trago pra cavalgar se continuar com isso. — O pai alertou.
Pelo que Sakura contava, aquela deveria ser a oitava vez que papai fazia a mesma ameaça.
— Me desculpe. — Respondeu entre um riso. — Eu senti saudade de andar a cavalo. Muito tempo presa na carruagem.
— Saudade… Deixe sua mãe saber disso.
— Já pedi desculpas, não tem que contar para ela. Eu só corri um pouquinho.
O monarca riu.
— Só um pouquinho?
O guarda afrouxou o aperto da mão nas rédeas, a expressão séria de quem não tolerava aquele tipo de comportamento.
Nunca diria em voz alta, porém, na humilde opinião de um guarda real tão próximo ao rei e à corte como um todo, achava que a conduta da princesa era inadmissível.
— Kakashi — a princesa chamou por ele — Me desculpa?
Kakashi continuou em frente por mais alguns segundos, sem olhá-la nos olhos.
— Vossa Alteza é minha princesa e futura rainha, eu não tenho que desculpá-la por nada.
— Falando assim você parece até um servo. Você é meu melhor amigo! — Ela exclamou.
Ele controlou um sorriso que queria transparecer.
— Daqui a pouco o sol se põe, é melhor já voltarmos para o acampamento. — Kakashi disse, e olhou de relance para trás. — Não podemos passar daqui.
— Por quê? — A princesa questionou.
O rei apontou para trás com o dedo polegar
— Eu já te contei o porquê de nunca entrarmos na Floresta dos Lobos, não é, Sakura?
— A tribo dos homens-lobo. Homens que se transformam em lobos. — Relembrou.
— São monstros. — falou Kakashi.
— Não, não são. — Papai interviu, e lançou um olhar azedo ao subordinado. — São apenas diferentes de nós, eles têm mais medo de nós do que nós deles.
— Como as cobras. — Falou a princesa. — As cobras não te atacam se você não ameaçá-las.
Kakashi bufou.
— A menos que estejam com fome.
— Hatake… — O rei lançou outro olhar, e o guarda calou-se na mesma hora.
O trio parou para pegar água no rio.
Sakura retirou os sapatos e segurou a barra do vestido marrom para molhar os pés, jogando a comprida trança por cima do ombro para que não molhasse.
— Vocês já entraram na floresta? — Perguntou aos homens que seguravam os cavalos próximos ao rio.
— Nunca. — Kakashi murmurou sem dar importância, acariciando a crina do cavalo enquanto o animal bebia água.
Papai ficou quieto por uns instantes, um sorriso nostálgico nos lábios.
— Uma vez. — Respondeu, e conquistou até mesmo a atenção do guarda. — Quando eu era jovem e bem imprudente. Devo ter sido um dos poucos que saiu vivo de lá.
O rosto da criança se iluminou, e ela bateu os pequenos pés na água.
— E como foi? É bonito?
— Olha, é muito bonito. Era primavera. Tinha pássaros, e o cheiro era uma delícia, e tinha cogumelos… Mas eu não fui muito longe.
— Você viu algum lobo?
Papai deu risada.
— Não, graças a Deus, não. Eu me toquei do perigo e sai correndo quando ouvi o primeiro uivo.
O guarda pulou para encarar o seu soberano, boquiaberto.
— Você escutou um uivo? — Indagou, surpreso.
— Escutei, sim. Antes de te pegar, eles te avisam para ir embora das terras deles. — E de novo, papai apontou. — Essa é a maior floresta do continente, e é toda deles, a gente precisa respeitar. Não dá pra sair se enfiando em casa que não é nossa, certo?
Cada vez mais maravilhada, era assim que Sakura se sentia.
Já havia entrado em florestas, óbvio. Só que aquela floresta em especial, com todo esse mito de lobos que se transformavam em seres humanos e a descrição que seu pai fazia, tudo a deixava tentada a pôr os pés ali.
— Eu queria muito entrar nessa floresta…
— Escutou o que eu acabei de dizer?
— Seria rapidinho. — Retirou os pés da água e ficou de pé, encarando o pai com entusiasmo. — É igual quando a gente vê uma caverna e quer saber o que tem dentro, entende? Mesmo que seja cheia de morcegos. Só pra matar a curiosidade.
— Nesse caso, é melhor ficar curiosa. — Kakashi respondeu, rude. — Você mata a curiosidade e os lobos matam você.
— É por isso, Sakura, que eu nunca te deixo sair sozinha. Você facilmente entraria numa enrascada dessas se não tivesse alguém te vigiando. — O rei disse. — Só me pergunto de quem você puxou esse seu jeito. Não é bonito para uma mocinha ser tão mimada e cabeça-dura.
A princesa empinou o nariz, detestava quando seu pai começava com aquela repreensão.
— Não sou mimada e nem cabeça-dura, só comentei sobre uma vontade minha!
— Uma vontade que pode te colocar entre a vida e a morte.
— Você mesmo disse que eles não atacam se você não mexer com eles! — Exclamou.
— E invadir as terras deles é o que? Pra eles, essa é a pior coisa que um estranho poderia fazer.
Após aquilo, Sakura ficou vermelha de tanta raiva. Desde que se lembrava, sempre fora assim, entupida daquele desejo incontrolável de explorar o mundo — e desde que se recordava, papai e Kakashi estavam ali ao lado, sempre prontos para segurar suas rédeas.
Era mimada e cabeça-dura, tinha noção disso, embora negasse a todo custo. Às vezes, pensava que seu pai e sua mãe tinham sido muito mansos na hora de criá-la.
Depois de lavarem as mãos e molharem os cabelos encharcados de suor, o rei Kizashi e seu guarda mais leal começaram a ajeitar as coisas para irem embora. Penduraram suas garrafas d'água, conferiram os estribos, a sela, e quando estavam prestes a subir de volta nos cavalos (esperando que a princesa fizesse o mesmo), ela ficou ali, parada.
— Estamos indo embora, filha. — O monarca chamou.
Ainda estava descalça, alguns metros distante do rio. Encarou os homens com a face neutra por uns segundos, e depois, dirigiu um olhar cativado à floresta.
Sem pensar duas vezes, a menina se pôs a correr o mais rápido que podia, abandonando tudo para trás como se sua vida dependesse daquilo.
— Sakura!!! — O rei e o guarda berraram, e foram atrás da menina.
Os cavalos pararam e ergueram-se sobre duas patas quando estavam prestes a adentrar o arvoredo, como se não quisessem colocar os cascos naquele território. Os homens quase caíram para trás, já a menina seguia em frente.
Praguejavam, sem acreditar na estupidez de sua princesa.
Enquanto isso, já sem fôlego, ela apenas seguia em frente. Ignorava o relinchar dos cavalos, ignorava o pai e Kakashi a ordenando para que voltasse.
Algo mágico retumbava naquele lugar, alguma coisa que a chamava.
Tentava se perder entre as árvores, seguia por direções aleatórias, sempre olhando para trás para garantir que não havia ninguém a perseguindo.
Após alguns minutos, parou com uma mão encostada em um grande tronco de árvore.
O cheiro que seu pai citou. Era cheiro de flores, um perfume doce que a primavera proporciona.
Sons. Abelhas, esquilos, pássaros.
Viu duas borboletas passarem em frente aos seus olhos, e não pôde evitar um sorriso admirado.
Coelhinhos ou lebres, não sabia a diferença. E o som das águas do rio.
Cogumelos crescendo em um tronco caído, uma carreira de formigas atravessando seu caminho.
Pedras, folhas e lama. Raios de sol atravessavam por entre os ramos e projetavam pingos de luz no chão, ardendo os olhos e iluminando seu rosto quando olhou para cima.
— Isso tudo é lindo demais.
"É tudo mágico demais!"
Conseguia até mesmo imaginar-se como uma fada que perambulava por um belo bosque, contente da vida.
Pegou um galho seco; sua varinha mágica.
Permitiu que sua mente divagasse. Lembrou dos musicistas ensaiando para seu baile de aniversário, e de boca fechada, começou a entoar a mesma melodia festiva.
Aquelas duas borboletas de antes a seguiam, uma azul e a outra branca, a adejar por sobre sua cabeça.
Perdida em devaneios, acabou tropeçando e pisando sobre uma pinha, emitindo um gritinho de dor.
Ao mesmo tempo, escutou não muito longe dali, um ganido acompanhado de rosnados e grunhidos de dor e raiva, um som animalesco que lembrava o de um cão, embora fosse muito mais alto.
Em um susto, a jovem princesa andou alguns metros à frente e afastou os galhos dos arbustos, deparando-se com um lobo cuja perna estava presa por uma armadilha.
Assim que a avistou, a criatura ergueu as orelhas e rosnou ferozmente. A criança, apavorada, primeiro teve o reflexo de arfar e querer correr, mas parou assim que escutou mais um gemido do animal.
Presa pelo que mais parecia uma armadilha de urso, a perna estava deslocada em uma posição estranha, e não importava o quanto puxasse e se torturasse, o lobo não conseguia se libertar.
Sakura cerrou os punhos.
— Você… é um homem-lobo, não é?...
Ele tinha quase o tamanho dela.
Ao invés de respondê-la, ele sentou e mostrou os dentes afiados, rosnando mais baixo dessa vez.
— Você consegue me entender?
Se era um homem-lobo, tinha consciência humana mesmo em sua forma lupina.
Devagar, Sakura começou a rodeá-lo de mansinho, analisando a situação e tentando pensar se havia uma maneira de soltá-lo. E em uma faísca repentina de valentia, começou a aproximar-se da fera machucada.
Conforme ela dava passos à frente, o lobo começava a rosnar mais alto, e a encolher-se amedrontado. Se não estivesse preso, teria saído correndo.
— Calma, calma — ela repetia. — Não vou te fazer mal.
Ele ganiu, e deitou a cabeça sobre as patas da frente, agora com as orelhas baixas e o corpo tremelicante.
— Calminha…
Se qualquer adulto a avistasse ali, certamente a princesa seria agarrada pelo braço e arrastada de volta para o palácio, onde ficaria de castigo em seus aposentos por vários dias. Estava colocando a própria vida em perigo — estava em território de lobos, afinal de contas. Poderia simplesmente olhá-la e decidir que seria sua próxima refeição.
Ainda assim, Sakura não achava que aquele lobo assustado poderia matá-la. Ele parecia mais interessado em tentar fugir do que em tentar atacá-la.
Dando um voto de confiança às cegas, Sakura ajoelhou-se sobre o próprio vestido e engatinhou para bem próximo do lobo, e o lobo petrificou no mesmo lugar, os olhos negros a encarando com desconfiança.
Com jeito e muita força, ela conseguiu abrir a armadilha de aço e libertar a perna do lupino, que se afastou no mesmo momento, a pata traseira mancando.
No processo, uma das pontas afiadas do mecanismo cortou profundamente a mão da criança, que ficou de pé rapidamente, incomodada com a ardência.
— Tudo bem agora? — Perguntou em um sussurro receoso. — Não vai me atacar, não é?...
O lobo andou ao redor dela, gemidos dolorosos sendo irrompidos pela garganta vez ou outra e o olhar ainda desconfiado, farejando o ar e o mato a todo instante.
Ela moveu sua atenção de volta à armadilha.
— Me disseram que poucos saem vivos dessa floresta, achei que ninguém entrasse aqui por conta disso, nem caçadores… — comentou para o animal. — Se tem uma, pode ser que haja mais por aí. É um perigo para você e para os seus amigos lobos.
A desconfiança nele deu lugar a uma certa curiosidade, ela podia notar. Provável que nunca tivesse visto uma criança totalmente humana de perto antes.
— Eu não sou uma caçadora, tá? Me desculpe por entrar aqui desse jeito, foi errado. É melhor eu voltar.
Ela começou a seguir pelo mesmo caminho pelo qual tinha vindo, porém, parou ao escutar os sons dos passos hesitantes dele, e virou-se para vê-lo.
— O que foi?
Ele não soltou som algum, e de forma lenta, continuou a chegar mais perto.
A criança ficou arrepiada de medo, enquanto a fera começava a cheirá-la: seus pés, a saia de seu vestido específico para o ar livre, suas mãos.
Estendeu uma das mãos vacilantes, e manteu-se silenciosa enquanto o animal examinava a pequena ferida aberta. Ele lambeu a gota de sangue que se formava do machucado, um agradecimento singelo pelo ato de benevolência daquela curiosa figurinha humana.
— Por que não toma sua forma humana? — Arriscou-se a perguntar. — Não está mais com medo de mim, está?
Sorriu, dominada por fascínio.
O lobo ergueu os olhos que mais pareciam um par de pedras ônix, ou o universo escuro.
Já sem medo, ela estendeu mais uma vez a mão para tocá-lo, e seu afago foi aceito de bom grado, como se tivesse mesmo conquistado a confiança de um licantropo.
Assim que sua mão pousou sobre a cabeça da fera, o sorriso da menina se desfez.
Em seus olhos, o reflexo de mil vidas antigas surgiu como um lampejo de luz. Memórias adormecidas vieram à tona, com centenas de vozes e nomes familiares, rostos, sentimentos, todas lembranças despertadas inconscientemente, como se já houvessem vivido aquele mesmo momento antes.
Em sua mente, veio a imagem de um grandioso lobo negro, com pelagem espetada, músculos protuberantes e os mesmos olhos obscuros que contemplava no momento, talvez tratasse-se de uma previsão do futuro, aquele lobo muito maior e mais assustador do que era ali, um lobo adulto; e aquela mesma floresta em tempo de inverno, cercada por soldados e uma guerra entre humanos e lobos.
Assustados, ambos, lobo e humana, afastaram-se no mesmo momento, tudo tão abruptamente que a criança chegou a cair sentada no chão, olhos cheios de lágrimas devido ao espanto. O lobo, por outro lado, a encarava sem reação, como se tivesse compreendido o significado de tudo aquilo.
De repente, movimentos bruscos na mata fizeram o lobo se atentar. Ele saltou para longe e desapareceu entre as árvores, tão rápido quanto os olhos dela puderam captar.
O guarda de cabelos em prata materializou-se atrás da menina e agarrou seu pulso.
— Você é louca?! — O guarda berrou. — Você quer se matar?! Eu acho que você quer se matar!!!
— Desculpa! Eu não faço mais! Me solte! — Ordenou.
— É claro que não vai fazer mais, porque seu pai está furioso e nunca mais vai te trazer para essas bandas! Nunca mais!
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