- O que é isto ! - Stanley grita do outro lado do cômodo - O que tá acontecendo ?
-Eu posso explicar - disse Kyle em um tom envergonhado
- Que merda você fez, Kyle ? - o ruivo não conseguia falar - Que merda você fez ?
- Acorde e me responda - Stanley dá um tapa na cara do marido mas isso não o tira de seu transe- que merda você fez ?
- Eu não queria, eu só….
- Você vai dizer que isso tudo foi um acidente, né ?
- Nã-nã-não! e-eu só não imaginei que….
- Escuta aqui- Aquela era primeira vez que Kyle ouviu Stan gritar - Não temos muito tempo, tenho que levar Butters para o hospital e por isso eu não posso mostrar nem um por cento de raiva que estou sentindo agora. Mas saiba que se não fosse por isso….você iria ver o que eu sou capaz de fazer
Depois de uma tentativa de se acalmar Stanley se aproxima do ruivo pondo as mãos em seu rosto, se aproximando e olhando bem no fundo de seus olhos. Os olhos de Stan que já eram pútridos, agora esboçavam a verdadeira morte, Kyle jurou que naquele dia ele havia visto o seu próprio cadáver dentro das pupilas do esposo.
- E nunca mais toque em Butters ! - por fim gritou o moreno. Se dirigindo ao criado e o levantando com os braços.
Ele saia em passos lentos, carregando, além do peso de Butters, a dor e responsabilidade que sentia. Kyle só pode ouvir o último barulho de um carro partindo, e ficou lá, sozinho, sem nada que pudesse fazer.
Depois disso o ruivo foi muito mais prático, deitou-se sem muita cerimônia e fez com que seu subconsciente, já extremamente abalado, tomasse conta do controle.
Naquela noite Kyle foi atormentado por diversos pesadelos. Via o sangue de Butters se espalhar pelo chão, se ramificando em grandes raízes, que enroscavam em seus pés e o arrastavam para baixo.
Ao mesmo tempo, Stanley surgia do chão, em uma titânica forma demoníaca, que com suas garras compridas, tentava agarrar o Marsherito a todo custo. E a única coisa que Kyle podia fazer, era correr e fugir.
Mas fugir não estava adiantando de nada, quanto mais corria mais ameaçadores eles ficavam. Então talvez a resposta fosse outra e quando Kyle parou e pensou naquilo que seria a solução para todos os seus problemas, o ruivo acordou, e não se lembrou de mais nada.
Ao despertar ele parecia muito mais saudável que antes. Andou até a cozinha e por um momento ficou feliz por Butters não estar mais lá. Começou a cozinhar sozinho, algo que estranhamente o deixava mais alegre.
Enquanto se alimentava, Kyle ouviu o barulho discreto da campainha. Por um momento ele se perguntou quem seria o sujeito a importuná-lo logo de manhã, mas como percebeu que não poderia ficar refletindo o dia todo, ele atendeu a porta.
Do lado de fora Wendy sorria com um olhar tão gélido que deixou Kyle um pouco assustado. Mas ele não deixou de abrir a porta, até porque, ela ainda era sua amiga.
- Vejo que machucou seu criado - a mulher comenta ao adentrar a casa - Stanley está com vergonha de você.
- Foi sem querer eu não sabia que…
- Eu já imaginava, ninguém agride alguém por motivos racionais, se fosse intencional você já teria o matado ou o sequestrado e tortura-ló embaixo de seu porão, até que ele parasse com seja lá qual fosse o problema que te incomodava. Ninguém em sã consciência bateria em um homem sabendo que ele poderia denunciar tal agressão, ainda mais com o objeto for tão simplório como uma taça. Então é claro que foi irracional.
- Wendy você…- Ela falava seus discursos da maneira mais didática e neutra possível, parecendo nem sentir o peso de suas palavras.
- O que houve ? Só estou formulando hipóteses, afinal, é assim que se inicia todo método científico - Ela movia pouco a boca, mas não era sucinta em suas observações - E também, quem me deve respostas é você é. Porque fez isso com o coitado ? Ele só era um empregado.
- Acho que esta é uma questão subjetiva demais para eu te explicar
- Não me menospreze, eu estou muito fissurada nesses assuntos também. Ultimamente estou andando pelos subúrbios de Birmingham e estou estudando os pobres. Essa massa que é tão escassa de recursos, que somente o desespero e a esperança é a única coisa que os move para frente. É uma tristeza e é sofrida só a reação que se tem diante deles. Por isso, talvez a mecanização fosse o essencial para esterilizar todo esse sofrimento. Imagina só, uma massa mais produtiva, ausente de emoções, peças perfeitas para o funcionamento de uma fábrica. O encontro entre a física e a psicologia nunca poderá ser tão lindo
- Acho que nunca vou entender suas teorias.
- Igual nunca vou entender o porquê daquele seu amigo estar num bordel.
- Qual amigo ?
- Aquele loiro com quem jantarmos
- Ah, ele sempre tem suas decaídas
- Nossa, não imaginava que se relacionava com esse tipo de gente….
- Acho não conhecemos nada um do outro
- Verdade, mas às vezes não precisamos conhecer as pessoas se sabermos que com elas estará tudo bem - por momento ela tentou disfarçar um sorriso, mas Kyle percebeu o ato - Mas fico feliz de que tenha esses amigos, deve ser algo que expande a mente, as vezes eu queria que Stanley fosse assim também.
Quando Kyle ouviu o nome de Stanley, seu sangue gelou, não queria lembrar dele agora. Wendy percebendo o terror na face do outro, se senta no primeiro sofá que encontra, voltando a face gélida novamente
- Quero que saiba que estou aqui a mando de Stanley, ele falou para eu lhe fazer algumas perguntas e te entender o suficiente para depois receber minha opinião franca sobre o assunto. Ele falou para eu ficar de olho em você, mas você é adulto e já sabe se cuidar - ela se levantou e saiu andando como se aquele diálogo nem tivesse existido - Já dei meu recado, agora irei até meu laboratório, Stanley me convidou para ir a Londres com ele e eu não quero parecer ignorante. Vou ficar aqui o dia todo e se possível irei dormir em alguns dos quartos, amanhã Stanley irá partir e quem sabe ele terá vontade de ver sua cara, se quiser pode se desculpar com ele também
Ela estava bem afastada mas de repente ela deu dois passos para trás:
- ah, antes que eu me esqueça, Bebe vai chegar daqui a duas horas, tudo bem se ela dormir comigo ?
- Claro… só não fiquem tão à vontade
Wendy demorou para entender o recado, mas quando entendeu, ela ficou com a face toda corada e logo apressou o passo. Kyle ficou feliz por finalmente estar sozinho.
Naquela quietude, Kyle aproveitou para dar uma faxina em sua casa. Agora que Butters não estava mais ali, o ruivo podia explorar a casa sem sentir aquela sensação de concorrência. Ele demorava enquanto limpava as cômodas e esfolava a sua mão toda vez que passava por aqueles cantinhos que acumulam sujeira. Mas pelo menos estava sozinho, e estava feliz assim.
Passando pelos os lugares, Kyle não pôde evitar de se deparar com seu destino. Mexendo em uma cômoda logo à entrada, ele encontrou aquele envelope com desenhos negros, aquele que anunciou a morte do seu não tão amado pai. Por um momento, Kyle respira fundo e guarda o envelope embaixo do sobretudo. Não poderia mais fugir de suas responsabilidades.
Então se preparou para sua jornada, foi para a cozinha e preparou uma improvisada alimentação, a qual ele insistia ser melhor do que a do criado, e trouxe as coisas mais importantes consigo.
Colocou a Ushanka na cabeça e zarpou sem muitas preocupações pelas ruas da cidade.
Passou pelo cemitério o qual foi enterrado Garrison e ficou um bom tempo parado diante o túmulo. Lembrou-se do jeito ranzinza do professor e até se perguntou se ele não estava se tornando assim também. Sabia que se Butters estivesse do seu lado ele o confirmaria, mas Kyle não estava afim de ouvir essas verdades.
Ele demorou para sair dali, a brisa úmida de um dia nublado lhe dava alívio e as últimas lembranças com Garrison sempre lhe foram reconfortantes. Então quando voltou a ficar frente a frente com o tutor, não deixou de soltar algumas palavras e de possivelmente ser conhecido como um louco que dialoga com caixões.
Mas Kyle sabia que não poderia ficar ali para sempre, quando ele deu o primeiro passo para fora, ele sentiu uma tremenda dor no peito, mas depois tudo isso, ele conseguiu o seu bendito alívio, quando finalmente chegou na amada estação de trem. Aquela que o levou até a sua casa e aquela que o levou até Stanley.
Kyle aguardava ansioso pela chegada da locomotiva e quando a máquina chegou, o ruivo soltou um pequeno sorriso. E a partir dali, ele começou outra jornada.
Quando pousou em seu destino Kyle pode perceber que aquela cidade nunca mudaria. Tinha uma ou outra loja diferente, mas a essência continuava a mesma.
Sua cidade natal, apesar de lhe causar muitas tristezas, por algum motivo lhe dava uma certa curiosidade. Ele olhava aquelas casinhas estáticas e desejava morar lá, mas naquela altura do campeonato, o ruivo já não sabia nem mais se iria sobreviver quando Stan o encontrasse novamente, então talvez fosse uma boa ideia rever os seus pais.
Em um misto de interesse agonia, o Marsherito se aproximava cada vez mais do cemitério. E quando entrou lá, pode ver as lápides arranhadas e aquele clima vazio e observador que aquele lugar emanava.
Foi andando distraidamente, até notar um jovem de cabelos negros que olhava fixamente para a copa das árvores tão, que constrastavam no local. Kyle ficou parado e continuou a observar o menino, até que finalmente ele reconheceu aquele rosto, tão jovem, mas tão insalubre.
- Ike ? - por fim perguntou o ruivo
- Irmão Kyle ? - ele se vira para o irmão mostrando um genuíno sorriso de olhos - que bom que veio, papai iria gostar de te ver.
O caçula leva o primogênito até uma tumba bem atrativa, que parecia brilhar diante das outras. Ao fundo, Kyle pode ver uma mulher criando uma grinaldas de flores e logo pode reconhecer a sua mãe, chorando pelo marido.
- Eu posso falar com ela ? - Pergunta Kyle meio inseguro
- Não só pode como deve, ela há anos está indignada com você, talvez nesse dia tão difícil, a única coisa que a aliviaria seriam respostas sinceras.
- É tão difícil dar respostas sinceras
- As respostas sinceras nunca são difíceis. O difícil é interpreta-las corretamente - Ike tenta se aproximar do irmão. ficando na ponta dos pés - Vai lá, se precisar de mim é só gritar, eu vou te ouvir.
O ruivo apenas assentiu com a cabeça e Ike voltou a observar novamente aquela árvore. E quando ninguém estava olhando para o mais novo, uma lágrima começou a escorrer de seus olhos.
Kyle se aproximava juntando as mãos e as contorcendo em movimentos repetitivos. Ele se curvava e muito suor pingava do rosto. Quando chegou perto da matriarca ele apenas se sentou e esperou que o tempo fizesse seu papel.
-Seja bem vindo meu filho. Fico feliz que tenha vindo, estava sentindo a sua falta - a mulher não parecia nada feliz. Sheila estava com o rosto neutro e estático, algo que o Marsherito nunca imaginaria de uma mulher tão expressiva.
- Obrigada mãe - Era nessas horas que Kyle preferia ficar quieto . O que mais ele deveria dizer ? - Eu queria poder reencontrar meu pai.
- Ele também queria - a mãe finalmente olha na cara do filho, dessa vez o ruivo pôde perceber uma coisa, os olhos dela estavam marejados - acredite se quiser, mas ele gostava de você.
- Eu sei mãe…
- ….mas você não gostava da gente, né ? - Sheila o interrompe e Kyle arregala os olhos - pode falar, ele não vai nos ouvir e eu já aceitei os fatos.
O filho preferiu ficar calado, ele teve uma infância difícil, mas não era fácil assumir aos pais tudo o que sentia. Apesar dela estar frágil, Kyle sempre teve muito medo de sua mãe e nunca se sabia quando ela poderia mudar de temperamento e começar a surra-lo dentre as lápides.
- A perda do seu pai está sendo muito difícil, mas nunca foi tão difícil saber que você me odiava tanto - a mulher começa a falar, novamente olhando para o caixão - Eu te criei dentro de meu ventre e te cuidei até virar moço e quando tu finalmente pode andar com as próprias pernas você me abandona. Gerald sempre esteve ao meu lado mas você nunca nem se importou em me dar um único sinal de vida, nem que seja uma pensão ou uma lembrança. Nada, já era o suficiente para você.
- Vamos ser francos, você fez da minha vida um inferno, você me machucou e eu só pude andar com minhas próprias pernas pois Stanley apareceu em minha vida, senão, acho que eu estaria com vocês até hoje, ou talvez eu teria uma mulher recatada em meus braços, mas nunca seria feliz. Vocês só me fizeram mal, por isso, não lhe dei respostas, eu tinha medo do papai mas principalmente de você, mãe.
- Mas eu só fiz isso pelo seu bem, eu só queria o melhor para o meu filho.
- Mas melhor para mim foi algo que você nem esperava, não é ? fiquei com um homem, vivi um local luxuoso, consegui...
- Mas eu sempre respeitei a sua escolha e…. - interrompe a ruiva
- Se você nem respeita o meu tempo de fala como quer que eu te respeite - Kyle respira - Mas, apesar de tudo, eu acho que talvez eu volte para cá, você realmente precisa de ajuda e se você realmente quer o melhor para mim, então aceite que eu more ao seu lado e me respeite com isso ?
- Óbvio que eu irei, você sabe que eu faria de tudo para ter você de volta...mas e seu marido ?
- Estamos brigados, talvez a gente se separe
- Que horror -a mulher colocava as mãos na cara como se um monstro fosse atacá-la
- Desculpa perguntar isso agora mas...quanto é a herança do papai ?
- Tenha um pouco de respeito, falando assim parece um mercenário. Eu não te criei pra ser desse jeito.
- Não é isso, eu só estou pensando, se com o dinheiro dele eu poderia comprar a minha casa própria
- É claro que pode, inclusive deixe isso comigo, farei questão de comprar uma casa bem do meu ladinho, assim a gente vai se ver todos os dias - de repente a mulher abraça o filho como se nunca mais fosse vê-lo.
- Sério mãe ? Obrigada - Kyle sorria tanto, aquela seria a atitude mais bondosa que a mãe teria feito em toda a sua vida
- Você sabe que eu faria muito mais por você - de repente, ela solta o jovem , dessa vez olhando para baixo - Ike vai ficar muito feliz com essa notícia e….. seu pai estaria muito orgulhoso de você.
Kyle imaginou se isso realmente seria verdade, então ele apenas fez um sorriso falso, na tentativa válida de dar mais alegria para aquela mulher volátil que era sua mãe.
Depois disso, os dois se despediram, sua mãe e irmão o acenavam fofamente e Kyle ia se afastando com um sentimento leve na alma. Ele aproveitou para dar a volta naquela cidade e percebeu o quanto a sua terra era pacífica e o quanto ele precisava de paz. O ruivo foi de lojinha à lojinha comprando um pouquinho de tudo, às vezes ele comprava doces, às vezes ele comprava tecidos, mas teve um material que ele fez questão de comprar, o algodão, o qual ele guardou com muito carinho.
Foi triste se despedir de Cleobury Mortimer, mas foi necessário. Kyle foi até a saudosa estação de trem e partiu sem deixar rastros. Chegou em casa e percebeu o quanto aquela casa estava escura, imaginou que naquelas horas Wendy já devia estar descansando e que no final ele nem precisou se incomodar com a presença de Bebe, talvez aquele fosse o seu dia de sorte.
Kyle finalmente pode ter um dia de paz, um dia que não focou em Stan, nem em Kenny e nem em ninguém. Aquela paz e aquela obrigação de fazer nada, era a coisa que ele mais precisava no momento e o ruivo sabia que mesmo estando na hora de dormir, os próximos dias ainda continuariam a ser o que era antes e que aquele momento foi uma exceção, o único momento de descanso, daquela mente cativa.
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