Depois que seus dentes se fincaram em minha pele, imediatamente esqueci da perna quebrada e do corte longo que descia por meu peito e minha barriga, assim como o da minha cabeça. Tudo se concentrava no fogo puro que estava correndo por minhas veias, tentando me destruir de dentro para fora, rasgando meus músculos e fritando meus ossos.
Ainda assim, fui capaz de identificar algumas das coisas que aconteciam ao meu redor.
Em seguida que escutei um barulho ensurdecedor se espalhando pelo estúdio, os dentes de James saíram do meu braço com uma guinada violenta quando um vulto se chocou contra ele e ambos desapareceram em algum canto escuro. Me debati em minha própria poça de sangue, agitando meus membros para tentar sair da piscina vermelha que se formou no assoalho.
Ouvi outro som alto e demorei para compreender por completo que uma das paredes de concreto havia desabado a oeste de meu corpo estirado no chão. Uma nuvem de poeira se instaurou quando me virei, lutando inutilmente para conseguir fugir, incapaz de me levantar, os pensamentos completamente desordenados e confusos. Com extrema dificuldade consegui ficar de bruços, usando meus cotovelos para tentar sair do barulho de luta que chegava de todos os lados.
Foi então que o vi, parado de pé em minha frente, nítido pela luz do sol que entrava por algum buraco no canto e destacava seu corpo na penumbra; a urgência causada pela dor em meu braço dando uma trégua ao vê-lo.
O caçador me encarava, os olhos tão vidrados e o corpo tão tenso quanto antes; só que agora as íris eram de um castanho escuro e os cabelos de um tom avermelhado estavam meio bagunçados. As feições delicadas do rosto de mármore me eram extremamente familiares e uma parte do meu cérebro enevoado reagiu à visão dos lábios cheios e macios.
Edward Cullen era cauteloso ao me ver no chão, admirando meu corpo caído inutilmente com seus olhos geralmente sedutores — agora, pareciam famintos, carregados de um olhar assassino, exatamente como o que ele lançara na minha direção durante nosso primeiro dia de aula juntos, quando fomos obrigados a dividir o mesmo balcão no laboratório da escola.
Só depois que ele confessara estar sentindo uma vontade avassaladora pelo meu sangue naquele dia — correndo por minhas veias e escondido debaixo da minha pele, o instigando a me rasgar com os dentes para sugar cada gota — foi que entendi sua intenção mortal. Agora, eu nadava de bruços no próprio vermelho, me engasgava com ele, ainda jorrando para fora de mim e se espalhando em minha volta.
Eu não conseguiria fugir, completamente indefeso do jeito que estava. Mas diferente de como havia sido com James, eu não sentia medo da estátua que se assomava em minha frente agora; no fundo, meu coração acelerado foi tomado por uma tranquilidade tangível, ciente de que ele jamais me machucaria.
E era como se esse sentimento tivesse se projetado no ar e penetrado o corpo de pedra dele, porque no instante seguinte seu rosto glorioso e angelical estava muito perto do meu e senti suas mãos frias em meus ombros conforme se ajoelhava próximo a mim. Ele falava comigo, o semblante cheio de preocupação e não mais sedento por meu sangue, mas o barulho de conflito que se espalhava para todos os lados tornava nossa comunicação impossível.
Eu não conseguia responder.
Tudo o que fiz foi usar as forças que me restavam para erguer a mão — a que não queimava com o fogo —, na direção do rosto dele. Meu dedo roçando seus lábios cheios deixaram um rastro vermelho ao contornarem a linha tão conhecida de sua boca.
Mas seu olhar continuou pregado no meu, indestrutível e irrefreável, sendo incapaz de soltá-lo. E então ele virou meu corpo e me deitou outra vez de costas no chão. Encarei o teto meio iluminado, meus ouvidos zunindo, minha cabeça se remexendo para todos os lados ao procurar por ele, a queimação em meu pulso voltando a arder como nunca.
Pensei que fosse ficar preso na sensação de sofrimento solitário para sempre ao retomar a dolorosa tarefa que era gritar, até uma voz amiga chegar em meu ouvido, finalmente furando a barreira torturante que som nenhum penetrava.
— Minha nossa, ele perdeu muito sangue! — disse uma voz fina que eu tinha ouvido há quase uma hora atrás, mas completamente apavorada e temerosa agora.
Ouvir Alice falando me deixou instantemente mais calmo.
— Tranque a respiração, vai ajudar. — Essa era serena demais e só podia ser a de Carlisle.
Até que o tom doce e distorcido de Edward finalmente chegou até mim e cada parte de meu corpo estraçalhado reagiu a ele:
— Ben, estou aqui com você. — Se não tivesse passado os últimos dias tão obcecado pela ideia de ouvir essa mesma voz outra vez, dificilmente entenderia o que suas palavras significavam, tamanho era seu tom de choro; mas é claro que consegui compreender cada uma delas. Ele pareceu falar com outra pessoa agora: — Pode salvá-lo?
Não ouvi a resposta. Senti dedos frios pressionarem minhas têmporas no momento em que o barulho estrondoso ao meu redor aumentou significativamente, mais paredes aparentemente sendo derrubadas, gritos animalescos e ferozes disputando espaço pelo ambiente apertado.
— Droga, ele quebrou a perna. O corte no peito não foi tão profundo, mas vai precisar de pontos. A cabeça também está ferida. Alice, minha maleta, por favor — disse a voz serena. — Ben, sou eu, Carlisle. Consegue me ouvir?
Eu não conseguia me mexer direito, então não tive certeza se minha resposta fora enfática o suficiente, mas sacudi a cabeça para chamar sua atenção. É que meu pulso ainda estava ardendo como o inferno, e minha comunicação agora se resumia a urrar de dor de forma incessante, debatendo meu corpo ao sentir minhas próprias células sendo fritadas dentro dele.
Felizmente, isso acabou ajudando.
— Ele mordeu o Ben — constatou Edward de repente, abismado e em pânico. — Ele vai se transformar, Carlisle. Não posso deixar isso acontecer.
Embora o fogo se alastrasse com força por minhas veias, notei meu peito nu sendo perfurado por alguma coisa enquanto conversavam em algum lugar fora do meu campo de visão, completamente desnorteado pela vertigem e atrapalhado pelas lágrimas que se acumulavam em meus olhos.
A voz fina de Alice soltou a soar:
— Talvez seja a única maneira do Ben se salvar.
Edward vociferou, as palavras se espalhando altas o suficiente para se compreender cada uma de suas letras raivosas:
— Não, Alice!
— Eu vi isso — insistiu ela. — Você consegue ver o que se passa em minha cabeça, Edward. Consegue ver os olhos vermelhos dele, a pele pálida. Vai acontecer. — Suas palavras se misturavam em minha mente graças à confusão e o barulho que eu mesmo fazia ao gritar de forma desesperada, mas consegui compreendê-las o suficiente para entender o que aconteceria comigo se nada fosse feito.
O reflexo que eu havia enxergado no espelho do banheiro do aeroporto piscou diante de meus olhos embaçados; só que agora duas pupilas vermelho-vinho se destacaram no rosto liso e pálido. Apesar de estar me debatendo no líquido pegajoso debaixo de mim, gritando de desconforto para o caos absolutos que era o estúdio de balé, senti um arrepio descer por minha espinha.
A resposta de Edward soou mais calma dessa vez, porém igualmente irritada:
— A menos que tomemos outra decisão.
Alice não respondeu, mas a voz de Carlisle voltou a falar outra vez, e ele parecia concentrado em alguma outra tarefa invisível para mim no momento — e eu tinha quase cem por cento de certeza que tinha tudo a ver com a dor aguda em meu peito e em minha barriga.
— Isso, podemos reverter a situação — reconheceu. — Mas será extremamente difícil para você, Edward.
Edward voltou a exclamar e consegui aproveitar quando as lágrimas deram uma trégua o suficiente para encarar seu rosto de mármore. Os traços delicados por onde eu costumava contornar meus dedos não estavam muito longe, e tudo o que eu queria fazer no momento era tocá-lo.
— Eu faço qualquer coisa — informou. Os soluços do anjo eram incessantes à medida que me virava cada vez mais em sua direção. Ver sua face contraída de dor e manchada de vermelho, logo acima da camiseta branca completamente encharcada com meu sangue, ardia mais em meu íntimo do que a queimação que se espalhava rapidamente. Só que seus olhos não estavam em mim, mas em meu pulso firmemente seguro entre suas mãos de dedos longos. — Qual é o plano?
Carlisle parecia temeroso ao contá-lo:
— Você pode sugar o veneno, a ferida está bem limpa — respondeu, sem rodeios.
Edward se assombrou.
— Tem certeza de que vai funcionar? — Só que a resposta de Carlisle foi silenciosa demais para que eu pudesse entendê-la. — Não tem como Jasper acalmá-lo?
Alice voltou a falar, se lamentando:
— Ele não aguentaria a sede.
— É óbvio. Sou um idiota — concluiu Edward, completamente perdido com o que falava. Foi então que seus olhos finalmente encontraram os meus e ele me pegou o encarando. Eu não fazia ideia de como me parecia no momento, mas é claro que minha expressão estava contraída em um grito de dor interminável, coberto de vermelho e desesperado; só que eu esperava transmitir através do meu olhar que entregava minha vida nas mãos dele, confiando nele o bastante para tal. Quando Edward segurou melhor o meu pulso mordido com delicadeza diante de si, notei que havia compreendido a mensagem. — Ben, aguente firme. Você não tem noção do quão forte é. Tudo isso vai acabar logo.
Eu assenti; ou, ao menos pensei que tivesse feito isso, mas com meu corpo vibrando contra o chão inundado de sangue era difícil ter certeza.
Carlisle voltou a falar, mais alto e com uma imposição nada característica na voz:
— Edward, se não fizer isso agora, pode ser tarde demais.
Eu ainda encarava o sangue — que estivera em meu dedo quando o toquei há poucos minutos — em seus lábios cheios, próximo ao meu pulso ensanguentado. Seus olhos estavam nos meus quando senti porcamente seu hálito frio se pregando em minha pele.
Foi exatamente como James havia feito há poucos minutos, saboreando o momento antes de me abocanhar. Só que eu não temia por minha vida, não sentia um medo paralisante de morrer.
Eu sabia que, seja o que for que Edward estivesse prestes a fazer, só podia ser minha salvação.
— Ben, volte para mim — disse por fim, antes de envolver a ferida com os lábios.
Foi então que tudo piorou mil vezes, e a tranquilidade que eu estava sentindo foi expulsa de mim em segundos.
Todo o barulho ao redor foi apagado e as vozes abafadas, todos os meus sentidos se concentraram em uma única e inquietante coisa: dor. Não era mais como se a queimação em meu pulso fosse se espalhar por cada centímetro de mim, mas como se Edward estivesse sugando cada gotícula de vida em meu corpo pela própria boca contraída.
Fechei meus olhos e gritei, fechando minha mão com força em um punho cerrado. Me senti esvair, esvaziar e ser sugado até não restar absolutamente nada, mas resisti. Minha confiança por ele seguia inabalada, minha vontade de entregar minha vida para ele ainda de pé, ciente que eu havia ido longe demais para poder sair dessa sozinho. Precisava sacrificar meus anseios por isso, exatamente como estava disposto a fazer por minha mãe.
Tudo dependia de Edward agora.
E ele parecia ter ciência disso, porque todo o cuidado era pouco: os lábios na ferida, os olhos nos meus, atentos. Até que a dor foi diminuindo, assim como meus gritos, o barulho de batalha voltando até meus ouvidos, as vozes aflitas se infiltrando outra vez pela névoa e chegando até mim.
Quando finalmente me soltou, ele disse, os olhos desviados dos meus:
— Estou sentindo o gosto da morfina. Acho que deu certo.
Sorri para ele minimamente, sentindo que a queimação havia passado, mesmo que minha perna ainda doesse, meu peito parecesse rasgado ao meio e minha cabeça estivesse cortada.
— Tô… melhor… — Minha tentativa de falar alguma coisa com veemência foi simplesmente ridícula.
Pelo menos pareceu funcionar, porque Edward sacudiu a cabeça ao me encarar, sorrindo com o semblante que lamentava.
— Você vai ficar bem, não se preocupe — disse, minha mão molenga sendo beijada por ele, seus olhos se aproximando quando começou a tocar meu cabelo molhado e se inclinar na minha direção.
— Obrigado… — sussurrei.
Eu não conseguiria jamais parar de olhar para seus traços, para a linha de seus lábios entreabertos. Era como se Edward fosse a personificação da perfeição, e embora eu sempre soubesse disso, ficava cada vez mais claro para mim agora à medida que o tempo passava e me sentia mais vivo ao lado dele, recuperando alguma força outra vez.
Mas a voz de Alice era urgente o suficiente para me libertar de nosso momento particular de conforto:
— Precisamos sair daqui logo — informou. — A polícia local está quase nos alcançando.
Tentei falar, mesmo com a dor que ameaçava me rasgar ainda mais:
— Ele me enganou… minha mãe…
Edward voltou a acariciar meu cabelo encharcado pelo sangue quente e pegajoso, assentindo para mim.
— Nós sabemos, Ben. Ouvimos tudo pelo celular.
De repente, tentei virar meu rosto para outros lugares ao procurar os traços de fada, mas não consegui.
— Alice… ele… conhecia…
Edward se inclinou ainda mais, sorrindo abertamente com seu sorriso tingido de vermelho.
— Ouvimos tudo sobre isso também. Fique tranquilo. Pode descansar agora — declarou, completamente encantado ao mirar meus olhos semicerrados e sorrir outra vez, sussurrando para mim de forma atrapalhada: — Você foi incrível, Ben. E estúpido demais. Foi tão corajoso e inteligente ao enganar ele… Mas foi burro por se fazer de isca… Eu… — Ele se calou, incapaz de continuar. Seu hálito doce se deslocando até meu nariz fez meus músculos acordarem.
Carlisle voltou a falar com mais urgência, finalmente abandonando meu peito machucado e se colocando a fisgar minha nuca em poucos segundos:
— Precisamos ir! — disse e então concluiu a tarefa.
Mas meu nariz me obrigou a franzir levemente as sobrancelhas assim que algo se sobrepôs ao cheiro inebriante de Edward.
— Gasolina…
O anjo ruivo voltou a se dirigir a mim:
— Precisamos ir agora, Ben.
Fechei meus olhos, exausto demais para querer ir embora.
— Descansar… — resmunguei.
— Pode descansar. Vou carregar você — informou gentilmente, e notei em algum canto da minha mente que estava deixando o chão de madeira. Meu corpo parecia nu, mas não liguei ao ser prensado contra o de Edward, a frieza chegando até mim juntamente com o aroma doce que fazia eu me sentir melhor. Sua boca depositou um beijo suave em minha bochecha e a voz musical se encaixou em meu ouvido: — Durma, meu amor. Eu protejo você.
Eram as mesmas palavras que havia me dito quando me resgatou do beco em Port Angeles, completamente machucado pelas mãos de agressores covardes. Eu não sabia se eram reais ou se estava alucinando, minha mente relembrando aquele momento justamente por ser tão parecido com o que aconteceu hoje.
Mas de qualquer forma, decidi que não ligava. O obedeci, deixando minha mente descansar ao ser embalada para um local de paz, ciente de que eu estava sob a proteção dele agora e nada mais no mundo poderia me causar mal algum.
E se isso não fosse de fato verdade e existisse alguma coisa que me roubaria dele, pelo menos ainda teria a imagem do rosto glorioso do incrível anjo por trás de minhas pálpebras cerradas, mesmo que jamais voltasse a abri-las outra vez.
Isso era o suficiente.
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