AS OUTRAS VOLTARAM PARA A ÁGUA, mas eu fiquei observando, escondida atrás de um arbusto perto da escola, até Chiara despertar. Ainda não havia amanhecido quando ela acordou sobressaltada, claramente desorientada.
Chorou um pouco e, depois de um tempo, alguém a ouviu. Abraçando forte a si mesma, Chiara foi conduzida para dentro do colégio por uma mulher mais velha.
Com ela segura lá dentro, comecei a caminhar. O cemitério estava deserto na manhã de Natal. Ajoelhei diante do túmulo de Loren e arranquei algumas flores do ramalhete que tínhamos deixado lá no dia anterior. Achei que ela não se importaria em compartilhá-las com a mãe.
Deixei-as no túmulo de Chiara, consciente de que aquela garota tinha partido de verdade. Subi o capuz quando a neve começou a cair e fui em direção à Água.
Nadei de volta à Carolina do Sul me sentindo só. Já tinha visto Ana e Malena passarem pela transformação, mas a sensação foi diferente dessa vez.
— Claro que foi — a Água disse, lendo meus pensamentos. — Foi ela quem acompanhou você por mais tempo. Karol sentirá o mesmo quando for a sua vez.
— Faz sentido. A minha sensação é que vai sempre faltar alguma coisa a partir de agora.
— Ela se isolava tanto que tenho certeza de que, quando você chegar em casa e continuar a ensinar Camila, vai ter a impressão de que nada mudou.
— Espero que sim.
Em casa, todas estavam em clima de festa e trocavam presentes entre si.
— A sua pilha de presentes está ali —Karol cantarolou, implorando que me juntasse a elas.
— Eu sei. Também tenho alguns para vocês, mas antes preciso vestir uma roupa seca. Guardem biscoitos para mim.
— Não vou prometer nada — Katja gritou.
Rindo, fui para o quarto tomar banho e me trocar, tentando me livrar da tristeza pela perda de Chiara e me preparar para tudo o que estava por vir. Era Natal, no fim das contas, e decidi me dar um presentinho.
Resgatei meu celular do fundo do baú de madeira e o liguei pela primeira vez em meses.
Fiquei encantada ao ver que havia mensagens não lidas.
As duas de Agustin da nossa última noite juntos ainda estavam lá, mas outras chegaram. A primeira delas era de uns dias depois:
Confeiteira! Está por aí? Desculpa se fiz algo de errado. Passa na biblioteca um dia desses.
Essa me deu uma pontada de culpa. Odiei que ele se culpasse pela minha fuga. Suspirando fundo, fui para a seguinte:
Ei, você está aí? Precisava de um bom ouvido agora. Mande mensagem se puder.
Observei aquela por um tempo. Eu gostava quando Agustin falava de amenidades, e queria ter estado ao lado dele para ouvir se ele precisava de verdade. Engoli em seco e prossegui.
Desculpa, sei que isso é meio aleatório. Mas comi bolo hoje. Estava horrível. Enfim, espero que você esteja bem.
Era a última, de um mês antes. Aquelas palavras me fizeram sorrir. Estava feliz por serem apenas cinco mensagens e não uma para cada dia que passamos afastados. Eram suficientes para me mostrar que ele pensava em mim de tempos em tempos. Talvez se lembrasse de mim mais para a frente como a garota que ele conheceu uma vez e com quem fez um bolo e dançou jitterbug.
Esse pensamento me animou. Na nossa última noite, no corredor do alojamento, pensei que ele me esqueceria antes que eu o esquecesse. Agora eu tinha uma sensação de que mesmo depois que o nome e o rosto dele fossem apagados da minha mente, havia uma chance de eu não ser apagada da dele.
Nas semanas que se seguiram à partida de Chiara, as coisas começaram a voltar ao normal, mas não da forma que eu esperava. Embora eu amasse Camila do mesmo jeito que amava minhas outras irmãs, a presença dela na casa deixou de ser novidade, e voltei a passar cada vez mais tempo sozinha no quarto. Na verdade havia dias em que o humor dela parecia tão sombrio quanto o meu, e ficar perto dela só aumentava minhas angústias.
Tentei não pensar no próximo canto, que já estava chegando. Eu conseguia sentir a dor dEla, uma dor de fome. Ela aguentaria o quanto pudesse, por nós, mas não demoraria muito.
Tentei esquecer o futuro e me dediquei à pesquisa, vasculhando a internet em busca do último passageiro do Arcatia, e finalmente o encontrei: Robert Temlow, cinquenta e três anos, corretor de seguros. Uma foto do seu rosto magro e bronzeado foi para minha caderneta. Era a primeira vez que eu completava uma lista de passageiros. Fechei o caderno, pensando que me sentiria realizada ou satisfeita, mas nada veio.
Era o vazio de sempre.
Uma das minhas primeiras pesquisas tinha sido sobre sereias, poucos anos depois de eu ter sido transformada. Tinha tentado aprender tudo o que era possível sobre a minha nova vida. Desenterrei aquelas anotações antigas e as repassei mais uma vez.
Tinha encontrado uma riqueza de representações artísticas e mais contos do que poderia imaginar. No geral, havia alguma verdade neles. Várias fontes diziam que o número máximo de sereias era dois, enquanto outras diziam cinco, e de fato esses eram nossos limites. Era impossível fazer o trabalho sozinha, mas ter muitas de nós ao mesmo tempo aumentava as chances de sermos descobertas.
Muito do que li era absurdo. Ficava entediada diante das descrições de mulheres com corpo de pássaro, e os artistas que nos transformavam em fetiches me davam arrepios. Mas então pensei em Katja, seduzindo silenciosamente os garotos para a cama, e percebi que aquilo não era tão incoerente.
Não havia qualquer menção ao nosso serviço à Água ou ao fato de as sereias não aceitarem sua condição de muito bom grado. Ninguém explicava como tudo começou. Não havia conselhos de como escapar da sentença. Eu tinha ficado tão desesperada no começo que ansiava por algum tipo de resposta. A Água se tornou a única verdade que eu conhecia. Nada além dEla fazia sentido.
Pus minhas anotações de lado e me joguei na enorme cadeira no canto, observando o mar. Percebi que sentia saudades de Chiara – uma besteira, já que ficávamos longe a maior parte do tempo mesmo. Talvez fosse apenas porque, por um curto período, ela foi a única que entendeu o que eu sentia e fez com que eu me sentisse menos isolada na minha tristeza.
Enquanto olhava para as ondas quebrando na praia, me peguei pensando se Agustin também fazia a mesma coisa naquele exato momento. Ele tinha dito que cresceu numa cidade de pescadores no Maine. Port Clyde. Talvez ele estivesse sentado com os pais, tomando chocolate quente e observando as ondas rolarem sonolentas. Ou talvez estivessem no final de uma daquelas viagens obrigatórias de férias para ver os parentes nessa época do ano. Eu apostava que ele usaria um daqueles casacos horríveis que alguma tia-avó tinha feito só para não magoá-la.
Ou talvez já estivesse fazendo as malas, se preparando para deixar o inverno extremo do norte rumo ao clima temperado da Flórida. Talvez já tivesse escolhido a habilitação e estivesse tão empolgado para voltar às aulas que quase não conseguia se conter. Comecei a pensar se Ruggero teria se tornado alguém mais fácil de conviver ou se ainda deixava pilhas de lixo no canto do quarto. Talvez, apenas talvez, ele fosse de vez em quando até a árvore onde nos sentamos para ver se eu apareceria por lá…
Estava tão cansada de chorar. Tão cansada de água salgada. Mas parecia inevitável – quando não estava nadando nela, ela inundava meus olhos.
Queria tanto ir até ele. Sentia que eu lhe devia um pedido de desculpas por ter saído daquele jeito, por não estar com o celular ligado quando ele precisara conversar… Enfim, por ter entrado na vida dele. E me doía sentir por ele essa coisa crescente e intensa sem saber se eu era correspondida.
Era coisa demais de uma vez só. Chiara tinha partido, mas eu ainda precisava guardar o segredo dela. Eu tinha uma nova irmã que parecia presa à vida passada como se ainda estivesse acontecendo. Eu amava e odiava a Água ao mesmo tempo. E a saudade de Agustin pesava sobre meus ossos inquebráveis.
Virei o rosto para a Água e me enfiei na cama. Não precisava dormir, mas queria que tudo parasse por um tempo.
Quando acordei – de um sono misericordiosamente sem sonhos – ouvi minhas irmãs falando de mim na sala.
— Não é você que ela está evitando — Katja disse, e pude notar pelo tom gentil da voz que se dirigia a Camila. — Ela fica assim às vezes.
— Ela serve à Água há mais tempo do que todas nós — Karol acrescentou. — É difícil para ela. Só precisamos lhe dar espaço.
Me arrastei para fora da cama e observei as cortinas floridas, as fotos sem graça nas paredes, e de repente odiei tudo aquilo. Aquela casa parecia uma armadilha. Eu tinha fugido para lá para fugir do meu amor impossível por Agustin, mas não fugi de mim mesma.
Abri a porta do quarto e minhas irmãs se calaram quando me juntei a elas.
Karol e Katja pareciam envergonhadas, e eu sabia que se perguntavam se eu tinha ouvido a conversa.
— Acho que é hora de nos mudarmos de novo — disse a elas.
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