Era nisso que estava pensando quando peguei uma antologia de contos. Reconheci o título, embora nunca tivesse lido. O livro tinha sido publicado mais ou menos na época em que eu fora transformada. Abri no texto de Franz Kafka chamado “O silêncio das sereias”. Tinha menos de duas páginas, mas mesmo assim eu não conseguia parar de pensar nas palavras, na ideia de que o silêncio de uma sereia era mais mortal que sua voz.
Zombei do conto no começo, mas depois não conseguia tirá-lo da cabeça.
Como meu silêncio podia ser mortal? Meu silêncio era a única coisa que mantinha as pessoas vivas! Terminei a história e fui fazer outras coisas, mas o pensamento não parava de voltar à minha mente, embora não soubesse muito bem o motivo.
Meu silêncio não tinha matado ninguém. Se a ausência da nossa canção era tão mortal, então qualquer pessoa com quem tivéssemos contato deveria estar como Agustin.
Repassei todos os laços que tinha com ele, preocupada por talvez não estar agindo com a rapidez necessária. Não foi culpa do nosso beijo, disso eu tinha certeza. Katja havia ultrapassado a cota de beijos em humanos sem o menor efeito colateral. Não era o meu amor por ele, porque senão Chiara nunca teria conseguido rever Loren ou a bisneta. Então o que era? O que diferenciava Agustin das outras pessoas?
— Karol — chamei. Minha voz estava tão rouca que me perguntei se meu canto surtiria efeito naquele exato momento.
— O quê? Está com fome? Enjoada? — ela perguntou, deixando tudo de lado para vir até mim.
— Você pode ler isso? É curto, mas algo me diz… — disse ao entregar o livro para ela, que o examinou brevemente. — Alguma coisa te ocorre?
Ela tomou o livro das minhas mãos frágeis e leu o conto muito mais rápido do que eu.
— Como nosso silêncio pode ser mais mortal do que nosso canto? — ela desdenhou.
— Exatamente.
Ela devolveu o livro.
— Vou pensar nisso.
— Deu sorte com a arte?
Ela bufou.
— Não. Na maioria dos casos somos demonizadas ou sexualizadas.
— Percebi.
— E pelo que deu pra perceber, ninguém viu uma sereia e viveu para contar a história.
— Deve existir alguém… — resmunguei ao me enrolar ainda mais nos cobertores. — Senão, como o mito teria começado?
— Bom, seja lá quem for, morreu há milhões de anos e deixou pouco mais do que já sabemos.
Suspirei. Minha mente estava exausta e senti meu coração esmorecer junto com ela.
Karol pôs as mãos nos meus ombros. O calor era bem-vindo, mas me fez tomar consciência de como eu estava fria.
— Vamos decifrar isso, Carolina — ela garantiu. — Sinto que estamos muito perto.
Concordei com a cabeça, embora não tivesse tanta certeza. Estava preocupada. Agustin estava ficando sem tempo, e seu corpo frágil era bem mais vulnerável do que o meu. Não conseguia parar de pensar no que aconteceria com o meu coração se o dele parasse de bater, já que a nossa doença estava interligada…
Katja surgiu da sala.
— Não adianta. Não sou uma devoradora de homens — ela disse, apontando para a televisão.
— Bom, se fosse para apontar uma de nós… — Karol começou em tom de piada.
Katja esboçou um sorrisinho. A sensação de que podíamos brincar uma com a outra me ajudou.
Abri o maior sorriso que pude, que não foi muito grande, e senti uma dor aguda no canto da boca. Levei a mão até lá, na esperança de amenizar o ardor. Quando tirei a mão, havia algo vermelho brilhante na ponta dos meus dedos. Observei o sangue horrorizada. Tinha sido pega desprevenida pela náusea e pelas febres, e a exaustão e as dores no corpo me deixavam chocadas. Mas aquilo era praticamente esfregar a mortalidade na minha cara. Pensava que ainda era incapaz de sangrar.
As garotas trocaram olhares nervosos, sem saber o que falar ou fazer.
Camila trouxe um papel-toalha da cozinha e limpou minha mão e meus lábios.
Todas lidávamos com o novo golpe em silêncio.
— O que não estamos enxergando? —Katja perguntou desesperada. — O que não sabemos? Assistimos a todos os filmes, vimos todas as pinturas, lemos todos os livros… Já não sabemos todas as histórias?
— Bom, não -Camila disse como se o que tínhamos pulado fosse óbvio demais. — Não conheço a história dela — ela disse, apontando para mim.
— Fui transformada do mesmo jeito que você — comecei, dando de ombros. — Foi em 1933 e…
— Não, não! — Camila riu. — Estou falando da sua história com esse garoto. O que aconteceu entre vocês exatamente? Como vocês se conheceram?
— Na Flórida. Ele trabalhava na biblioteca. Nos encontramos algumas vezes. Na última vez, fizemos um bolo.
— Então vocês perderam contato?
Baixei os olhos.
— Gostei demais dele. Quando percebi que estava me apaixonando, decidi que precisava ir embora pelo bem de nós dois.
— E?
— Arrastei as garotas de Miami para Pawleys Island. Não estávamos lá havia muito tempo quando você chegou. — Fiz uma pausa para recuperar o fôlego. Estava ficando difícil respirar. — Pensei que eu estava indo bem, mas você viu o que aconteceu quando cantamos e a Água engoliu um cruzeiro com uma festa de casamento a bordo. Não consegui lidar com aquilo. Tudo o que mais queria era ser aquela noiva, e tirar a vida dela no dia em que ela conseguia o que sempre sonhei… Foi demais. Então abandonei a Água e fui para Port Clyde, onde Agustin mora. Acho que fui conduzida até lá por alguma coisa dentro de mim. Não esperava que ele estivesse lá ou que me encontrasse recém-saída do mar.
— Você passou bem pouco tempo com ele — Camila comentou ao se aproximar e apoiar a cabeça na mão para absorver aquilo tudo. Foi então que me dei conta de que Karol tinha pegado o caderno para anotar tudo.
— Um dia. Pouco mais de vinte e quatro horas.
— Muito bem, descreva tudo — Karol pediu. — Ele levou você para a casa dele?
Contei a ela sobre Jorge e Valentina, sobre como abriram a própria casa para mim. Contei sobre Agustin me fazendo café da manhã, sobre como descobri que nós dois quase morremos junto com nossos pais.
— Será que é isso? — Katja perguntou. — É um ponto em comum bem estranho.
— Acho que não, mas vou anotar —Karol disse. — E depois?
Falei da livraria, da história em língua de sinais e do sorvete.
— Vocês usaram a mesma colher ou algo assim? — Camila perguntou. — Será que isso espalharia um pouco daquele líquido que Ela pôs em nós?
Karol balançou a cabeça.
— Vou anotar, mas é pouco provável. Se fosse simples assim, Katja já teria matado dezenas de homens.
— Dezenas não! — ela protestou. — Mas é, já troquei muitos, hum, fluidos com humanos. E outras sereias fizeram o mesmo antes de nós. Nada como essa doença foi consequência.
— Como você pode ter certeza? — perguntei. — Não é como se alguma de nós tenha tido um relacionamento mais longo para saber.
— Eu… — Katja gaguejou. — Havia um garoto que eu achava bem bonito. Voltei a sair com ele, meses depois do nosso primeiro encontro, e ele estava bem saudável.
— Muito bem. Registrado. Você sabe que a Água vai querer saber de tudo isto, né? — Karol afirmou hesitante.
Katja chegou a urrar ao pensar nisso.
— Tudo bem. O que mais?
Comentei da nossa breve tarde na casa dele, de como Valentina estava grata pela minha presença e do nosso jantar.
— E como você foi embora?
Tive que fazer uma pausa. Pensar naquilo era quase tão doloroso quanto aquela doença desgastante.
— Ele me levou para a casa dele — comecei. — Não a de Jorge, mas a que era dos pais. Ele sabia… Não sei como ligou os pontos, mas ele sabia que havia algo diferente em mim. Em vez de ter medo, se ofereceu para me proteger. Pediu que eu ficasse, e de repente achei que conseguiria ficar mesmo. Vivemos entre humanos o tempo todo, que diferença faria?
Nesse momento comecei a piscar para tentar conter as lágrimas, mas elas já rolavam bochecha abaixo.
— E então ele me beijou. Foi isso. Um beijo perfeito, atemporal. E depois, num momento de burrice completa, eu disse: “Uau!”. — Balancei a cabeça. — Os olhos dele ficaram estranhos e ele partiu para a Água. Tentei segurá-lo, mas ele ia cada vez mais para o fundo. Supliquei para Ela, prometi levar outros no lugar dele. Fico com vergonha de admitir, mas acho que faria isso se Ela pedisse. Qualquer coisa para mantê-lo vivo.
Sequei as lágrimas, envergonhada pela rapidez com que eu entregaria outras pessoas se fosse para salvar Agustin.
— Ela o deixou viver… Não era para eu contar isso a vocês, mas Ela o deixou viver. Eu o levei para a praia, dei um beijo na bochecha dele e voltei para a Água. Não o vejo desde então.
— Hum… Então nada muito bizarro, só um erro — Camila comentou.
Concordei com a cabeça.
— Esperem… O que vocês estavam falando sobre silêncio? —Katja perguntou. — Vocês não estavam falando de um texto um pouco antes de eu entrar?
— Era um conto que dizia que o silêncio de uma sereia era mais mortal do que o seu canto, o que é bizarro se você…
Ela ergueu a mão para que eu me calasse e disparou:
— E se for isso?
— O quê?
— O seu silêncio.
Katja estava incrivelmente empolgada, mas franzi a testa, sem conseguir acompanhar o raciocínio.
— Ele pode ser a única pessoa no mundo a ouvir a voz de uma sereia e sobreviver — ela explicou. — E se for esse o motivo da doença? O seu silêncio?
— Mas eu não poderia falar com ele o tempo inteiro — argumentei. — Aí sim ele morreria!
— Ainda que seja isso, não explica por que Carolina também está doente — Karol argumentou, agarrando o caderno. — Isso pode não significar nada.
Katja deu de ombros.
— Mas é a nossa primeira pista de verdade.
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