FOI COM EXTREMO CUIDADO que minhas irmãs me retiraram da cama e me carregaram num cobertor até a Água. Eu tremia por causa do ar quase ártico, pensando que, se a vida não tivesse sido tão difícil nos últimos tempos, teria pedido para me mudar para um lugar mais quente, onde meu corpo frágil pudesse aguentar um pouco melhor.
Não tínhamos mais tempo. Minhas irmãs me contaram que Anão conseguia mais sair do quarto, e senti que eu mesma não estava longe dessa situação. Minha única esperança era que a Água percebesse de fato como eu estava próxima da morte e me revelasse o segredo que estava escondendo. Ela sabia de algo que não queria nos contar.
Eu tinha consciência de que era a única preocupação dEla no momento.
Agustin era apenas o efeito colateral do meu erro, e se eu me recuperasse, Ela não se importaria com o futuro dele. Logo a Água saberia, se é que já não desconfiasse, que se eu me salvasse daria um jeito de salvar Agustin também.
Estava cansada demais de esconder as coisas.
— Ah! — gritei ao mergulhar as pernas na água. — É como se várias facas perfurassem minha pele.
— Espere.
Continuamos imóveis e confusas na arrebentação. Como resolveríamos esse problema?
— Agora. Tente de novo.
Meus pés tocaram o mar, que, para minha surpresa, estava morno.
— Assim vai ser mais confortável.
— Devemos entrar? —Camila perguntou.
— Por que vocês duas não entram? — Karol sugeriu. — Eu seguro Carolina.
Não houve palavras no começo. Apenas uma sensação de preocupação enquanto a Água captava os pensamentos de Camila e Katja.
— Não fazia ideia de que você tinha piorado tanto. Faz tempo que você não vem até mim. — A Água soava… assustada?
Me apoiei em Karol. Meu peito subia e descia em uma respiração curta como a de um passarinho.
— Vou morrer — disse a Ela. — Está pior agora.
— Você não vai morrer — Karol prometeu. — Deve haver alguma coisa que não conseguimos enxergar.
— Ah.
Sentia a Água revirar todos os meus pensamentos e lembranças sobre Agustin e trazê-los à superfície. Quase tudo de antes da minha transformação tinha se apagado, e a vida de sereia era tão longa que não havia muitos momentos marcantes. Mas Agustin… tudo o que se referia a ele surgia claro como um diamante.
Ela sentiu o carinho que eu havia sentido nas tentativas dele de conversar comigo na biblioteca. Sentiu como meu coração se entusiasmou quando dancei com ele perto da árvore. Viu as mensagens de texto no meu celular perdido, como minha mente voltava a ele quando nos separamos pela primeira vez. Sentiu como fui bem-vinda na casa dele, o calor de nossos corpos se tocando na livraria. Sentiu como meu primeiro beijo foi mágico. Aquele beijo ainda parecia tão belo… Um milagre que deveria ser guardado numa redoma de vidro e admirado pelas multidões.
E, como não pude mesmo segurar, Ela viu como eu sentia saudade dele. Eu a senti se encolher diante da tristeza que eu tentava combater, pelas minhas irmãs e por Ela.
Se não fossem os soluços entrecortados, não teria percebido o choro de Karol. Ela balançava a cabeça e cobria a boca enquanto mantinha a outra mão firme nas minhas costas para me apoiar.
— Karol?
— Desculpa. Culpei você todo esse tempo por não sair dessa situação que te deixava mal. E agora que senti… Carolina, você se saiu melhor do que eu. É tão pesado…
Camila se agarrou às rochas e saiu da água como se fugisse de um monstro. Caiu de joelhos a três metros de nós entre soluços incontroláveis. Katja também saiu, embora mais devagar, arrastando os pés até a praia.
— Já vamos voltar — ela disse. — Não conseguimos aguentar e precisamos de uma pausa até os pensamentos mudarem. Não sei se o seu sentimento por Agustin é tão profundo assim ou se a Água está amplificando.
— Não estou. É tudo dela.
Katja fez que sim com a cabeça, arrasada demais para reagir de outra maneira. Ela pôs os pés na água e falou em voz alta para que nós também escutássemos.
— Será que ela não pode voltar para ele? — ela suplicou. — Ele está morrendo. Ela também. Os dois não podem ter uma vida juntos, mas podem pelo menos dividir o último momento.
— Não.Carolina é minha. Vamos curá-la.
— Como? — Katja insistiu em meio a lágrimas. — Não resta nada.
— Por favor… — eu pedi, baixando todas as barreiras, expondo até a última gota do amor que sentia por Agustin. — Agora você viu como me sinto. Compartilhei tudo, mas acho que você ainda esconde alguma coisa.
Várias sensações percorreram meu corpo enquanto Ela pensava. Culpa, descrença, preocupação, vergonha. E isso bastou para que eu soubesse que Ela guardava um segredo.
— Por favor. O que você não quer me dizer?
— É impossível — ela insistiu, e mais uma vez captei algo estranho em Sua voz. — Nunca duvidei da sua capacidade de amar, mas que mortal seria capaz de amar de verdade uma garota que conhece há tão pouco tempo? Como pôde enxergar além da beleza com que cobri sua verdadeira identidade? Ainda mais quando você era incapaz de falar com ele?
— O que você quer dizer? — Karol disse, tensa. — Você sabia o tempo todo qual era o problema de Carolina?
— Por favor… — pedi novamente. — Eu te amo. Você sempre me deu carinho. Por favor, me explique o que está acontecendo.
Enfim, a verdade apareceu.
— É verdade. Sua voz o envenenou. Não posso mais negar isso. A única coisa capaz de curá-lo é a sua voz. Sua voz humana. Para salvá-lo…
— Eu preciso ser transformada…
— Sim. Mas além disso, ele é como uma sereia para você. A ausência da voz dele está te matando.
Balancei a cabeça.
— Como isso é possível?
— Não sei explicar como duas almas se unem. Nenhum homem, elemento ou deus saberia. Mas vocês estão atados. Por causa disso, por causa do seu amor verdadeiro, devoto e puro, vocês vão prosperar juntos… ou perecer juntos.
— Não entendo — confessei, engolindo em seco, tentando encontrar algum sentido nas palavras dEla.
— Se ele não tivesse ouvido sua voz, estaria bem. Mas assim que começasse a envelhecer, não importa daqui a quantos anos, você também começaria a se deteriorar. Ou se você me desobedecesse a ponto de eu ter de matá-la, ele morreria no mesmo instante. Vocês estão ligados por suas próprias almas. Agora, o que acontecer a um corpo, acontecerá ao outro. E como a sua voz tomou conta dele e o envenena aos poucos, você está sucumbindo junto com ele. Mais devagar, claro, porque ainda é minha. Mas cedo ou tarde a doença a consumirá do mesmo jeito.
Pensei em Chiara na hora. Senti uma imensa culpa por trair seu segredo naquele momento, mas não havia mais como esconder. Aquilo que estava acontecendo comigo não deveria ter acontecido com ela? Ela não deveria ter enfraquecido com a morte de Loren?
Mas, pensando melhor, não se tratava apenas de Loren. Ela tinha acompanhado o neto e a bisneta. Sorri um pouco ao ver essa falha no laço misterioso entre as sereias e seus entes queridos. O amor dela não tinha um foco único, e à medida que uma nova geração de sua família surgia,Chiara florescia junto.
— Você mentiu para nós! — Katja rugiu. — Você sabia!
— Não acreditava que uma coisa dessas pudesse acontecer. Como alguém poderia amar vocês como eu? Mais do que eu? Como duas pessoas de mundos tão distintos poderiam formar um laço sem palavras? Eu sabia que vocês tinham casos passageiros ou conhecidos de quem gostavam. Mas acreditava dar tanto a vocês que não haveria espaço para outro amor.
— Sempre há espaço para o amor —Camila balbuciou. — Nem que seja uma frestinha.
Nossos olhares se cruzaram e lembrei de ter dito aquelas mesmas palavras a ela em Nova York. Como poderia saber o quanto viriam a significar para mim?
Abri um sorriso triste para minha irmã mais nova.
— É verdade. Eu encontrei um caminho. Eu o amo, e isso está nos matando.
Cobri a boca com a mão, mas não havia mais o que chorar.
— Não é culpa sua, Carolina — Karol insistiu.
Acenei com a cabeça.
— É sim. Se tivéssemos apenas nos apaixonado, talvez sentíssemos a tristeza ou a alegria do outro de tempos em tempos, ou talvez meu corpo deteriorasse daqui a cinquenta anos junto com o dele. Não haveria problema. — Fiz uma pausa para recuperar o fôlego. — Mas eu o deixei ouvir minha voz. Eu o envenenei, e é por isso que vamos morrer.
— Sinto muito. Se ao menos eu tivesse evitado que você fugisse de mim… Talvez você jamais o reencontrasse.
— Aconteceria de qualquer jeito. — Meus pulmões trabalhavam mais do que o normal para sustentar o meu esforço. — Pense em tudo o que fizemos. Todos os lugares em que estivemos. Vocês já encontraram alguém mais de uma vez?
Todas permaneceram caladas. Minha respiração desacelerou, me deixando com uma sensação de vazio.
— Estou cada vez mais convencida de que estávamos destinados um ao outro. E se tudo o que tivemos foi aquele único dia perfeito, meu coração morrerá feliz. — Balancei a cabeça. — É a vida dele que odeio sacrificar. Fui responsável por tantas mortes; é justo que a minha aconteça. Mas Agustin… ele é tão… tão…
Não havia uma palavra boa o suficiente para descrevê-lo. “Decente” daria a entender que ele só tinha o nível mínimo de educação. “Bom” não dava conta do afeto sincero que ele transmitia a todas as pessoas, mesmo quando estava mal. Até “perfeito” não era uma palavra justa, porque ele com certeza tinha defeitos, e essas falhas humanas me faziam amá-lo ainda mais.
— Nós sabemos — Karol disse, encostando a cabeça na minha de leve.
Engoli em seco.
— Acho que não consigo mais falar. Minha voz está cansada.
— Está mesmo —Karol disse num tom carinhoso. — Você contou tudo até os últimos detalhes. Quer dizer, o único jeito é…
— Não.
— Mas você acabou de dizer…
— Sei o que acabei de dizer. Mas podemos ter mais tempo. O corpo dela é mais forte do que o dele.
Katja interveio:
— Por que estamos discutindo isso? Carolina e Agustin podem ser salvos. Você precisa deixá-la partir.
— Posso estar errada. E se ela voltar a ser humana e sua voz não surtir efeito? O que vai acontecer?
— Ela teria ao menos uns dias ou horas com a pessoa que ama.
— Ela não vai se lembrar dele. Pode até ser que só piore as coisas.
Katja, arrasada, com toda a força esgotada, berrou com raiva para a Água:
— Como é possível piorar as coisas?!
— Seria pior para mim!
Embora nenhum humano fosse capaz de ouvir, a voz dEla ecoou no céu cavernoso, agitou as árvores e fez rochas desmoronarem.
Ela não tinha olhos. Era incapaz de produzir mais água, mas ainda assim todas sentimos Seu choro.
— Vivo isolada. Não tenho semelhantes. Vocês são tudo o que tenho e me evitam sempre que possível. Entendo o motivo. Sei que odeiam o que são obrigadas a fazer. Já tentaram ao menos uma vez imaginar como me sinto?
— Compreendemos o seu fardo! De verdade! — Karol assegurou a Ela. — Nós também o carregamos.
— Não, vocês apenas me alimentam. Sou uma escrava que ninguém nota nem agradece. É raro alguma garota ao meu serviço pensar em mim sem ser chamada. É demais que eu me apegue a uma de vocês enquanto posso? Quando vocês partirem, não serei nada além de uma lembrança. Não estou pronta para ser esquecida.
Engoli em seco, me sentindo dividida e amada. A minha vida e a da minha alma gêmea estavam acabando porque estávamos separados. Mas, ao mesmo tempo, a ideia de deixar a Água sem a minha companhia parecia cruel.
A simpatia de Karol irradiou até a Água, e eu A senti corresponder.
— Pense na dor que você acabou de sentir quando Carolina lembrou do único amor --- Karol argumentou. — Sua dor seria ainda maior? Talvez. Mas pense que Carolina fez exatamente isso. Ela o deixou. Ela fez o que estamos pedindo para você fazer, e fez pelo seu bem.
A Água ficou aparentemente imóvel. Me recusei a ter esperanças com as considerações de Karol. Mesmo que fosse verdade, não havia como eu voltar para Agustin.
Camila, que se mantivera afastada de tudo, secou as lágrimas e se aproximou de nós em silêncio. Com um ar hesitante, pôs as mãos nas pequenas ondas e disse:
— Carolina me falou que você poderia ser a mãe que eu mereço.
— E eu posso!
— Mas você ameaçou me matar. Minha mãe de verdade fez pior, mas isso não me motiva a amar você.
— Mas eu amo você! Todas vocês são preciosas para mim.
— Então, por favor, pare de nos afastar com a sua raiva — Katja suplicou.
— Então como vou conseguir a obediência de vocês? Ela já é precária assim.
Katja inclinou a cabeça.
— Sempre fui um pouco contestadora. Não consigo ser de outro jeito. Mas não somos Ifama ou uma das outras que você teve que eliminar. Escolhemos ficar. Ainda estamos aqui.
— Se você tivesse falado assim conosco anos atrás, hoje teria um punhado de filhas ansiosas para estar ao seu lado —Karol disse, ainda me segurando forte, e eu podia sentir sua esperança acender.
Eu mal podia me concentrar nisso, porém, porque a Água chorava e chorava, se sentindo perdida por ter nos entendido tão mal, Suas próprias criaturas. Meus pés ainda estavam no mar, mas mergulhei as mãos também.
— Não pense que não vou sentir sua falta de alguma forma — prometi. — Se eu viver o suficiente para ser retransformada daqui a setenta anos ou se eu morrer amanhã, não pense que não vou levar você comigo.
— Vou sofrer por você. Todos os dias.
— Eu sei. Mas quando eu morrer, você terá as outras. Elas entendem agora.
— E logo vão partir também.
— Mas não antes de ensinar às novas garotas a amar você como nós amamos.
— Eu ficaria mais tempo — Karol disse.
Levantei o olhar para ela, sorrindo.
Ela deu de ombros, aparentemente envergonhada com a confissão.
— Ficaria mesmo. Sou feliz aqui. Sou feliz com você.
— Eu também ficaria mais tempo — Katja propôs. — Toda família precisa de uma rebelde. Vamos ser sinceras, você ficaria entediada sem mim.
Houve um pequeno brilho de alegria em meio à tristeza dEla.
Camila se uniu às irmãs.
— Você sabe como era minha vida antes. Não estou com pressa de fugir de você.
— Podemos somar o tempo de Carolina ao nosso se você quiser — Karol disse, olhando para Katja e Camila em busca de aprovação. As duas concordaram com a cabeça.
— Assumimos a dívida dela com alegria — Katja disse.
Enterrei os dedos nos pedregulhos. Era a única maneira que eu tinha de sentir como se segurasse a mão dEla, de garantir que Ela nunca esteve só de verdade.
Havia uma calma na Água, como se nos contemplasse, como se mudasse em torno de uma nova verdade.
— Prometi a você que a sua voz jamais seria o fim dele, que a morte dele não viria pelas minhas mãos. Não imaginei que as coisas fossem se desenrolar desse jeito, mas a única forma de demonstrar meu amor por você é cumprir a promessa. É o que me resta.
Os pensamentos dela giraram e se transformaram em ação.
— Vocês precisam de um plano. Terei que fazer a mudança perto do Maine. Levarei vocês até lá quando estiverem prontas.
— Cuidarei de tudo — Karol garantiu. — Vou deixar o mínimo possível ao acaso.
— Agora vão. Preciso preparar tudo.
— Você vai ficar bem? — perguntei.
— Tenho que ficar. Vá, minha querida. Isto é tudo o que posso lhe dar. Você finalmente compreenderá o quanto amo você.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.