Eu odeio aquela roupa. Por que meu pai precisa fazer uma festa chique? Sério, que saco! Finalmente saímos da loja e eu pude usar alguma coisa que me deixasse respirar. Andamos na praça e sentamos em um banco para esperar Patsy voltar das compras dela.
Eu tenho duas irmãs, ou pelo menos duas irmãs vivas. Não conheci nenhuma das outras. Eu sei que tinha uma irmã gêmea, Lucy, mas ela morreu quando eu tinha três anos. Fico tenso só de imaginar a dor de ter filhos gêmeos e um morrer, você olha para um e procura o outro, naturalmente. Tenho pena do meu pai, porque ele perdeu tantos filhos e a esposa... Minhas duas irmãs vivas são Patsy, dez anos mais velha que eu, e Polly, quatro anos mais velha. Patsy é legal, mas eu odeio Polly. Por causa dela, hoje, eu estava com dor no corpo inteiro e quase não conseguia falar. Algo que meu pai notou.
- Rich? Você está bem? Está quieto. Quero dizer, você é meio quieto, mas hoje está tão distante...
- Impressão sua - com cinco filhos, a esposa, quatro irmãos e os pais mortos, eu não queria dar mais preocupações a ele.
- Se você diz... mas sabe que eu só quero seu bem. Você está doente? Podemos ir ver um médico agora mesmo.
- Eu estou bem.
- Certeza?
- Sim!
- Então tudo bem. O que quer fazer hoje?
Nem pensei para responder:
- Você escolhe, porque eu topo qualquer coisa que não seja ficar aqui esperando a Patsy. Você sabe que ela sempre demora umas duas horas além do combinado!
- Certo, certo! Vamos ver uma peça de teatro?
- Tá bom, mas alguma coisa engraçada! Nada de drama!
- Justo.
Fomos ver "Sonho de uma Noite de Verão" e era legal mesmo. A atriz que fazia Helena era linda. Era bom passar um tempo com meu pai, sem minhas irmãs e sem Polly, principalmente. Mas agora, era hora de nos encontrar com Patsy e, depois, encontrar Polly na igreja para podermos ir à festa às seis.
Patsy estava lá, com cara de impaciente, como se tivesse esperado o dia inteiro, mas sabíamos que ela esperou por uns dez minutos, no máximo. Sem brigas, porém, fomos direto para a igreja, onde Polly estava. Nosso pai entrou sozinho, como sempre fez, pois precisava de privacidade, enquanto nós quatro ficamos lá fora.
- Está demorando muito! - Polly reclamou
- Então vá achar o que fazer! - Patsy respondeu
- Eu vou chamar ele
- Nem se atreva! - segurei o braço dela. Será que ela realmente não se importava?
Polly apenas olhou para mim com um olhar de ódio e eu sabia que ia morrer depois daquela festa, mas pelo menos nosso pai podia rezar em paz. Ela sabe que ele faria qualquer coisa pelos filhos que ainda lhe restavam e eu já sabia que ela era podre, mas se aproveitar disso era imundice até para os padrões dela.
Ele finalmente saiu e sorriu para nós, apesar de estar triste. Polly bufou, emburrada, mas todos a ignoramos.
Chegamos ao baile, e eu estava com a roupa que me impedia de respirar e uma máscara preta. Polly flertava com todos os caras que encontrava, enquanto Patsy apenas ficava sentada, como a verdadeira dama que era. Eu estava sozinho naquele mar de ricos. Todos tão refinados e chatos, com olhos e ouvidos bem abertos para os filhos do vice-presidente. Qualquer coisa que eu fizesse poderia arruinar a reputação dele, e já não bastava Polly agindo feito uma puta. Eu vi uma garota bonitinha de cabelo preto cacheado e pele bem clara. Ela parecia Annetta, minha ex-namorada de quando eu tinha quinze anos, na França. Fiquei com ela por um ano, até ela decidir que não queria me namorar porque meu pai apoiava a Revolução Francesa e ela não. Eu nem fiquei tão triste, até porque a liberdade do povo é mais importante para mim do que um romance adolescente idiota. Acho que eu ia dançar com a garota que parecia com ela, sei lá.
A música começou a tocar, era hora da dança. Uns doze garotos queriam dançar com Polly e outros vinte queriam Patsy como parceira de dança. Tinha certeza que algumas garotas queriam dançar comigo também, porque também sou um dos anfitriões, mas havia uma garota tão perdida que dava dó. Ela tem sorte que eu tenho uma queda por loiras.
- Me concede essa dança?
- Eu? Hã... Hmmm... Tá bom, quer dizer, sim senhor!
Ri da confusão dela, enquanto começávamos a dançar no ritmo da música.
- Como você se chama?
- Eu? Meu nome? Michigan!
- Michigan?
- Sim. Rachel Michigan!
- Eu te chamo de Michigan ou Rachel?
- Hã... Rachel, eu acho.
- Jefferson. Richard Jefferson. Me chama de Rich
- Ah, você é filho do dono da festa?
- Sim - respondi rindo, tanto do quão perdida ela estava de como ela ficava brava quando eu ria dela.
Continuamos a dança, que nos conduziu ao lado de Polly. Ela olhou feio para Rachel, e depois para mim, e eu mostrei a língua. Rachel não pareceu ligar para ela. Resolvi seguir o exemplo e apenas continuei conversando com a garota em meus braços, que dançava incrivelmente mal.
- Então... Sua família é dona de um grande mercado de escravos, certo?
- As correntes que seguram os escravos são as correntes que seguram nossa nação e impedem seu desenvolvimento. A escravidão é o que impede os Estados Unidos de evoluírem.
- Uau, você parece saber bastante sobre o assunto. Lê bastante?
- John Laurens.
- Já ouvi falar. Mas nós, os americanos, somos o povo escolhido por Deus para conservar os valores dos tempos bíblicos. Devemos fazer deste país o paraíso da agricultura.
- Agora não são os tempos bíblicos. Veja só, as pessoas dos tempos atuais vivem mais, porque a qualidade de vida é melhor. Tenho certeza que Deus é um amante dos tempos modernos por isso, afinal, todo pai deseja o melhor para seus filhos. As manufaturas são, agora, o que tornam um país moderno e, consequentemente, melhoram a qualidade de vida de seus habitantes, por isso, não me parece realista que Deus queira um paraíso da agricultura. Além do mais, é estupidamente arrogante assumir que seu povo é de alguma forma escolhido por Deus sem base nem fundamento algum.
- Você debate bem. Tem uma educação refinada?
- Na verdade não. Só leio bastante.
- Entendi. Mas tenho certeza que Michigan é uma família dona de um grande mercado de escravos.
- E também era a família Laurens, mas John morreu para acabar com a escravidão.
- Um tolo.
- Um gênio.
- Se você diz... Mas até agora você não me respondeu: eu te perguntei duas vezes se seu pai tem um mercado de escravos, mas, da primeira vez, você disse que é contra a escravidão e, na segunda, citou um fato inútil sobre John Laurens. É como se eu te perguntasse sua idade e você dissesse que sua cor favorita é amarelo!
- Bom, primeiro, sim, meu pai tem um mercado de escravos. Segundo, nenhum fato é inútil. Terceiro, eu tenho dezesseis anos e, na verdade, minha cor favorita é azul, obrigada pela preocupação.
Me senti envergonhado por não ter uma resposta apropriada. Aquela garota era esperta demais para o meu gosto. Eu sou como meu pai: odeio perder. As únicas pessoas que podem me vencer em alguma coisa são meu pai e Polly: meu pai porque eu me importo com ele mais do que qualquer coisa, e Polly porque... bom, porque eu não consigo ganhar dela. Ainda. Mas se eu não posso derrotar uma garota da minha idade, que mal consegue dançar e usar os garfos certos e com quem eu escolhi dançar simplesmente por pena, como poderia derrotar Polly, que tem controle total sobre mim, é mais forte que eu e sempre vista como um anjo? Toquei na cicatriz no meu braço, sentindo-a. Eu nunca mais iria deixar ninguém dizer que eu sou inútil.
A dança acabou e nós nos separamos. Eu não aguentava mais aquilo, não aguentava mais aquela dança, não aguentava mais aquela Rachel, não aguentava mais aquela festa e não aguentava mais a minha irmã. Não aguentava a influência que ela tinha sobre mim, não aguentava como as memórias dela influenciavam todas as minhas ações. Decidi ir ver o jardim, achei que isso iria me acalmar. Péssima idéia: a voz de Polly em alto e bom som. Ouvi uma segunda voz, pertencente ao filho de um mercador de tecidos, um dos poucos convidados que era realmente amigo do meu pai. Acho que o nome do garoto era Harrison Macbrench. Pude ouvir o que nem pode ser considerado uma conversa:
- Ai, Harry! Você é tão... tão... eu quero mais de você, muito, muito mais!
- Você é insana! Sai de cima de mim! Vai procurar um médico!
Resolvi me arriscar a ir até lá.
- Hã... Polly? O que você está fazendo? - perguntei de um jeito todo inocente. - Está com algum problema? Eu posso chamar o papai se você quiser...
Fingi estar indo chamá-lo, mas não ia fazer isso. Logo, pude ouví-la correndo atrás de mim. Antes que eu pudesse me virar, ela pegou meu braço.
- Se você fizer isso, vou garantir que vai ser a última coisa que vai falar com ele na vida!
- Então deixe o pobre garoto em paz e volta para a festa.
Eu amava essa sensação. A sensação de ser o que faz a ameaça. De vencer uma batalha, uma única batalha em uma guerra que eu estava perdendo de lavada. Ela saiu e, então, Harry se levantou e levantou a calça depois veio correndo até mim.
- Richard! O-obrigado, eu... eu nem sei como agradecer!
- Bom, eu sei. Não contando isso a ninguém, ninguém mesmo. Sei que ela tem que ser punida, mas isso acabaria com a reputação do nosso pai e isso não é nada bom para um vice-presidente. Seria um escândalo e, da última vez que houve um escândalo envolvendo um político, você sabe o que aconteceu.
- Sim, com Hamilton. Eu entendo.
- Ótimo.
Depois disso, fui ao meu quarto. Estava com sono depois de impedir Polly de fazer merda, mas lá estava ela, me olhando com cara de ódio.
- Você arruinou minhas chances com ele!
- Você estava estuprando o coitado!
- Era amor!
- Você é doente!
- Olha como fala comigo
Se aproveitando de que era bem mais alta que eu, ela me pegou e me jogou no chão, antes de tirar minha camisa, revelando tudo: hematomas, cortes e a cicatriz no meu braço: "Inútil", escrito com o canivete que ela ganhou de aniversário de treze anos.
Eu ainda estava no chão, de olhos fechados, e ela me deu um chute. Ficamos lá por uns quinze minutos, o que me rendeu alguns hematomas novos.
Mudei os planos depois disso: decidi colocar minha camisa como um homem e voltar para aquela festa, mas, na verdade, só fiquei no jardim. Dez minutos depois, alguém chegou e se sentou ao meu lado. Olhei para ver quem era. Maldita Rachel Michigan...
- Senhor Rich? Tendo um dia ruim?
- Não é da sua conta. E não me chame de senhor, você não é minha escrava!
- Estranho você mencionar a escravidão depois do que discutimos
- Se vai ficar só para me deixar ainda pior, então pode sair.
- Não pode me dizer o que fazer.
- Você está na minha casa!
- Mas você não é o único que pode ter um dia ruim. - a pior coisa era a calma que ela tinha.
- Que seja.
Eu fiquei lá, do lado dela. Eu não saí e nem ela. Não liguei para a presença dela, e nem ela para a minha. Ou talvez eu gostasse da presença dela. Será que ela gostava da minha?
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