Estavam sentados na sala do casebre abandonado. No cômodo, além deles, uma fogueira que ardia trêmula. Syndra acabava de comer um peixe no espeto, o outro, destinado a Zed, estava intocado. Ele não comeria até que a maga dormisse, além disso não estava com fome.
- Essa sua casa é bem caída - reclamou novamente, já havia dito aquilo antes, o cutucando com isso.
- Prefere dormir na floresta? - girava uma shuriken no dedo
A jovem entortou a boca e se encostou à parede, jogou o espeto com os restos do peixe num canto, apenas por provocação. Que a dita bruxa não tinha a melhor da saúde mental, era evidente, porém Zed notou outras manias dela; e uma delas era a constante provocação. Apesar disso, o ninja não cedia a nada daquilo, sempre mantendo-se sério. Notou além disso o quanto ela perdia a paciência com facilidade, que ela falava sozinha - Não, falava com as vozes, segundo ela mesma - e também o quanto ela era bonita. Já Syndra sentia-se um pouco incomodada por saber pouco dele e ainda menos de sua aparência. Ele jamais retirou a máscara perto dela, era um fato que não confiava nela. Não que ela confiasse nele, longe disso, ainda sim tinha curiosidade de como o ninja seria; e se sentia incomodada por esse interesse além de sua vontade.
As costumeiras três orbes levitavam sobre ela, um movimento lento e uniforme. Ela esticou as pernas, bocejando, sentindo o cansaço do dia. Ainda sim, não queria dormir, o dia foi longo e aquele peixe foi a única refeição de ambos, esperava que o ninja cedesse a fome; porém ele não demonstrava se quer senti-la.
- É injusto eu não poder ver seu rosto - resmungou
- Já conversamos sobre isso
E como conversaram. Por diversas vezes não só tentou convencê-lo como forçou a retirada da máscara, porém com tantas tentativas infrutíferas, a maga estava a um passo de desistir. Ainda sim, não só ela como as vozes queriam poder vê-lo. Sim, elas também estavam perigosamente curiosas.
- E eu nunca disse que concordo totalmente - retrucou ela, seus dedos mexiam inquietos
O ninja estava atento quanto aquilo; ao lado dela, baixar a guarda não era uma opção.
- Não é como se você tivesse escolha - ela levantou a mão, uma tentativa de puxar a máscara com seus poderes, contudo Zed estava sempre um passo à frente.
Uma sombra apareceu ao seu lado, segurando seu pulso com demasiada força, fazendo-a recuar. A sombra estava ajoelhada ao seu lado e apareceu tão rapidamente que Syndra só percebeu sua presença quando a tocou. A maga estalou os lábios, frustrada:
- Trapaceiro - os olhos da jovem analisaram o ser ao seu lado
Era tão parecido com ele, uma cópia exata, mesmo vendo várias vezes aquelas sombras, ainda se sentia espantada em como podiam ser tão parecidas com o ninja.
- Elas fazem o que você quer? - perguntou ao ninja, sem desviar o olhar da cópia
- Elas são minha vontade
Seu pulso foi solto, com isso a jovem aproveitou a oportunidade para seguir com a mão em direção ao peito daquele clone sombrio. Os dedos passavam pelo tecido, a textura era tão parecida com a de um tecido verdadeiro que, se fechasse os olhos, poderia jurar que tocava o original. Era macabro ao passo de ser interessante. Os dedos da jovem subiram pelo pano, um toque lento. Syndra tinha o olhar tão fixo à duplicata que não notou Zed a analisando. Por um momento sentiu vontade de trocar de lugar com a sombra, desejando sentir seu toque; desejo perigoso. Se o fizesse, estaria pecando, baixando sua guarda. Syndra não era sua inimiga, porém na mesma medida não era sua amiga. Uma aliada por mero interesse. Não podia se esquecer disso nem por um segundo. Um sorriso brotou nos lábios da maga quando uma ideia veio a sobressalto. Inclinou-se sobre a sombra, os dedos sobre a máscara; a retirou. Sendo uma cópia tão genuína, pensou em poder expiar o rosto por ali. Mais uma tentativa inútil. A sombra não tinha rosto, apenas um vazio negro. Zed riu assistindo aquela cena.
- Que injusto - entortou a boca
- Não achou que seria tão fácil - provocou o ninja, a primeira farpa vindo dele, o que a fez sorrir
- Não custa nada tentar - puxou a sombra, encostando a cabeça no ombro desta; a Zed foi uma surpresa
Havia certo carinho ali, mesmo que nutrido na carência e solidão. Mesmo a sombra sendo um companheiro estático e desprovido de sentimento ou vontade própria, ainda sim sentiu-se bem acomodada ali. Quase nunca sentiu carinho, até mesmo de sua progenitora, talvez seja por isso que se contentava com tão pouca reciprocidade.
- Você sempre às controlou? - estava sentada, a cabeça encostada no ombro da sombra de Zed
- No início elas me controlavam - pousou a shuriken no chão
- Como as conseguiu?
- Conto minha triste história se me contar a sua
A maga ponderou por um instante. Não era a pior das barganhas e, de certo modo, Zed sabia mais de sua vida do que ela sabia da dele; ou do que ela gostaria que ele soubesse.
- Tudo bem - Syndra pensou a respeito, reunindo memórias antigas - meu pai. Ele era um bruxo - não o conheceu, mas era o que sua mãe lhe dizia - quando eu nasci, ele tentou me levar. Minha mãe não deixou e assim ele jogou sua maldição em mim. Aos cinco anos nasceu meu primeiro cabelo branco - pegou uma mecha entre os dedos - aos oito meu cabelo era todo branco. Aos doze um viajante chegou à cidade. Ele elogiou meus cabelos - deu um sorriso leve - ninguém nunca tinha elogiado
As lembranças da época ainda eram intratáveis, mesmo depois de anos. A alcunha de bruxa lhe seguiu entre sussurros junto com seus cabelos brancos, e ao passo que estes se tornavam mais evidentes, os sussurros se elevavam. Quando aquele viajante chegou a vila, pensou que talvez pudesse ter um amigo.
-Ele me chamou pra andarmos na floresta - continuou - andamos pra longe, eu sequer percebia. Quando estávamos longe, ele me jogou no chão e rasgou minhas roupas. - os dedos subiram da mexa até tocarem a própria têmpora - abri a cabeça dele. Depois disso as vozes nunca me deixaram sozinha. Eu o enterrei ali mesmo - deu de ombros - como era um viajante, poucos sentiram falta dele. Os dias levaram a lembrança dele dos moradores e eu escondi meus poderes por anos - fitou as próprias mãos - o resto da história você já sabe
A purificação, o julgamento e a fogueira - Um procedimento que acontecia para a maioria das acusadas de bruxaria, a bem da verdade, quase nenhuma sobrevivia ao julgamento, algumas sequer conseguiam passar pela purificação com vida. Tal purificação tinha como pretexto salvar a alma da acusada, o que no fundo era uma sessão de tortura, onde sádicos que vestiam a máscara de seguidores do divino poderiam extrapolar sua maldade. Feito isso, vinha o julgamento, cujas regras eram arbitrárias. Era decidido se a alma da bruxa havia sido purificada ou não. A fogueira era o destino da maioria das acusadas, mesmo não tendo provas. Um simples testemunho é o suficiente para desencadear tudo isso, mesmo sendo um testemunho falso, baseado em vingança ou desavença.
- A purificação foi o mais próximo do inferno que eu cheguei - tombou a cabeça pra frente, os dedos cravados no braço da sombra - me torturaram, me bateram, me molestaram - as orbes pararam - Mas... passou - sorriu dissimulada - meus demônios estão mortos - deslizou os dedos pelo braço da cópia - Graças a meu herói sem rosto
Pouco a pouco as esferas negras voltaram a se mover. Syndra ainda sorria, encostada a sombra, suas feições pareciam levemente inocentes, embora o ninja soubesse que inocência não era uma qualidade que ela tivesse.
-Sua vez - disse ela
- Essas sombras são de uma técnica proibida - aquela era a primeira vez que falava do assunto desde então - Eu sabia que não devia ler, mas de que adianta um poder imensurável se não pode ser usado? Então eu invadi e roubei o pergaminho
“Um assassino e ladrão, seu herói se banha em sangue” “Tanto quanto você” “Um casal de demônios” Ouviu os sussurros, decidiu ignorá-los por fim.
- Num segundo tenho o pergaminho aberto em minhas mãos - Zed fechou a mão canhota em um punho - no outro tenho a cabeça do meu Mestre ao meus pés. Não lembro como fiz - olhou para a sombra ao lado da maga - Mas o matei
O silêncio acompanhado do olhar vermelho, vivo como sangue, a fez se arrepiar. Sentiu medo, pela primeira vez, temeu Zed.
- Você é louco - ao sentir o olhar dele sobre si, outro arrepio lhe correu, certa excitação substituía o medo - Nós somos
- Não sou louco - ponderou - Mas concordo com sua loucura
Gargalhou a jovem. Se aconchegou, encolhendo as pernas. Se a sombra fosse uma pessoa, podia até ver um casal ali. Talvez fosse louco como ela, só assim poderia explicar o quanto a entendia. Ela era solitária, tendo apenas seu poder como companheiro fiel. Sabia que tinham sua parcela de igualdade, algo sombrio de se pensar. Depois de longos minutos, Syndra sucumbiu ao sono, uma expressão tão suave, ainda encostada a sombra. As orbes desvaneceram, foi então que teve certeza de que ela havia cedido ao cansaço. Foi nesse momento que trocou de lugar com a sombra. O calor de seu corpo, apoiado em seu braço era confortante. Por um momento fechou os olhos sentindo aquela proximidade. Nunca se deu ao luxo do calor humano, se afundou na solidão mesmo antes de controlar o poder das sombras. Ainda sim, sentia certa curiosidade em Syndra, talvez por sua beleza ou por sua personalidade, sua loucura, já não sabia.
Por alguns instantes aquilo não importou, ficou ali, ao lado dela sentindo sua respiração lenta e seu calor.
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