Luz se sentia estranha, e qualquer um que desse um close nela e parasse pra ver, veria que ela estava um pouco estranha de fato.
Durante o resto da semana que se passou, algum espírito protetivo baixou sobre ela, pois nem mesmo 'os outros' haviam visto a latina tão determinada a querer proteger alguém, ainda mais alguém tão rude à primeira vista.
Mas ao menos o resultado daquilo foi que em nenhum momento desde quarta, Amity Blight cruzou caminho com Zion. Mas não era somente isso, só de colocá-los na mesma sentença, Luz sentia novamente aquele incômodo esquisito no peito.
"Devia ir no médico ver isso. Não quero deixar de existir por culpa de um infarto" ouviu a voz rouca de 'Lexi' no meio dos seus pensamentos.
"Talvez não seja sintoma de infarto Lexiam, suspeito que seja outra coisa" em seguida, escutou a voz suave e madura de Lun, essa que fez a jovem Noceda arquear a sobrancelha em dúvida.
"Luna quer saber o que Lun e 'Lecsi tão falando! Preciso acordar a maninha Liz? Ela tá 'durmindo!" riu besta quando seus pensamentos foram invadidos pela vozinha fofa e amável de Luna, o pequeno raio de lua entre eles.
Sorte a sua que era sábado e estava dentro do quarto, pois se risse dessa maneira em público, só reforçaria a ideia de alguns de que ela precisava se tratar numa clínica.
Voltou a prestar atenção no que 'Lun' disse. O quê poderia ser esse incômodo? E por que ele só aparecia quando pensava em Amity Blight? Quer dizer, Zion estava no meio, mas nunca sentiu esse incômodo por causa de uma garota que ele estava interessado. O quê era diferente com ela?
Suspirou, encarando o teto do quarto. Eda havia levado os pets para o Pet Shop para os exames de rotina deles, então estava sozinha na Casa Coruja. Tinha pensado em ligar para Willow e Gus, marcar uma tarde de jogos e filmes e poderia deixar os 'outros' mais soltos, mas então se lembrou que os amigos estavam ocupados com suas programações de família.
Um bolo se formou na garganta só da palavra mãe passar pela cabeça. Teve tão pouco tempo com ela, foram tantos anos perdidos, tantas oportunidades de vê-la sorrir e sentir seu abraço...
Às vezes, sentia-se horrível ao pensar que perdeu a maior parte da sua vida ao lado dela por ser covarde, por deixar 'eles' no seu lugar para que tivessem o máximo de vivências e experiências com ela. Hoje, o que se lembrava dela de sua própria experiência não passava de momentos vagos e dispersos dentre as memórias fragmentadas.
Comprimiu os olhos e cerrou os punhos, se levantando com tudo da cama para afugentar as lágrimas. Não queria chorar, tinha que ser forte e aguentar o sabor amargo da decisão que tomou assim que descobriu que não estava sozinha, não queria que 'eles' se sentissem culpados.
Balançou a cabeça e se distanciou dos pensamentos, fechando a passagem imaginária que separava ela dos 'outros'. Procurou sua carteira e pegou suas chaves, calçando os tênis e pegando o primeiro casaco e a primeira touca que viu, terminando de ajustar seus dispositivos auditivos e os escondê-los sob a touca. Precisava sair, tomar um pouco de ar parecia ser a melhor ideia no momento.
Iria a pé, fazia tempo que não dava uma caminhada pelo bairro ou cumprimentava alguns dos vizinhos simpáticos, aqueles que nem desconfiavam da sua bagunça interna.
─ Luz Noceda! Há quanto não vejo seu belo rosto minha jovem! ─ um senhor de cabelos acinzentados e mãos enrugadas pela experiência de vida cumprimentou a latina com um sorriso afável enquanto podava suas plantas.
─ Senhor Jenkins! ¿Cómo va tu español? ─ perguntou animadamente.
─ Estoy trabajando en mi pronunciación, querida. ¿Cómo estás? ─ ele respondeu com um leve sotaque, mas numa pronúncia excelente, o que fez Luz sorrir largamente. Gostava de ensiná-lo sua língua materna.
Conversou um pouco com ele, e por consequência com sua esposa também quando a mesma apareceu trazendo um pouco de limonada. Adorava aquele casal, eram como tios ou até mesmo avós, já que os conheceu quando ainda era pequena, antes mesmo de se mudar para a Casa Coruja e morar com Eda.
Continuou sua caminhada depois de uma boa conversa e alguma insistência da Sra. Jenkins em convidá-la para um lanche. Mesmo se sentindo um pouco mais leve ainda precisava espairecer, relaxar o corpo e afastar completamente aqueles pensamentos atormentantes da mente.
Cumprimentou um ou outro vizinho que lhe chamava atenção, até brincou de fazer algumas embaixadinhas com a criançada que jogava bola na rua deserta. Aos poucos aquela angústia toda ia embora e Luz Noceda voltava a ser aquela garota de brilho radiante e incomparável.
Quando se deu conta do quanto tinha andado, estava se aproximando o parque da cidade e estava na rua da sua livraria favorita. Há meses esperava o lançamento da próxima aventura de Azura, e mesmo que tivesse reservado sua cópia, de tempos em tempos ia até lá para saber se o livro finalmente chegou.
"Por que não?" pensou com um leve sorriso.
Entrou na livraria e a primeira coisa que sentiu foi o cheiro de livros novos, juntamente do aroma de chocolate quente do pequeno balcão de lanches. Sorte a sua que trouxe a carteira.
─ Hey aprendiz da coruja!
─ Landon! ─ Se aproximou do balcão de pagamento, fazendo o aperto especial com o rapaz. ─ Como vão as coisas?
─ Tudo certo. E ah! Recebi o email da distribuidora, e a remessa com a edição limitada dos livros de Azura com autógrafo chega em duas semanas. O seu já tá reservado ─ ele pisca, dando um sorriso.
─ Você é incrível! ─ depositou um beijo na bochecha do garoto de cabelos azulados. ─ Me faz um chocolate quente com aqueles seus pães de queijo? Vim andando e agora bateu uma fome ─ diz risonha e meio sem graça.
─ Claro que sim corujinha, escolhe qualquer lugar aí que vou pedir pra Viney cuidar do balcão pra mim ─ assentiu em resposta.
Vagou o olhar pelas mesas à procura e um lugar para se sentar. Mas não esperava que numa das mesas perto da janela, reconheceria o cabelo castanho de pontas verdes de Amity Blight. Se aproximou dela, a vendo concentrada na leitura de um livro.
─ Blight?
______________
Quando o final de semana chegou, Amity só faltou suspirar de alívio por ter superado mais uma semana dentro daquele que era o seu inferno particular: estar no mesmo ambiente que outros jovens, onde a maioria era idiota e jamais acrescentaria em seu caráter algo realmente útil.
Também havia superado uma semana onde encontrou alguém muito mais inconveniente e irritante do que a latina: o capitão do time masculino de vôlei, que passou a persegui-la só para encher o saco.
Por sorte(?), nos últimos dois dias que se passaram, era justamente a latina quem estava lhe "ajudando" a se livrar do rapaz. Com sua maior estatura física, a Noceda já havia lhe acobertado sempre que passavam por ele nos corredores cheios.
Ainda estava em grande dúvida interna se ela fazia isso por que queria, ou por algo em troca no final. Quer dizer, Amity tinha um segredo dela, então talvez a garota estaria apenas para provar que ela estava errada, certo?
Bem, não estava com cabeça para pensar nisso, quando estava sentido uma puta vontade de xingar seus pais pela decisão mais estúpida que tomaram: deixarem-na sozinha na mansão Blight tendo que bancar a babá de ninguém mais que Boscha Thirdeye.
Seus pais e a mãe de Boscha entraram num acordo de paz quanto à tentarem acabar com a influência e reputação do outro, e agora estavam eles numa viagem de negócios, onde Odália sugeriu que a filha de Amélia passasse o fim de semana na mansão da família, também como uma forma das filhas estreitarem os laços. Sinceramente, pior decisão possível.
Mas como uma boa Blight, encarava a situação com classe.
Entre ficar na mansão e aturar Boscha e seus irmãos – três insuportáveis juntos –, e ir para um lugar mais tranquilo e com poucas chances de se irritar, Amity preferia estar ali na livraria, lendo seu livro sem nada ou ninguém para perturbar sua paz.
Ou era o que pensava até ouvir a voz inconfundível de uma das últimas pessoas que esperava encontrar num local como aquele: a Noceda.
─ Blight?
Desviou o olhar da sua leitura por meio segundo, mas o bastante para ver a latina e ter noção de que ela, de todas as pessoas do mundo, estava bem ali na sua frente lhe olhando. Não fazia ideia da expressão em seu próprio rosto, mas tinha alguma certeza de que estava bem surpresa e um pouco confusa. O que diabos ela fazia numa livraria?
─ O que está fazendo aqui? ─ perguntou, voltando a atenção para o parágrafo onde tinha parado.
─ Eu acho que eu quem deveria perguntar isso, já que venho sempre aqui e nunca te vi antes. É inesperado... não pensei que fosse vê-la fora da escola ─ a morena diz.
─ Ainda não respondeu minha pergunta ─ apontou, ignorando a fala anterior dela.
─ Bem, vim para saber se um livro que estou esperando já chegou ─ Luz respondeu simplesmente, vendo ela voltar a lhe encarar com um olhar de escárnio, como se não acreditasse no que dissera. ─ Sei que sou só uma inconveniente sem cultura, mas eu aprendi a ler também ─ brincou num tom divertido.
Amity revirou os olhos ─ devo fingir surpresa que deva ler aquele gibis japoneses que não trazem nada de útil para o caráter?
A jovem latina encenou indignação ─ se está dizendo isso você nunca leu nenhum mangá, e assim você está me ofendendo!
A Blight resolveu ignorar, dando total atenção ao seu livro enquanto tentava não se incomodar com a presença da garota. Pelo menos até ela se sentar à mesa sem mais nem menos com se não estivesse ali.
─ O te faz pensar que pode se sentar comigo? ─ questionou friamente.
─ Minha presença te incomoda não é? ─ o sorriso nos lábios dela diminuiu, e a garota de cabelos verdes sentiu um incômodo desconhecido no peito.
─ Ainda bem que tem consciência disso ─ falou sem pensar.
─ Desculpe ─ ela abaixou o olhar, mas sem diminuir mais ainda o sorriso. ─ Só vou esperar meu lanche chegar e vou me retirar, imagino que deva ser um porre me aturar até no fim de semana ─ ela falou um pouco sem graça, coçando a nuca.
Quando ela parou de falar, Amity parou novamente sua leitura para encará-la. De alguma forma, ela estava diferente de ontem. Ela não emanava aquela inconveniência de sempre, nem sorria daquela maneira irritante como se pudesse fazer o que quisesse. Ela parecia abatida, diria até triste.
Na realidade, nos últimos dois dias na Hexside ela não parecia a mesma. Sempre que estava para encontrar-se com o idiota capitão de vôlei, ela aparecia do nada e tomava a atenção dele, sinalizando para seguir em frente; e também como já foi mencionado antes, com seu porte atlético ela lhe acobertava e impedia que ele a visse quando passavam pelos corredores.
Mas aquilo era irrelevante no momento. Por alguma razão, Amity estava incomodada por vê-la daquele jeito abatido, e agiu por impulso quando disse:
─ "Na vida de cada homem existem duas faces: a vida pessoal, que é tanto mais livre quanto mais abstratos forem seus interesses, e a vida geral, social, na qual o homem obedece, inevitavelmente, as leis que lhe são prescritas. Por si próprio, o homem vive conscientemente, mas serve de instrumento inconsciente às finalidades históricas da humanidade.[...]"
─ "[...]O ato praticado é irreparável e sua importância histórica está em concordar, no tempo, com milhões de atos praticados por outros homens. Quanto mais o homem se elevar na escala social, quanto mais próximo estiver dos homens superiores, quanto maior for sua influência sobre os outros, mais evidente será a predestinação e a fatalidade de cada um de seus atos." ─ Luz interrompeu concluindo o trecho do conhecido livro. ─ Guerra e Paz, Liev Tolstói.
A Blight arqueou o cenho devidamente surpresa por ela conhecer tal clássico da literatura, perdendo totalmente o foco e o interesse no livro que lia para fitá-la, vendo um sorriso radiante surgir em seus lábios.
─ Conhece? ─ indagou o óbvio, mesmo tendo suas dúvidas.
─ Não se julga um livro pela capa, e eu precisava de uma nota boa em literatura ─ respondeu divertida. ─ Acabei gostando.
O sorriso da latina era contagiante, nada parecido com aqueles que já viu tantas vezes na escola e lhe irritavam. Era leve, alegre, e até esperançoso.
Amity não tinha percebido, mas ela havia dado uma pequena abertura para que Luz mostrasse que não era a garota que pensava que ela fosse; Amity também não percebeu quando suas defensas caíram ao ponto dela abrir um sorriso, discreto, mas existente.
─ Hey Luz, o Landon pediu pra eu te entregar ─ uma garota de cabelo escuro e preso, com um brinco de gancho na orelha apareceu, entregando um saco marrom para a latina.
─ Ah! Valeu Viney! ─ a Noceda se levantou e pegou o saco, dando um breve aceno para morena.
─ Era isso que estava esperando? ─ perguntou, deduzindo que esse fosse o lanche dela.
─ Sim, um dos melhores lanches de livraria ─ ela respondeu sorridente. ─ Ah, sobre o trabalho da Lady Coruja... eu meio que esqueci de falar com ela, mas ainda posso o fazer se realmente quiser desfazer a dupla ─ a Noceda relembrou coçando a nuca, se virando para ir embora e passando a andar para a saída.
Só que nenhuma das duas esperou uma resposta ─ não perca tempo com isso, faça sua parte que eu faço a minha. Só me poupe de ter que apresentá-lo com você, não quero passar vergonha por sua causa ─ Amity disse, então voltando para sua leitura de uma vez por todas.
─ Até segunda-feira, Amity Blight.
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