Seria otimismo demais pensar que os sonhos estranhos teriam acabado de vez depois que entrei no acampamento. Nesta noite eles voltaram a acontecer.
No sonho, Luke estava estirado no chão com o lado esquerdo do corpo ensanguentado, próximo a um braseiro, com Annabeth, Grover e Percy, mas eles pareciam mais velhos, com uns dezesseis e Luke com vinte e poucos anos. Meu irmão se levantou e encarou uma multidão que não reconheci.
- Nós precisamos de uma mortalha - Percy anunciou, com a voz embargada. - Uma mortalha para o filho de Hermes.
Acordando, eu quase caí da beliche, com o coração a mil quilômetros por hora.
Caso eu estivesse certa, em quatro anos, Luke estaria... morto.
Era como se alguém apertasse minha garganta e estivesse restringindo a quantidade de oxigênio que entrava e saia dos meus pulmões.
Não vi quando o pequeno Will Solace se sentou ao meu lado, só o percebi quando apoiou a cabeça no meu ombro e me abraçou.
- O sr. Jacinto quer dormir com você essa noite - Will me entregou o coelhinho de pelúcia - , mas ele só dorme se você apertar ele bem forte. Boa noite sr. Jacinto. Boa noite Aline.
Ele deu um beijo na minha testa e foi para a sua cama e eu voltei a dormir.
Neste sonho, eu conversava com duas pessoas. O homem parecia ter dezessete ou dezoito anos, ele vestia jeans e sapatos de viagem e camiseta sem mangas. Cabelos louros brilhantes e os dentes perfeitamente brancos me davam um ar de familiaridade.
Ele falou algo para ela.
Eu ri, não sei o motivo, mas ri.
A garota de cabelos negros de uns quatorze anos revirou os olhos.
E eu acordei.
***
Nessa manhã, Quíron mudou Percy para o chalé 3.
Eu entendia o porquê de meu irmãozinho estar triste.
Bem quando começava a se sentir aceito, a sentir que tinha um lar no chalé 11 e poderia ser um garoto normal - ou tão normal quanto é possível quando se é um meio-sangue -, foi separado como se tivesse alguma doença rara.
Ninguém mencionou com ele sobre o cão infernal, mas estavam todos falando sobre isso pelas suas costas. O ataque assustara todo mundo. Ele mandou duas mensagens: a primeira, que Percy era filho era filho do Deus do mar; a segunda, que os monstros não mediriam esforços para o matar. Podiam até invadir um acampamento que sempre foi considerado seguro. Depois que eu comprara briga com que falasse mal de Percy pararam de comentar comigo também.
Até Clarisse mantinha distância, embora os olhares venenosos deixassem claro que queria o matar por ter quebrado sua lança mágica.
Soube que alguém no acampamento andava ressentido comigo, porque uma noite entrei no meu chalé e achei um jornal horrível jogado na beliche, um exemplar do New York Daily News, aberto na página Metrópole. Levei quase uma hora para ler a matéria, porque quanto mais ficava zangada mais as palavras pareciam flutuar na página.
MENINO, SUA MÃE E AMIGA DA FAMÍLIA AINDA DESAPARECIDOS DEPOIS DE ESTRANHO ACIDENTE DE CARRO
Por Ellen Smythe
Sally Jackson, seu filho Percy e Aline Wolf ainda não foram encontrados uma semana depois de seu misterioso desaparecimento. O carro da família Jackson, um Camaro 1978, totalmente queimado, foi descoberto no último sábado em uma estrada ao norte de Long Island com o teto arrancado e o eixo dianteiro quebrado. O carro havia capotado e derrapado por várias centenas de metros antes de explodir. Mãe e filho tinham ido passar um fim de semana em Montauk, mas saíram às pressas, sob circunstâncias misteriosas. Pequenos sinais de sangue foram encontrados no carro e perto da cena do desastre, mas não havia outros indícios dos Jackson desaparecidos. Residentes da área rural declararam não ter visto nada de inusitado por volta da hora do acidente. O marido da sra. Jackson, Gabe Ugliano, alega que o enteado, Percy Jackson, é uma criança problemática que foi expulsa de inúmeros internatos e demonstrou tendências violentas no passado. A mãe da garota, Eliane Wolf, afirma que a filha fugira do apartamento no Brooklyn para se juntar ao colega de sala em Montauk.
A polícia não diz se Aline e Percy são suspeitos do desaparecimento de Sally, porém não descarta a hipótese de crime. Abaixo estão fotografias recentes de Sally e Percy Jackson e Aline Wolf. A polícia solicita a qualquer pessoa que tenha alguma informação que ligue gratuitamente para o disque-denúncia de crimes, a seguir.
O número do telefone estava circulado com marcador preto.
Amarrotei o jornal e joguei fora, depois me joguei em meu beliche no meio do chalé.
No dia seguinte, ouvi um som oco à porta, o som de um casco batendo na soleira.
- Entre.
Grover trotou para dentro, parecendo preocupado.
- O sr. D quer vê-la.
- Por quê?
- Ele quer matar... quer dizer, é melhor deixar que ele conte.
Acima do estreito de Long Island, o céu parecia uma sopa de tinta em ponto de fervura. Uma cortina brumosa de chuva vinha em nossa direção. Perguntei a Grover se precisávamos de um guarda-chuva.
- Não - disse ele. - Aqui nunca chove, a não ser que queiramos.
Apontei a tempestade.
- Então o que diabos é aquilo?
Ele olhou, preocupado, para o céu.
- Vai passar em volta de nós. O mau tempo sempre faz isso.
Percebi que ele estava certo. Fazia uma semana que estava ali e nunca vira o tempo fechado. As poucas nuvens de chuva que tinha notado contornavam os limites do vale.
Mas aquela tempestade... aquela era imensa.
Na arena de vôlei meus meio-irmãos jogavam uma partida matinal contra os sátiros. Os gêmeos de Dionísio caminhavam em volta dos campos de morangos fazendo as plantas crescerem. Todos estavam cuidando de suas tarefas normais, mas pareciam tensos. Estavam de olho na tempestade.
Grover e eu caminhamos até a varanda da frente da Casa Grande. Dionísio estava sentado à mesa de pinoche com sua Diet Coke, usando a camisa havaiana com listras de tigre, exatamente como no meu primeiro dia. Quíron estava do outro lado da mesa em sua falsa cadeira de rodas. Jogavam contra oponentes invisíveis - duas mãos de cartas flutuavam no ar. E Percy se postava de pé diante da mesa. Ouvindo o que o sr. D dizia.
- ...não espere que eu me prostre diante de você, mortal, só porque o velho Barbas de Craca é seu pai.
Uma rede de raios brilhou através das nuvens. Um trovão fez tremerem as janelas da casa.
- Blablablá - disse Dionísio.
Quíron fingiu interesse em suas cartas de pinoche. Grover se encolheu junto ao gradil, os cascos batendo para a frente e para trás.
- Se as coisas fossem do meu jeito - disse Dionísio -, eu faria suas moléculas irromperem em chamas. Nós varreríamos as cinzas e estaríamos livres de um monte de problemas. Mas Quíron parece achar que isso seria contra a minha missão neste acampamento maldito: manter vocês, moleques, a salvo do mal.
- Combustão espontânea é uma forma de mal, sr. D - interveio Quíron.
- Bobagem - disse Dionísio. - O menino não sentiria nada. No entanto, eu concordei em me conter. Estou pensando em transformá-lo em um golfinho em vez disso, e mandá-lo de volta para seu pai.
- Sr. D... - advertiu Quíron.
- Ora, está bem - cedeu Dionísio. - Há mais uma opção. Mas é uma insensatez descomunal. - Dionísio levantou-se, e as cartas dos jogadores invisíveis caíram sobre a mesa. - Estou indo ao Olimpo para uma reunião de emergência. Se o menino ainda estiver aqui quando eu voltar, vou transformá-lo em um nariz-de-garrafa do Atlântico. Entendeu? E Perseu Jackson, se você for mesmo esperto, verá que se trata de uma escolha muito mais sensata do que aquela que Quíron imagina.
Dionísio pegou uma carta, torceu-a e ela se transformou em um retângulo de plástico. Cartão de crédito?
Não. Um passe de segurança.
Ele estalou os dedos.
O ar pareceu se dobrar e se curvar em volta dele. Ele transformou-se em um holograma, depois em um vento e depois desapareceu, deixando para trás apenas o cheiro de uvas recém-prensadas.
Quíron sorriu para mim, mas parecia cansado e tenso. Tentei imaginar o porquê de o diretor do Acampamento nem olhar para mim, mas nenhuma ideia me veio à cabeça.
- Sentem-se, Percy e Aline, por favor. Grover também.
Nós obedecemos.
Quíron pôs suas cartas na mesa. A mão vencedora que ele não chegara a usar.
Diga-me, Percy - disse ele. - O que você fez com o cão infernal?
Só de ouvir o nome, eu estremeci.
- Ele me apavorou - falou. - Se vocês não o tivessem acertado, eu estaria morto.
- Você vai enfrentar coisas piores, Percy. Muito piores, antes de terminar.
- Terminar... o quê?
- Sua missão, é claro. Você vai aceitá-la?
Dei uma olhada para Grover, que estava cruzando os dedos.
- Ahn, senhor, ainda não me contou qual será. - disse Percy
Quíron fez uma careta.
- Bem, essa é a parte difícil, os detalhes.
Um trovão irrompeu pelo vale. As nuvens de tempestade haviam agora chegado ao limite da praia. Até onde eu podia ver, o céu e o mar estavam fervendo juntos.
- Poseidon e Zeus - disse eu. - Eles estão lutando por algo valioso... algo que foi roubado, não estão?
Senti o rosto quente. Desejei não ter aberto meu bocão.
- Desde o Natal o tempo está esquisito, como se o mar e o céu estivessem brigando.
Percy assumiu a fala.
- Então falei com Annabeth, e ela tinha ouvido alguma coisa sobre um roubo. E ... também andei sonhando umas coisas.
- Eu sabia - disse Grover.
- Quieto, sátiro - ordenou Quíron.
- Mas essa é a missão dele! - Os olhos de Grover estavam brilhantes de excitação. - Tem de ser!
- Só o Oráculo pode determinar. - Quíron alisou a barba eriçada. - No entanto, Percy, você está correto.
Seu pai e Zeus estão tendo sua pior disputa em séculos. Estão lutando por uma coisa valiosa que foi roubada. Para ser preciso: um relâmpago.
Eu ri nervosa.
- Um o quê?
- Não brinque com isso - advertiu Quíron. - Não estou falando de um ziguezague recoberto de papel-alumínio como você vê em peças da escola. Estou falando de um cilindro de bronze celestial de alto grau, com sessenta centímetros de comprimento, arrematado em ambos os lados com explosivos de nível deífico.
- Ah.
- O raio-mestre de Zeus - disse Quíron, agora ficando emocionado. - O símbolo de seu poder, conforme o qual todos os outros raios são moldados. A primeira arma feita pelos Ciclopes para a guerra contra os Titãs, que decepou o cume do Monte Etna e arremessou Cronos para fora do seu trono; o raio-mestre, que acumula potência suficiente para fazer as bombas de hidrogênio dos mortais parecerem fogos de artifícios.
- E ele desapareceu?
- Roubaram - disse Quíron.
- Quem roubaram? - perguntou erroneamente Percy.
- Quem roubou - corrigiu Quíron. Uma vez professor, sempre professor. - Você.
Meu queixo e o de Percy caíram ao mesmo tempo.
- Pelo menos - Quíron ergueu uma das mãos -, é isso que Zeus pensa. Durante o solstício de inverno, na última assembleia dos deuses, Zeus e Poseidon tiveram uma discussão. As tolices de sempre: "A Mãe Reia sempre gostou mais de você", "Os desastres aéreos são mais espetaculares que os marítimos", etc. Mais tarde, Zeus se deu conta de que o seu raio-mestre havia desaparecido, levado da sala do trono bem debaixo do seu nariz. No mesmo instante culpou Poseidon. Agora, um deus não pode usurpar diretamente o símbolo de poder de outro deus - isso é proibido pela mais antiga das leis divinas. Mas Zeus acredita que seu pai convenceu um herói humano a pegá-lo.
- Mas eu não...
- Paciência, e escute, criança - disse Quíron. - Zeus tem boas razões para suspeitar. As forjas dos Ciclopes ficam embaixo do oceano, o que dá a Poseidon alguma influência sobre os fabricantes dos raios do seu irmão. Zeus acredita que Poseidon pegou o raio-mestre e está agora mandando os Ciclopes construírem secretamente um arsenal de cópias ilegais, que poderiam ser usadas para derrubar Zeus do seu trono. A única coisa de que Zeus não tinha certeza era qual herói Poseidon usara para roubar o raio. Agora Poseidon declarou abertamente que você é filho dele. Você estava em Nova York nas férias de inverno. Poderia facilmente ter se infiltrado no Olimpo. Zeus acredita que encontrou o seu ladrão.
- Mas eu nunca estive no Olimpo! Zeus está maluco!
Eu dei uma cotovelada nas costelas de Percy. Uma vez vira Bea, a filha de Hécate, se queixar que sua mãe demorara dois longos anos para assumi-la como filha, e o resultado da queixa foram três trovões seguidos. Aprendi que não se devia xingar os deuses num lugar onde pudesse ser atingida por um raio.
Quíron e Grover olharam nervosamente para o céu. As nuvens não pareciam estar se separando à nossa volta, como Grover prometera. Estavam vindo para cima do nosso vale, fechando-nos dentro dele como uma tampa de caixão.
- Ahn, Percy...? - disse Grover. - Nós não usamos essa palavra que começa com m para descrever o Senhor do Céu.
- Paranoico, quem sabe - sugeriu Quíron. - Mas, por outro lado, Poseidon já tentou derrubar Zeus antes. Acredito que essa foi a pergunta 38 da sua prova final... - Ele olhou para nós como quem realmente esperava que nos lembrássemos da pergunta 38.
- Alguma coisa a ver com uma rede de ouro? - adivinhei. - Poseidon, e Hera, e alguns outros deuses... eles, tipo, prenderam Zeus numa armadilha e não o deixaram sair até ele prometer ser um soberano melhor, certo?
- Correto - disse Quíron. - E Zeus nunca mais confiou em Poseidon desde então. Poseidon, é claro, nega ter roubado o raio-mestre. Ele se ofendeu com a acusação. Os dois vêm discutindo o tempo todo há meses, com ameaças de guerra. E agora você apareceu - a famosa gota-d’água.
- Mas eu sou apenas uma criança!
- Percy - interveio Grover -, se você fosse Zeus, e já achasse que o seu irmão estava planejando derrubá-lo, e então subitamente admitisse que havia quebrado o juramento sagrado que fizera depois da Segunda Guerra Mundial e que era pai de um novo herói mortal que poderia ser usado como uma arma contra você... Isso não o deixaria com a pulga atrás da orelha?
- Mas eu não fiz nada. Poseidon, ele realmente não mandou roubar o raio-mestre, mandou?
Quíron suspirou.
- A maioria dos observadores inteligentes concordaria que o roubo não faz o estilo de Poseidon. Mas o Deus do Mar é orgulhoso demais para tentar convencer Zeus disso. Zeus exigiu que Poseidon devolva o raio até o solstício de verão. Isso será em 21 de junho, dez dias a contar de agora. Poseidon quer um pedido de desculpas por ser chamado de ladrão até essa mesma data. Eu tinha esperanças de que a diplomacia prevalecesse, que Hera, Deméter ou Héstia fariam os dois irmãos verem a razão. Mas a sua chegada inflamou o gênio de Zeus. Agora nenhum dos dois deuses quer recuar. A não ser que alguém intervenha, a não ser que o raio-mestre seja encontrado e devolvido a Zeus antes do solstício, haverá guerra. E você sabe como poderia ser uma guerra total, Percy?
- Ruim?
- Imagine o mundo em caos. A natureza em guerra consigo mesma. Os olimpianos forçados a escolher lados entre Zeus e Poseidon. Destruição. Carnificina. Milhões de mortos. A civilização ocidental transformada em um campo de batalha tão grande que fará a Guerra de Tróia parecer uma luta de balões d’água.
- Ruim - repetiu.
- E você, Percy Jackson, será o primeiro a sentir a ira de Zeus.
Começou a chover. Os jogadores de vôlei interromperam o jogo e olhavam perplexos para o céu.
- Então eu tenho de encontrar aquele raio estúpido - disse Percy, bravo. - E devolvê-lo a Zeus.
- Que melhor oferenda de paz - disse Quíron -, do que fazer filho de Poseidon devolver o que é de Zeus?
- Se não está com Poseidon, onde está essa coisa? - questionei.
- Eu creio que sei. - A expressão de Quíron era soturna. - Parte da profecia que recebi anos atrás... bem, algumas frases fazem sentido para mim, agora. Mas, antes que eu possa dizer mais, você precisa aceitar oficialmente a missão. Você precisa procurar o conselho do Oráculo.
- Por que você não pode dizer de antemão onde está o raio?
- Porque, se eu fizer isso, você ficará assustado demais para aceitar o desafio.
Eu engoli em seco.
- Boa razão. - concordou Percy
- Então você concorda?
- Está bem - disse ele. - É melhor do que ser transformado em um golfinho.
- Então é hora de você consultar o Oráculo - disse Quíron. - Vá para cima, Percy Jackson, para o sótão. Quando descer de novo, presumindo que ainda esteja lúcido, conversaremos mais.
***
Depois de dez minutos eternos, Percy desceu e se jogou numa cadeira.
- Ela disse que eu devia recuperar o que foi roubado.
Grover se inclinou para frente, mascando animado os restos de uma lata de Diet Coke. - Isso é ótimo!
- O que foi que o Oráculo disse exatamente? - pressionou Quíron. - Isso é importante.
- Ela... ela disse que eu iria para o oeste e enfrentaria um deus que se tornou desleal. Recuperaria o que foi roubado e devolveria em segurança.
- Eu sabia - disse Grover.
Quíron não pareceu satisfeito.
- Mais alguma coisa?
Sabia que ele estava escondendo algo, mas não o pressionei.
- Não - falou. - Isso é tudo.
Quíron estudou seu rosto.
- Muito bem, Percy. Mas saiba disto as palavras do Oráculo frequentemente têm duplo sentido. Não se fie demais nelas. A verdade nem sempre fica clara até que os eventos aconteçam.
- Certo - falou, ansioso por mudar de assunto. - Então, aonde vou? Quem é esse deus no oeste?
- Ah, pense, Percy - disse Quíron. - Se Zeus e Poseidon enfraquecem um ao outro numa guerra, quem tem a ganhar com isso?
- Algum outro que queira tomar o poder? - tentou Percy.
- Sim, exatamente. Alguém que guarda um ressentimento, alguém que está infeliz com a parte que lhe coube desde que o mundo foi dividido eras atrás, cujo reinado se tornará poderoso com a morte de milhões. Alguém que odeia os irmãos por forçá-lo a um juramento de não ter mais filhos, um juramento que ambos quebraram.
Percy pensou um pouco.
- Hades.
Quíron assentiu.
- O Senhor dos Mortos é a única possibilidade.
Grover babou um pedaço de alumínio pelo canto da boca.
- Opa, espere aí. O-o quê?
- Uma das Fúrias veio atrás de Percy - lembrou Quíron. - Ela observou o rapaz até ter certeza da sua identidade, e então tentou matá-lo. As Fúrias obedecem a um só senhor: Hades.
- Sim, mas... mas Hades odeia todos os heróis - protestou Grover. - Especialmente se tiver descoberto que Percy é filho de Poseidon...
Eu tinha minhas dúvidas; numa conversa minha com Scott Noceda, filho de Tânatos, deus da morte (não confunda com deus dos mortos, esse é o trabalho de Hades), ele me disse que o submundo estava praticamente explodindo de almas e eu não via como o domínio de Hades poderia se expandir com uma guerra.
- Quíron - comecei. -, não acho que seja Hades, isso não faz sentido. Por que Hades iria querer mais mortos?
- Um cão infernal conseguiu entrar na floresta - continuou Quíron. - Eles só podem ser convocados dos Campos da Punição, e ele tinha de ser convocado por alguém de dentro do acampamento. Hades deve ter um espião aqui. Ele deve suspeitar que Poseidon tentará usar Percy para limpar seu nome. Hades gostaria muito de matar esse jovem meio-sangue antes que ele possa assumir a missão.
- Boa - murmurou Percy. - São dois dos deuses mais importantes querendo me matar.
- Mas uma missão para... - Grover engoliu em seco. - Quer dizer, o raio-mestre não poderia estar em algum lugar como o Maine? O Maine é muito agradável nesta época do ano.
- Hades enviou um protegido para roubar o raio-mestre - insistiu Quíron. - Ele o escondeu no Mundo Inferior, sabendo muito bem que Zeus culparia Poseidon. Não pretendo entender perfeitamente os motivos do Senhor dos Mortos ou por que ele escolheu esta época para começar uma guerra, mas uma coisa é certa: Percy precisa ir ao Mundo Inferior; encontrar o raio-mestre e revelar a verdade.
- Olhe, se nós sabemos que é Hades - Percy disse a Quíron -, Zeus ou Poseidon poderiam descer ao Mundo Inferior e fazer rolar algumas cabeças.
- Suspeitar e saber não são o mesmo - disse Quíron. - Além disso, mesmo que suspeitem de Hades… imagino que Poseidon suspeite.. os outros deuses não poderiam recuperar o raio por si mesmos. Deuses não podem entrar nos territórios um do outro a não ser que sejam convidados. Essa é outra regra muito antiga. Heróis, por outro lado, têm certos privilégios. Podem ir a qualquer lugar, desafiar qualquer um, desde que sejam corajosos e fortes o bastante para fazê-lo. Nenhum deus pode ser responsabilidade pelos atos de um herói. Por que acha eu os deuses sempre agem por intermédio de seres humanos?
- Você está dizendo que estou sendo usado.
- Estou dizendo que não é por acaso que Poseidon o assumiu agora. É uma jogada muito arriscada, mas ele está em uma situação desesperadora. Precisa de você.
Percy olhou para Quíron.
- Você sabia o tempo todo que eu era filho de Poseidon, não é?
- Tinha minhas suspeitas. Como eu disse... também falei com o Oráculo. Tive a sensação de que havia muita coisa que ele não estava me contando sobre sua profecia, mas percebi que não poderia me preocupar com aquilo naquela hora.
- Então, deixe-me entender direito - falei. - Percy precisa ir para o Mundo Inferior e confrontar o Senhor dos Mortos.
- Confere - disse Quíron.
- Para encontrar a arma mais poderosa do universo.
- Confere.
E levá-la de volta ao Olimpo antes do solstício de verão, daqui a dez dias.
- Isso mesmo.
Não é de se admirar que tantos heróis morram em missões. disse uma vozinha na minha cabeça.
Quíron se virou para mim como se lembrasse de algo importantíssimo.
- Aline, por mais que eu discorde, o Conselho Olimpiano, por mais que haja o problema do furto do raio, decidiu em conjunto que é de sumo valor que você vá junto ao grupo de três pessoas, não como uma delas, os deuses querem… digamos… ahn… testa-la, por assim dizer.
Estava com uma pulga atrás da orelha. Queria poder saber por quê de tanto mistério em torno de mim, por quê meu pai no meu primeiro dia no acampamento conversou com Quíron à meu respeito, por quê tenho tido sonhos estranhos, que eu descobri serem visões do futuro, por quê doze deuses superpoderosos, na beira de uma guerra, se reuniram para falar sobre mim.
Olhei para Grover, que engoliu o ás de copas.
- Cheguei a mencionar que o Maine é muito agradável nesta época do ano? - perguntou ele de um jeito cansado.
- Você não precisa ir - disse Percy a ele. - Não posso lhe exigir isso.
- Ah... - Ele se balançou de um casco para o outro. - Não... é só que os sátiros, e os lugares embaixo da terra... bem...
Ele respirou fundo, depois se pôs de pé, sacudindo os pedaços de cartas e alumínio da camiseta.
- Você salvou a minha vida, Percy. Se... se está falando sério em querer que eu vá junto, não vou deixá-lo na mão.
Eu me virei para Quíron.
- Então, para onde vamos? O Oráculo só disse para ir para oeste.
- A entrada para o Mundo Inferior fica sempre no oeste. Muda de lugar de era em era, como o Olimpo. Atualmente, é claro, fica nos Estados Unidos.
- Onde?
Quíron pareceu surpreso.
- Pensei que fosse óbvio. A entrada para o Mundo Inferior fica em Los Angeles.
- Ah - falou. - Claro. Então é só pegar um avião…
- Não! - gritou Grover. - Percy, o que está pensando? Alguma vez na vida já esteve em um avião?
Ele sacudiu a cabeça, sem graça. Percy nunca viajara de avião. Tia Sally sempre dizia que não tínhamos dinheiro pra isso. Além disso, os pais dela tinham morrido em um desastre de avião.
- Percy, pense - disse Quíron. - Você é filho do Deus do Mar. O rival mais rancoroso do seu pai é Zeus, Senhor do Céu. Sua mãe sabia muito bem que não podia confiar você a um avião. Acima de nós, relâmpagos estalaram. O trovão ribombou.
- Certo - disse eu, determinada a não olhar para a tempestade. - Então, viajaremos por terra .
- Certo - disse Quíron. - Dois parceiros poderão acompanhá-lo, além de Aline. Grover é um. O outro já se apresentou como voluntário, se você aceitar a ajuda dela.
- Puxa - falei, fingindo surpresa. - Quem mais seria bastante estúpido para se apresentar para uma missão como essa?
O ar tremulou atrás de Quíron. Annabeth se tornou visível, enfiando o boné dos Yankees no bolso de trás.
- Eu estava esperando há muito tempo por uma missão, Cabeça de Alga - disse ela. - Atena não é fã de Poseidon, mas se você vai salvar o mundo, sou a melhor pessoa para impedir que estrague tudo.
- Se é você quem diz. Tem algum plano, Sabidinha?
As bochechas dela coraram.
- Você quer a minha ajuda ou não?
- Isso vai dar certo. - disse Percy
- Excelente - disse Quíron. - Esta tarde podemos levar vocês no máximo até o terminal de ônibus em Manhattan. Depois disso, estarão por conta própria.
Um relâmpago. A chuva desabou sobre as campinas que jamais deveriam ver um temporal violento.
- Não há tempo a perder - disse Quíron. - Acho que todos vocês devem fazer as malas.
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