Tenho que dar o braço a torcer. Apesar da caçada complicada e maluca, diferente de todas as outras que eu e Sam nos envolvemos ao longo de anos na estrada, foi uma experiência e tanto ter conhecido o Doutor e viajado ao seu lado na TARDIS.
Se no começo eu tinha uma dificuldade justificável em confiar no alienígena falador e engomadinho, agora o considero um aliado, talvez um amigo, alguém de quem certamente sentirei falta quando tudo isso acabar e a despedida for inevitável.
O Doutor subiu no meu conceito ao quebrar seu código de conduta para me ajudar a resgatar Sam. Por essa escolha, que imagino ter sido bem difícil de tomar, serei para sempre grato.
Tenho certeza que o Doutor sabe que não foi somente Sam que ele salvou ao voltar no tempo e impedir aquele maldito Anjo Lamentador de jogá-lo num século remoto. O Doutor me salvou também pois, sem o meu irmão, eu estaria completamente perdido a essa altura.
Preciso de Sam, Sam precisa de mim, fim de papo e nenhuma novidade nisso.
Pensei que acabaríamos aqui, sabe? O Doutor nos levando de volta ao bunker dos Homens das Letras, para onde tudo começou, algumas lágrimas masculinas rolando, a despedida oficial e o derradeiro fim. Cada um iria para o seu lado, eu e Sammy voltaríamos a caçar eventualmente, o Doutor desapareceria a bordo de sua inseparável TARDIS e vida que segue.
De certa forma, sei que é isso que vai acontecer, mas ainda não.
Não é todo dia que você conhece um ET viajante do tempo. Então, quando a sorte bate à porta assim, temos que aproveitar, certo?
E não me orgulho de admitir isso, mas decido pedir um favorzinho ao Doutor. Minha intenção é rever meu pai, a mamãe, Bobby, Ash, Jo, Ellen, Rufus... Droga, tantos que já se foram e que continuam fazendo uma tremenda falta.
Porém, acabo por desistir da ideia já que, segundo o Doutor, é muito arriscado viajar pela própria linha do tempo ou pela linha de pessoas que nos foram próximas. Podemos meter os pés pelas mãos, tentar mudar certas coisas, mexer em detalhes e, com isso, fazer uma tremenda de uma bagunça com o tempo e o mundo que conhecemos hoje.
Já arrisquei demais ao voltar algumas horas no tempo para salvar meu irmão. Tivemos sorte por não ter havido grandes consequências, só um bizarro bug na matrix que, com muito charme e talento, conseguimos contornar.
Agora, sobre essa negativa do Doutor, estou convencido que é melhor assim. Rever familiares e amigos nessas circunstâncias só iria me lembrar que eles não estão mais aqui. Talvez seja melhor guardar todos eles na memória como venho fazendo, ao invés de remoer suas perdas e o vazio que deixaram.
O melhor que faço é continuar lutando pelo ideal que defenderam até o fim, enquanto posso. Até o meu derradeiro fim chegar também. Um dia, sei que vai. E sei que vou cair lutando como eles fizeram.
Estou refletindo sobre tudo isso, quando o Doutor diz:
— Peça outra coisa, Deanno. Deve ter algum lugar ou ano que você queira visitar, algum evento que faria de tudo para estar presente, algum ídolo que queira conhecer ou ver mais de perto pelo menos.
É imediato. Meus olhos simplesmente brilham diante da única opção que me vem à cabeça. Meu coração dispara. Meu fã interior vibra, animado. Um largo sorriso domina meu rosto.
Sam, ao meu lado, solta um riso baixo, já adivinhando o que tenho em mente.
Berlim, Alemanha, 07 de julho de 1980. Isso mesmo, último show da minha banda de rock favorita. Da melhor banda de todos os tempos, aliás. Led Zeppelin. Com licença. Aí vou eu!
Como eu disse antes, não é todo dia que se tem a sorte de cruzar o caminho de um viajante do tempo. Seria praticamente um crime não aproveitar a oportunidade. Ofensivo até.
Vou poupá-los de detalhes porque, sendo franco, nem eu mesmo sei descrever o que sinto quando a TARDIS se materializa bem atrás do palco e bem no instante em que os acordes de Stairway to heaven invadem meus ouvidos.
Limito-me a dizer uma coisa, um resumo desta noite lendária e inesquecível:
— Awesome!
***
Ainda estou tentando assimilar a experiência surreal e empolgante que vivi, quando o show chega ao fim e me vejo obrigado a voltar para a cabine azul de outro mundo.
— Awesome... — repito, com um sorriso de orelha a orelha.
Apesar do Doutor ter feito a mesma proposta para Sammy, dispondo-se a levá-lo aonde e quando ele desejasse, meu irmão dispensou a oferta.
Ele não precisa explicar o motivo. Sei que, depois de tudo o que passamos, Sam prefere manter os pés bem fincados em nosso próprio tempo e o olhar concentrado no futuro, não no passado.
Não vou dizer que ele está errado, mas também não vou mentir. Foi maravilhoso ter ido àquele show.
— Awesome! — exclamo ao lembrar de tudo mais uma vez.
Sinto que Sammy está começando a se irritar com a minha incapacidade de variar o vocabulário.
Enquanto isso, o Doutor segue até o painel de navegação. Parece pronto para ajustar as coordenadas que nos levarão para casa. De repente, ele hesita e olha em nossa direção. Concentra-se mais em Sam ao indagar:
— Tem certeza?
Depois de expirar sonoramente e relaxar um pouco os ombros, meu irmão responde firme:
— Sim. Eu sei qual é o meu lugar no mundo, e já passou da hora de voltar para lá. Nos leve para casa, Doutor.
Ainda assim, o último Senhor do Tempo insiste, argumentando com o olhar também em mim desta vez:
— Apesar do pouco tempo juntos, eu sinto que já conheço vocês o suficiente para imaginar que um pouco de aventura, em outros tempos e lugares, iria fazer muito bem aos dois. Seria ótimo conhecer os confins do universo e esquecer, por algum tempo pelo menos, que vocês são caçadores, não acham? Retirar esse peso dos ombros por ora, hum?
Demoro apenas alguns segundos para assimilar suas palavras. Elas me atingem de um jeito diferente, íntimo e pessoal. De repente, coloco a mão na consciência e percebo algo elementar. Olho de soslaio para Sam, que me encara de volta de um jeito cúmplice.
Foi uma experiência e tanto trabalhar com o Doutor, claro. Nunca vou me esquecer do perigo monstruoso que corremos e, ainda assim, vou guardar com carinho o espírito de aventura e companheirismo que vivemos em Lawrence. Foi alucinante e importante para mim. Sei que para Sam também foi. Tenho certeza que o Doutor nos mudou de alguma forma. Para melhor.
Mas, o nosso lugar é no bunker e na estrada, caçando coisas e salvando pessoas. Sim, o famoso negócio da família. Viajar à bordo de uma cabine azul, pelo mundo, pelas estrelas e pelo tempo, como se não houvesse amanhã, não é o nosso lugar.
Pesando tudo isso, torno a olhar para o Senhor do Tempo e finalmente dou o meu parecer:
— É tentador e nós agradecemos o convite, Doutor, mas esse tal peso que você falou, que de fato carregamos... — Faço um gesto circular, indicando a mim e Sam, e arremato: — define quem nós somos. E não dá para fugir disso, entende? De quem somos?
O Doutor fica em silêncio. Juro que vejo uma nuance de resignação e outra de tristeza em seu olhar perdido. É como se ele entendesse exatamente do que estou falando, como se a carapuça tivesse servido. Talvez ele se identifique no final das contas. Porém, ao contrário de mim e Sam, parece que o Doutor está disposto a fugir de uma parte de si. É isso, ele é o homem que continua correndo. Para qualquer lugar e por motivos que envolvem o fim do seu planeta natal e o fato de ser o último de sua espécie.
— Acho que sim — ele murmura, ainda introspectivo.
O Doutor precisa disso, de companhia, de alguém que mantenha seus pés no chão e sua cabeça no lugar certo. Ele precisa de ajuda para saber qual dos dois corações ouvir em determinada situação. Precisa de alguém que o enfrente quando ele estiver errado e prestes a seguir seus protocolos à risca, por acreditar que é o seu papel segui-los. Precisa de alguém que lhe mostre, constantemente, que nem tudo é preto e branco. Há muitas nuances de cinza envolvidas em qualquer história. Acredito que, às vezes, o Doutor tem dificuldade em enxergar isso.
— Mas, ainda assim, eu preciso esclarecer — ele anuncia, recomeçando. Então, afasta a expressão pesada de antes e sorri com o olhar ao nos incitar mais uma vez: — Nós podemos viajar por um ano inteiro, ou mais. E, no fim, eu posso deixá-los exatamente neste dia, neste horário e neste mesmo canal. Num piscar de olhos, vocês estarão de volta ao bunker e poderão retomar suas vidas. Será como se o tempo tivesse congelado para vocês, acreditem.
— Eu acredito, Doutor. Nós acreditamos — é Sam quem diz, traduzindo meus pensamentos também. — Seria ótimo sair numas férias? Com certeza, seria. Dean e eu até tentamos de vez em quando, mas nunca conseguimos relaxar de verdade. Acho que nós precisamos disso, entende? Caçar e salvar pessoas, bem aqui, no nosso tempo e no nosso mundo. Assim como você precisa viajar e viver suas aventuras pelo universo ao lado de alguém. De alguém que, infelizmente, não pode ser nós. — Sam hesita, mas por fim toma coragem e conclui: — Você devia procurar por Rose.
O Doutor ergue um pouco o queixo, como se tivesse sido pego de surpresa, tomado um susto, sido atingido por um soco no estômago, algo assim. Visivelmente pesaroso, ele esclarece:
— Eu não posso. Não posso alcançar a minha Rose Tyler onde ela está.
— Tem certeza? — desafio. — Tem certeza que ela está mesmo perdida? Para sempre?
— A porta está fechada. Trancada, na verdade. Selada — o viajante do tempo responde de forma emblemática e metafórica.
— Então bata na porta — aconselho, inconformado que realmente não exista um jeito do Doutor reverter a situação de sua antiga companion e dele mesmo. — Chute, esmurre, coloque a porta abaixo se for preciso. Mas nunca desista de alguém que realmente importa para você.
Sem perceber, olho de soslaio para Sam mais uma vez. Tenho certeza que ele entendeu que estou falando por experiência própria. Torno a me concentrar no Doutor. Um leve e triste sorriso surge em seu rosto.
Soando agradecido, porém resignado, ele reforça:
— Eu gostaria que fosse simples assim, Deanno, mas não é. Voltar algumas horas e salvar Sam de um desfecho trágico foi difícil e arriscado; atravessar o vórtice do tempo, alcançar um, dentre milhares de universos paralelos que existem, e alcançar Rose é impossível. Mesmo para mim, mesmo com todas as possibilidades que já passaram pela minha cabeça. Acredite, eu já tentei. Tudo o que consegui foi enviar uma mensagem inacabada. Eu nunca consegui dizer a ela como realmente me sinto...
Fico em silêncio, assim como Sam. De repente, parece que qualquer coisa que se diga é inútil. O caso de Rose Tyler parece ser mesmo complicado. Num nível que minha vã sabedoria não consegue supor. Como não sei como ajudar o Doutor, falo a única coisa que me vem à cabeça:
— Então dê tempo ao tempo. Deixe o tempo fazer o seu trabalho uma vez.
Um segundo depois, Sam, igualmente impressionado pela tragédia vivida pelo alienígena, emenda:
— Eu sei que ninguém é substituível, mas mantenha os olhos abertos, Doutor. Aposto que alguém vai cruzar o seu caminho mais cedo ou mais tarde. Você não vai ficar sozinho para sempre. Eu tenho certeza que existem muitas pessoas lá fora que dariam tudo para estar no nosso lugar, recebendo esse convite e querendo nos bater por recusá-lo. Você só precisa ficar atento quando essa pessoa sensata e aventureira aparecer.
Confesso que acho as palavras de Sam bem bonitas e, de certa forma, soam como uma previsão. Mesmo assim, não consigo perder a mania de provocá-lo. Por isso, acabo fazendo piada para descontrair o ambiente e deixá-lo constrangido ao mesmo tempo:
— Sammy está certo. Além disso, ele seria uma péssima companhia, Doutor. Iria espalhar cabelos por toda a parte e demora demais no banho.
Dito e feito. Meu irmão trinca o maxilar, visivelmente irritado, e retruca:
— Dean só ouve música cantando junto, o que, por vezes, é bem incômodo. Ronca, é espaçoso e bagunceiro. Nem vou falar sobre a fome incontrolável.
— Ei! — protesto, porém a verdade é que não tenho como argumentar contra isso. Só ouvi verdades.
Fico feliz porque, pelo menos, arrancamos um sorriso do Doutor com nossas alfinetadas mútuas. Ele parece mais relaxado, conformado e, de certa forma, esperançoso em relação ao futuro. Parece que está convencido de que logo, logo, terá companhia na TARDIS.
Encerrando o assunto, reforço algo que Sammy disse há alguns minutos:
— Nos leve para casa, Doutor.
De pronto, o alienígena arregala o olhos, sorri largamente, puxa uma alavanca no painel de navegação e assente:
— Allons-y!
Preciso dizer que esqueci de me segurar de novo? Que Sam também não teve tempo para isso? Que quase vamos ao chão quando a nave treme com um sacolejo violento? Pois é.
Do melhor jeito que consigo, retomo o equilíbrio e ajudo meu irmão também. O ruído das engrenagens e do rotor temporal se espalham por toda a parte. As luzes oscilam. A TARDIS é um organismo vivo e vibrante.
O Doutor corre de um lado para o outro, puxando outras alavancas, girando botões, apertando outros pelo console. Seu sobretudo balança o tempo inteiro. Ele está feliz e otimista. Acho que, de certa forma, também o mudamos. Ou, pelo menos, lhe devolvemos certa esperança.
***
A TARDIS se estabiliza e todo o barulho que indicava seu movimento frenético pelo vórtice do tempo e espaço cessa abruptamente. Olho para o Doutor, e ele assente com um discreto meneio de cabeça, respondendo minha pergunta silenciosa. Chegamos.
Sou o primeiro a alcançar a porta. Ao abri-la, a imagem da garagem do bunker, com todas as preciosidades reluzindo sobre quatro rodas, invade minhas retinas. Em meio a dezenas de carros antigos e estilosos, no entanto, apenas um arrebata meu coração.
— Baby...
Salto da TARDIS e caminho até meu amado e insubstituível Impala Chevy 67. Faço um carinho no capô e sussurro apaixonado:
— Eu também senti sua falta, Baby.
Em algum lugar atrás de mim, Sam solta um muxoxo e debocha:
— Por favor, procurem um quarto.
Decido que é melhor matar a saudade em outro momento e sigo na direção do corredor que me levará à cozinha. Esse lance de viagem no tempo me deixou cheio de fome.
Sei que Sam está bem atrás de mim porque sinto a vibração dos seus passos, entretanto, noto a ausência de outros passos. Intrigado, giro nos calcanhares e procuro pelo Doutor. Encontro-o parado, na soleira de sua cabine de polícia, com um olhar indecifrável e um sorriso resignado no rosto.
Sam para de andar também e agora somos os dois olhando para o viajante do tempo.
Imagino o que ele está matutando em sua cabeça secular. Sei que o momento está chegando. A despedida. Mas uma parte de mim diz ainda não.
É ouvindo esse desejo, que adio o momento ao oferecer:
— Ei, Doutor... A sua primeira estadia aqui foi um pouco traumática. Nós fomos rudes e mal-educados ao te prender na masmorra e te deixar a pão e água benta. O que me diz de uma boa cerveja e X-Bacon para consertar a má impressão que causamos no início?
Quando o sorriso resignado do Senhor do Tempo ganha um tom mais vivo, Sam toma a palavra:
— Deixe-me adivinhar... Allons-y?
O Doutor não tem tempo de confirmar já que, de repente, um farfalhar de asas muito familiar para mim e Sam se propaga pela garagem e interrompe a conversa.
Aturdido, olho tudo em volta à procura do único ser capaz de causar esse efeito aqui. Fico surpreso e um pouco constrangido quando um par de expressivos e questionadores olhos azuis se fixam aos meus.
Meu pulso acelera.
Convenço-me de que é apenas uma reação natural ao susto que levei com a aparição relâmpago do Cass e não, necessariamente, por causa dele.
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