Will
Depois daquela noite, acho que nunca me senti tão confuso em toda minha vida.
— Ei, Bill... — o chamei assim que a Mabel saiu para levar a Pacífica até sua casa.
— O que foi? — respondeu-me, enquanto bebia uma xícara de café quente depois de praticamente passar uma noite em claro.
Mesmo depois das meninas dormirem, continuamos acordados e fomos para o laboratório do Stanford. Aproveitamos que ele não estava e o sistema de segurança era ridiculamente barato para pegarmos uma coisinha.
— Você estava falando a verdade ontem...? — perguntei e ele suspirou, enquanto se sentava sobre a mesa da cozinha.
— O que você acha? — perguntou mexendo o café e me olhando com um sorriso ladino.
Eu odeio quando ele sorri assim. Infelizmente, decorei os significados de todos os seus sorrisos e esse é um dos muitos que ele faz questão de forçar.
Ele diz que força porque já virou um costume, mas eu sei que ele só quer convencer a si mesmo de que está tudo bem.
— Sinceramente? Não sei... — disse me sentando numa cadeira. — Bill, você realmente estava falando sério ontem?
— Acho que sim... Nunca senti essas coisas.
Correção: você nunca se permitiu sentir essas coisas.
— Bem... Você sabe que isso só vai complicar as coisas, certo? — me arrisquei no assunto e ele pendeu a cabeça um pouco para o lado.
— Will, vá logo ao ponto, você enrola de mais...
— D-desculpa, é que... Eu não esperava por isso e você foi tão... Espontâneo com sua decisão... — disse me embolando um pouco nas palavras, mas quando notei seu silêncio repentino, prossegui com mais firmeza. — O que eu quero dizer é que... Se tudo der certo, você acha que conseguirá lidar com os resultados disso?
— Certo, já entendi o que você quer dizer. Eu não sei, mas temo que sim, afinal, uma hora ele vai descobrir, só não sei se vai acreditar em mim...
— Ele confia em você, isso já é alguma coisa...
Bill suspirou.
— Acho melhor pararmos de falar sobre isso, daqui a pouco ele acorda e nós sabemos que as paredes têm ouvidos. — disse descendo da mesa e pondo a xícara suja dentro da pia.
— Okay... Só... Só não faça bobagem, por favor... — ele bagunçou meus cabelos.
— Relaxe, eu vou dar um jeito em tudo. Quando você menos esperar, as coisas já estarão resolvidas! Até lá, não desista do plano. — disse e eu forcei um sorriso fraco, antes dele sair.
Eu não sei se quero continuar fazendo parte disso... Eu me apeguei a essas pessoas, não conseguiria vê-las mortas...
Fora que eu nunca gostei de matança, já me consideraram fraco por isso, mas eu não tenho coragem de fazer isso... O Bill também não tinha, nem sempre ele foi assim.
Por algum motivo, espero que o Dipper consiga fazer o Bill mudar de ideia, pois eu não tenho como fazer isso, mas se ele realmente estiver apaixonado, talvez desista.
Dipper
Não esperava voltar aqui tão cedo, mas, bem, cá estou eu, novamente, entre aqueles dois mundos.
Estou começando a achar que isso é algum tipo de passagem interdimensional. Entretanto, por algum motivo, não consigo mais ir para o lado escuro, estou preso nas águas negras e observando as muitas cores do "céu".
Olhando bem, parecem até mesmo algum tipo de água, a julgar pela forma como algumas ondulações eram formadas... Era como observar a superfície de uma bolha de sabão, ou uma poça de gasolina no chão.
Aqui sempre é tão calmo, talvez eu esteja sonhando acordado.
Ou não, as sensações e sentimentos me parecem reais, mas nada acontece, é como se o lugar estivesse parado no tempo.
Acho que se eu tentar alguma coisa... Talvez, tocar lá em cima...
Como era de se esperar, antes que eu pudesse fazer algo, acordo no que agora chamarei de "outro mundo". Ou seja, a infeliz realidade.
Me sentei na cama e fiquei olhando para algum ponto aleatório do quarto, onde não estou realmente prestando atenção, apenas observando.
Mais um dia começou, que maravilha... Talvez, se eu fosse algum otimista sortudo, esse seria mais um dia de minha "adorável vidinha", mas, não, hoje é realmente só mais um dia qualquer que eu não estou com vontade e nem paciência para fazer nada.
Enfim, que comece a desgraça diária.
Bill
Depois de tomar meu café, acho que estou pronto para pôr a primeira fase do plano em prática.
Confesso que o plano da Mabel era besta, mas não deixava de ser um bom plano.
Ele foi dividido em três fases: Primeira, Segunda e Terceira.
Na Primeira fase, eu teria que me aproximar o máximo possível do Dipper. Segundo a garota, isso era essencial para a Segunda e Terceira fase funcionarem.
Não sei bem o sentido em que ela falou isso, mas acho que foi no de "aproximação sentimental", afinal, eu estaria bem próximo dele também se eu, simplesmente, fundisse nossos corpos, mas, convenhamos, isso seria totalmente desagradável.
De qualquer forma, o plano dela era o seguinte: se hoje é sexta-feira e a amiga da Pacífica vai dar a festa no sábado à noite, eu tenho, basicamente, um dia e meio para poder me aproximar mais ainda dele ou tentar descobrir o que ele sente. A Segunda e Terceira Fase do plano serão executadas durante a festa. Ela não me deu muitos detalhes, mas disse que a Segunda Fase é convencê-lo de ir voluntariamente para a festa e a Terceira era para deixar com ela.
Honestamente, não faço a mínima ideia do que fazer, mas estou amando a sensação da ansiedade me consumindo aos poucos e me deixando com vontade de acelerar o tempo!
Se essa forma não fosse tão limitada e não consumisse tanta energia, eu seria capaz de acelerar o tempo.
De qualquer modo, agora terei a difícil e bela missão de conquistá-lo, mas não vejo isso como algo ruim, gosto de acreditar que, talvez, ele seja capaz de gostar de alguém como eu.
Mas, no fundo, eu sei que é só mais uma mentira bem contada.
É, eu vivo assim, uma hora estou bem, cheio de esperanças, mas ao mesmo tempo me sinto vazio e com vontade de acabar com tudo.
Sinto como se estivesse mergulhado dentro de uma escuridão sem fim que eu mesmo escolhi entrar. Mesmo não tendo escolha.
Eu me seguro muito para não surtar. Eu me forço muito para fingir ser alguém sorridente quando, na verdade, eu poderia passar um dia inteiro chorando, enquanto queimo e me desintegro junto às minhas mágoas. Eu me sinto muito mal para poder ser capaz de amar alguém.
Desde aquele maldito dia, meu coração se destruiu e minha mente se dividiu.
Não sei se caso eu perca o controle, dessa vez, eu consiga proteger alguém ou me salvar de mim mesmo, essa é, realmente, a última chance, para mim e para todos.
Eu gosto do Dipper.
Com ele, eu não sinto como se pudesse ser capaz de matar alguém, é como se eu tivesse criado uma outra personalidade só para poder ficar perto dele. Só para poder me sentir bem perto de alguém bom como ele.
Ao mesmo tempo que eu quero, eu não consigo me soltar de minhas inseguranças. Não sei se conseguiria amá-lo para depois matá-lo. Não conseguirei conviver com essa dor.
Eu poderia desistir de tudo para ficar com ele, mas tudo é muita coisa e ele vai me odiar assim que descobrir a verdade.
A verdade é que eu não passo de um demônio sujo.
A verdade é que eu não passo de um assassino.
A verdade é que eu não presto.
Não presto para mim.
Não presto para meu irmão.
Não presto para ele.
Não presto para ninguém.
Eu sou um demônio. E demônios não são maus por natureza, mas eu me tornei assim por ter amado demais e não ter sido capaz de lidar com as consequências desse amor.
Eu tenho medo de mim mesmo, mas se o Dipper confia em mim, eu consigo suportar isso por mais algum tempo.
Se ele confia em mim, eu também consigo.
Tentarei fazer tudo dar certo agora para que, quando chegarmos ao fim, nada tenha sido em vão.
Sendo assim, tentarei dar o meu melhor hoje e convencê-lo amanhã de ir àquela maldita festa comigo.
Dipper
Depois de muita relutância, me levantei da cama e fui cuidar de mim, fazendo tudo o que um garoto de quase 18 anos de idade faz.
Com exceção de fazer a barba. Até hoje, nenhum pelinho sequer surgiu, o que eu não sei se me faz ficar feliz por ter uma tarefa a menos ou me sentindo como uma criança.
De qualquer forma, eu estou com fome e é isso que importa.
Peguei meu livro da J. K. Rowling e desci para tomar café. Se eu tiver sorte, não vou encontrar ninguém para me encher o saco e apenas irei ler e comer em paz.
Porém, paz é realmente uma das últimas coisas que se tem por aqui e eu deveria ter mantido isto em mente, pois bastou que eu terminasse de tomar meu café para ser abordado por Bill me perturbando.
— Vai fazer alguma coisa hoje? — perguntou me seguindo até o sofá e eu revirei os olhos, enquanto me sentava.
— Vou. — disse abrindo o livro e começando a ler.
Ele se sentou ao meu lado com as pernas cruzadas e ficou me olhando, como se esperasse que alguma coisa grandiosa acontecesse.
O que foi?
— Nada, só estava te vendo fazer "alguma coisa".
Por alguma razão, mal contive o rubor em minhas bochechas.
Idiota...
— Nossa, eu nem falei nada!
— Não estava falando de você dessa vez. — disse virando a próxima página.
— Quem está roubando meu cargo de "idiota" em seus pensamentos então? — perguntou me fazendo rir fraco.
— E isso importa?
— Claro que importa, só eu que tive a honra de ser xingado a cada três segundos em sua mente até agora!
— Sei... — virei mais uma página.
— O que você está lendo? — perguntou, agora se inclinando para ver a capa do livro.
— Harry Potter, algo contra?
— Não, nem faço a mínima ideia do que seja. — disse em tom simples e eu o olhei abismado.
— Como assim? Nunca ouviu falar, nunca assistiu os filmes ou nunca leu os livros?
— Tudo isso junto. — disse e eu fechei o livro e peguei o controle da TV. — O que você vai fazer?
— Melhorar esse seu conhecimento cultural. — disse conectando a TV um pouco analógica ao meu celular e pondo na Flixnet (um aplicativo onde eu encontro absolutamente qualquer filme de graça e com boa resolução de imagem).
— Que...? Espera, você quer me fazer assistir o filme?
— Claro que não. — disse procurando os filmes e adicionando todos à minha lista, enquanto ele lê as sinopses. — Eu vou fazer você assistir todos os filmes.
— Espera, filmes?!
— Sim, são oito no total, se começarmos agora ainda dá tempo de terminar tudo hoje. — disse sorrindo e ele se levantou. — Onde você vai?
— Bem, se você acha que eu vou passar um dia inteiro sentado nesse sofá com você, assistindo um garoto de 11 anos ficar fazendo magia com um pedaço de graveto e sem comida, você está muito enganado.
— Já vou logo avisando que não vou fazer pipoca. — disse me ajeitando no sofá e arrumando a ordem dos filmes.
— Tudo bem, ainda sobrou pizza de ontem e tem sorvete no congelador.
— Desculpa, mas depois de ontem eu não quero tão cedo ver sorvete na minha frente.
— Nem se for de tapioca?
— Principalmente esse, você conseguiu fazer entrar no meu nariz!
— Okay, então esquecemos o sorvete e eu faço a pipoca.
E você sabe fazer pipoca?
— Você me julga muito mal, Pinetree, não é como se eu não soubesse fazer uma pipoca! — disse saindo da sala e indo para a cozinha.
Confesso que duvido sim das capacidades culinárias dele, mas de que importa? Pelo menos eu vou assistir esses filmes maravilhosos novamente, por mais que seja na companhia dele.
Mabel
Eu acordei cedo para levar a Pacífica de volta até sua casa, mas, como eu quero ajudar o Bill, não pretendia voltar tão cedo e eu só deixei o Will lá em casa por conta do meu tivô Stan, que não poderia deixá-lo sair novamente sem a autorização do tivô Ford.
Pacífica não pode trazer amigos para casa, nem eu sou exceção, e esse é só um dos muitos castigos que recebeu de seus pais há cinco anos atrás por ter permitido que a "ralé" participasse de uma grande festa que eu nem me lembro mais em sua antiga mansão, e apesar dos anos, esses castigos até hoje são aplicados.
Não é como se seus pais se importassem de fato com tudo o que acontece com ela, mas eles querem sentir que ainda tinham algum poder sobre suas ações através desses castigos. Mas a Paci simplesmente não dá bola, ela obedece, mas também faz de tudo para ser independente e se livrar deles.
Eu estava a apoiando e colocando para cima durante todos esses anos, mas acho que atualmente ela está mais firme em relação a suas decisões do que nunca, isso é tão bom!
— Hey, Mabel, eu vou ter que ir para o trabalho agora, tem certeza de que não quer ficar em minha casa? Meus pais não vão ligar, na verdade, nem vão notar sua existência se você ficar no meu quarto, eles estão ocupados demais pensando na viagem que farão no domingo. — disse enquanto abria o portão da mansão que seus pais compraram após conseguirem reestabelecer a fortuna perdida com a empresa que compraram em Los Angeles.
— Não, Paci, é melhor evitar conflitos e eu não tenho como passar um dia inteiro dentro do seu quarto, me escondendo de seus pais. — disse rindo e ela sorriu fraco.
— Você tem certeza? Não seria a primeira vez e hoje eu chego mais cedo do trabalho, então você só passaria a manhã no meu quarto.
— Está bem, mas e se eles me acharem? Você vai ficar de castigo e a culpa vai ser minha! — disse e ela abriu o portão da mansão.
— Bem, se te acharem, vai dar merda, mas a culpa não será sua e, por favor, vamos parar com o pessimismo, não vai acontecer nada! — disse já me puxando pelo braço para dentro de sua casa.
— Mas... — perdi os argumentos e a deixei me guiar pelo casarão até seu quarto.
Chegando lá, me sentei em sua cama e ela se despediu.
— Tchau, Paci... — disse acenando e ela saiu do quarto.
Caramba, o que é que eu vou fazer aqui, sozinha, durante uma manhã inteira?!
Bill
— Tenho quase certeza de que não é assim que se estoura uma pipoca... — disse Will, apoiado no balcão enquanto me olhava feito um gato e eu respirei fundo.
— Will, se está estourando, então está certo.
— Mas ele não vai estranhar por ela estar azul?
— Claro que não e isso não é nada, eu posso dizer que é só um tempero, que mal pode fazer?
— Não sei... Nunca comi pipoca estourada pelas chamas demoníacas que saem de minhas mãos para saber. — disse e eu cessei o fogo em minha mão.
Eu havia despejado uma certa quantidade de milho em uma panela e, como não sei ligar o fogão, estava usando minhas próprias chamas para estourar o milho, mas a pipoca começou a sair azulada, quase que no mesmo tom que o azul de minha essência.
— Ei, Will...
— Hm?
— Sua chama é amarela... — disse sorrindo.
— É...
— Bem que você podia, sei lá, estourar isso aqui e deixar a pipoca amarelinha... — eu esperava que ele concordasse, mas tudo o que ele fez foi se levantar e ir até o fogão, ligando uma das bocas. — Como...?
— É elétrico, Bill, é só girar e apertar esse botão. — disse enquanto apontava para o botão.
— É por isso que eu te amo! — exclamei enquanto colocava a panela sobre o fogo e esperava o resto do milho estourar.
— Sei... — disse ele, se sentando no balcão novamente e pegando um pirulito.
Durante todos esses dias, o que o Will mais fez foi comer doces, não me surpreenderia em nada caso ele ficasse diabético.
— O que você vai fazer hoje? — perguntei e ele tirou o doce da boca.
— Não sei... Talvez eu vá dar uma olhadinha nas coisas estranhas que aquele velho e o cara grande vendem lá na frente...
— Uh, sério mesmo? É cada história que eles inventam que às vezes eu me questiono se estou na dimensão certa. — ele riu soprado.
— Verdade... Mas e você? O que pretende fazer com seu amado "Pinetree"? — perguntou em tom divertido e eu ri. Não demorei muito para notar que ele ficava mais extrovertido quando ingeria açúcar.
— Acho que vou ter que passar o dia inteiro assistindo Harry Potter com ele...
— Você não já assistiu esses filmes umas... Hm, sei lá quantas vezes?
— Sim, mas ele não precisa saber disso. — e dei uma piscadela.
— Ah, então vou ficar na loja para não atrapalhar seu Wingardium "LeviosÁ".
— Cala a boca, ô Ronald Weasley. Você sabe que é "LeviÔsa". — disse enquanto desligava o fogão e colocava a pipoca dentro de uma vasilha.
— Okay, okay. Então, já vou indo, mas cuidado com os narguilés! — disse sorrindo e saindo da cozinha.
Ótimo, agora eu vou comer pipoca azul e amarela (desta vez, por conta da manteiga) enquanto assisto a oito filmes seguidos junto com o Dipper. Esse dia realmente não pode melhorar!
Stanford
Eu acabei de voltar de minha inspeção na floresta e tudo o que encontrei de sobrenatural foram mais criaturas mortas sem nenhum motivo aparente. Esse dia realmente não pode piorar!
Mas vai.
Peguei o corpo de um Pato-Estômago que encontrei próximo ao lago, morto junto com seu bando, e o cadáver de um Leprecórnio. Os levei até meu laboratório subterrâneo para estudar suas mortes.
Não vou mentir dizendo que estou triste pela morte do Leprecórnio, essa espécie é realmente decepcionante pelo fato de que seu chifre só toca "Danny Boy" sem parar e as moedas de ouro que caem de sua barba são de plástico, mas, bom, apesar disso, estou curioso quanto a seu paradeiro.
Já o Pato-Estômago, ele está apresentando uma morte comum, mas não faz sentido ele ter morrido de doença ou velhice se seu bando inteiro também morreu dessa forma.
Ao chegar em minha pequena sala, deitei seus corpos sobre uma mesa e comecei a procurar vestígios de alguma anomalia, até que abri a boca do Pato-Estômago e vi que seu intestino estava completamente ressecado, o que não fazia o menor sentido, afinal, parecia até que ele morreu de desidratação, suas penas estavam crespas e fediam da mesma forma que os gnomos mortos que encontrei na noite em que fui procurar o Dipper na floresta.
Isso tudo é muito estranho e só se complica cada vez mais, mas, de alguma forma, sinto que estou cada vez mais perto de encontrar as respostas.
Talvez, se eu fizer testes comparando o sangue restante dessa criatura com o de alguma outra viva de sua espécie, eu possa obter algum resultado...
Assim, com o pensamento em mente, dividi minhas pesquisas em duas mesas, uma com as amostras daquele demônio irritante e a outra com os corpos das criaturas.
Separei em duas mesas por questão de organização, é claro, pois tenho quase certeza de que as pesquisas se completam.
Peguei minha bolsa com recipientes e todas as coisas que precisarei para investigar essa maldita floresta e saí para coletar os sangues, aproveitando a luz do dia para ver se com o auxílio da luz eu descubro algum tipo de padrão nas mortes.
Se é que existe algum padrão, afinal, eu não duvido mais de nada.
Mabel
— Ah, como ela consegue andar com essa coisa?! — indaguei, enquanto tentava caminhar sem perder o equilíbrio com um par de saltos que encontrei no quarto da Paci.
Ela não se importará caso eu mexa em suas coisas, afinal, a bagunça que ela fez no meu quarto na única vez em que me visitou durante as férias depois de ter implorado a seus pais para vir também não foi nada generosa.
Nós nos visitamos apenas duas vezes durante esses cinco anos, pois meus pais não me deixavam voltar para Gravity Falls pelo simples motivo de achar meus tivôs loucos e, mesmo sabendo que eles não estariam lá pela viagem, não confiavam no Soos, e os pais dela não iam muito com a minha cara depois de tudo o que aconteceu. Resumindo: não podíamos nos encontrar, mas as únicas vezes em que conseguimos foi quando (1) a Paci pediu a permissão deles para vir até minha casa como presente de Natal e passou uma semana lá e (2) quando nos encontramos por acaso numa estação de metrô no dia em que ela foi visitar seus pais no trabalho em Los Angeles e eu estava por lá de passagem com o Dipper.
Bem, visto a quantidade de tecido, acho que não tem problema eu mexer em algumas das suas roupas, é incrível a quantidade de vestidos que ela tem dentro do closet, considerando o fato de que não usaria nem metade delas em toda sua vida.
Sem pensar duas vezes, peguei um vestido azul-turquesa e me vesti.
Nossa, agora eu estou me sentindo totalmente diferente! Ele é um vestido bem elegante, mas poderia ser mais brilhoso. Ele é longo e o salto que estou usando o encurta um pouco, o deixando na altura do meu calcanhar, mas não deixa de ser lindo. Isso sem falar no decote não-exagerado e a abertura na lateral de minha perna esquerda que se estende até a metade de minha coxa.
Me pergunto se ela já o usou alguma vez...
Eu poderia ficar me admirando por mais alguns minutos no espelho que havia dentro do closet, se não houvesse escutado o barulho da porta do quarto se abrindo, me obrigando a saltar e me esconder por entre as roupas.
Era uma das senhoras que trabalhavam na casa, que os pais da Paci chamam, grosseiramente, de "criadas". Vendo a bagunça que fiz, a senhora entrou no closet e, em silêncio, apenas a observei por entre os vestidos, enquanto a mesma pegava minhas roupas do chão e as levava numa pilha para fora do quarto.
Bom, e lá se foi minha saia e meu suéter, agora eu vou ter ficar vestida assim — que não é uma má ideia, meu suéter é meio quente e esse vestido é muito confortável.
Mas, falando sério, essa foi por pouco! Se essa senhora me encontrasse, com certeza iria contar ao senhor e senhora Northwest, o que não seria nada bom, tanto para mim — que seria despachada como um cachorro pulguento—, quanto para a Pacífica.
Ah, Paci, espero que você chegue logo, eu não posso nem fugir daqui!
Will
Enquanto o Bill estava na sala tagarelando sobre o filme junto com o Dipper, eu apenas fui para a entrada da cabana e observei algumas das atrações turísticas.
— Ei, garoto! Está interessado em alguma coisa? — perguntou o cara grande que, pelo o que o Bill me explicou, seria o "proprietário" do símbolo de interrogação.
— Não, só estou olhando mesmo... — disse e ele me olhou sem jeito.
— Você está fazendo isso errado, Soos, tem que chegar nele e oferecer uma oferta! — disse o chamado "Stanley" ao seu lado.
— Desculpa, sr. Pines, eu não acredito que fiz isso errado durante esses anos todos... — disse o agora chamado "Soos", um pouco cabisbaixo.
— Não peça desculpas, meu caro, isso requer mais que cinco anos de prática, eu mesmo levei uma vida inteira para pegar o jeito da coisa! De qualquer forma, está entrando mais clientes aqui, volte ao trabalho! — exclamou o velho e assim o Soos fez.
Eu fiquei em silêncio, apenas observando o Soos fazer seu trabalho sorridente, enquanto Stanley o admirava, assistindo de longe.
— E você, rapaz? — perguntou o velho, se voltando para mim, e eu o olhei confuso. — É bom em contar mentiras ou inventar histórias?
— Eu? Bem... Não... — ele me olhou com um olhar questionador, como se estivesse duvidando de minha palavra e esperasse que eu dissesse algo mais convincente.
Mas o que eu poderia fazer? Era a verdade, eu não mentia tão bem comparado ao Bill ou ao próprio velho Pines à minha frente. Na verdade, eu não menti em momento algum até agora, apenas não dei muitos detalhes sobre nada e não respondi algumas coisas que o Stanford me perguntou.
— O que você sabe fazer? — perguntou Stanley, ainda insistindo na conversa.
— Eu não sei... Acho que não sou bom em muita coisa...
— Bobagem, deixe disso! Você é um demônio, não sabe nem fazer mágica? Nenhum truque barato? Nada? — perguntou e eu parei pensativo.
Pensando bem, até que eu fui obrigado a aprender a fazer mágica pelos... Enfim, não vale a pena pensar neles agora, já sou atormentado por essas lembranças todas as vezes que fecho os olhos e tento dormir.
Eu entendo de mágica. É isto.
— Eu sei alguns truques... — disse mexendo inquieto no bracelete em meu pulso, que ainda me lembrava muito uma algema, e Stanley me puxou para um canto.
— Excelente! Se quiser ficar aqui, vai ter que trabalhar, então você vai distrair as pessoas, enquanto eu pego o dinheiro! — disse e eu o olhei torto.
Ele iria roubar os clientes?
— Você...
— É brincadeira! — disse rindo e eu suspirei, aliviado. — Bem, mais ou menos, mas você vai se apresentar daqui a cinco minutos, portanto, troque logo essas roupas comuns e me encontre no fundo da cabana!
Meu Deus, o quê?!
Sem saber o que fazer e com medo de negar, apenas balancei a cabeça e fui para o banheiro.
Que dia... Não acredito que vou ter que fazer isso de novo, isso... Isso não é legal.
Certo, Will, chega de queixa, você consegue! Você já conseguiu entrar dentro de uma caixa e sair vivo mesmo depois de quase ser furado cinquenta vezes por espadas, então não vai ser um showzinho que vai te matar!
Sendo assim, respirei fundo para me acalmar e fiz minhas roupas "normais" aparecerem a minha frente num estalar de dedos.
Nunca esperei usar isso novamente, mas eu me sinto mais a vontade me apresentando com isso. Velhos costumes que nunca mudarão.
Vesti minhas calças pretas, juntamente com uma camisa social branca e meu colete azul abotoado por cima. Formal? Sim. Mas não consigo me sentir preparado para isso sem essas roupas.
Foram um presente e eu me acostumei com elas.
Depois, me olhei no espelho e me senti relutante, mas logo arrumei minha gravata borboleta na gola da camisa e, por fim, pus minha boa e velha cartola sobre a cabeça.
Incrédulo com a coragem que tive para isso, saí do banheiro e fui para os fundos da cabana, onde encontrei Stanley sobre um palco de madeira, com algumas pessoas sentadas nas bancadas à frente.
— E agora, com vocês, o mágico do olho bonito, Will Cipher! — disse dando uma piscadela para mim e eu subi no palco.
Isso é tão nostálgico, que chego a sentir náuseas.
Posso não ter lembranças boas com multidões, ou sequer algum prazer em me apresentar, porém, posso garantir de que, dessa vez, as coisas serão diferentes.
Mabel
Depois de algumas horas dentro desse maldito closet, trocando um milhão de vezes de roupa, finalmente escutei a porta do quarto ser aberta e Pacífica entrar, chamando meu nome.
— Mabel? Cadê você? — me chamou e eu saí de dentro do closet, usando um vestido roxo, uma echarpe brilhante e uma bota preta com salto baixo.
— Uh, ralé, saiba que agora eu me chamo Pacífica Northwest, tenho 18 anos e uma melhor amiga linda e perfeita. — disse solenemente, pondo a mão na cintura e ela riu.
— Okay, eu não sou assim! — disse, pondo algumas sacolas no chão.
— Não sei do que você está falando, a propósito, curve-se perante meus pés antes de dirigir a palavra a mim! — disse empinando o nariz e ela tirou a echarpe de meus braços.
— Primeiro, você está usando a echarpe ao contrário e, segundo, eu nunca usaria um vestido médio com uma bota de cano alto e salto baixo.
Soltei um grunhido e me sentei na cama.
— Ah, fala sério! Não posso nem mais brincar! — exclamei sorrindo e ela passou a echarpe em volta do pescoço.
— Eu não tenho culpa se para me interpretar é preciso ter estilo.
— Nem um pouco convencida... — ela riu.
— Não posso mais ser sincera?
— Eu não estava reclamando. — disse sorrindo e ela prendeu o cabelo em um coque no topo da cabeça.
— Bem, já que é assim, eu não sei o que fazer agora, tem alguma coisa que você queira fazer? A propósito... Onde estão suas roupas?
— Ehr... Meio que uma moça veio aqui e levou... — disse sorrindo fraco e desviando o olhar.
— Espera, como assim ela levou suas roupas?!
— Meio que eu inventei de experimentar um vestido e... Você sabe, ela entrou e eu tive que me esconder, aí minhas roupas estavam no chão e ela levou sabe-se lá para onde.
— Só você mesmo para uma coisa dessas acontecer... — disse rindo. — Mas, enfim, o que queres fazer?
— Eu não sei... Jogar alguma coisa?
— Quais jogos você gosta?
— Ah, eu sou boa em todos, pode escolher qualquer um. — disse sorrindo e ela abriu um armário ao lado da cama.
— Depois eu que sou a convencida... — disse enquanto procurava por algo.
— Não posso mais ser sincera? — repeti suas palavras e ele riu, enquanto voltava para a cama com um tabuleiro.
— Eu nunca joguei esse jogo... — disse enquanto colocava a caixa de Banco Imobiliário em cima da cama.
— É sério?!
— É... Na verdade, eu nunca joguei jogo nenhum de verdade, ninguém nunca quis jogar comigo e sempre que eu jogava me deixavam ganhar, era irritante. — disse se sentando sobre os lençóis e eu abri a caixa, retirando o tabuleiro de dentro e começando a arrumar as peças.
— Certo, você vai jogar contra uma profissional, está preparada? — perguntei enquanto distribuía o dinheiro e ela revirou os olhos, rindo.
— Sim, Mabel, mas não chore se você perder! — disse pegando sua parte do dinheiro e eu arrumei as cartas das propriedades.
— Bem, eu digo o mesmo!
Stanford
Eu não sei como vim parar aqui, mas depois de muito caminhar, acabei chegando numa parte quase que completamente morta da floresta. Era como se houvesse existido uma praga que fez absolutamente tudo aqui morrer.
Caminhando sobre a grama loira ressecada e por entre árvores desfolhadas, me protegi do sol de meio dia com a bolsa sobre a cabeça, tombando de vez em quando em algumas das criaturas mortas.
Era estranho andar por ali, era como se a cada passo que dava tivesse a sensação de estar mais fraco e vulnerável.
Nessa região, apesar de aberta, não havia vento, minha bússola girava sem parar, completamente desnorteada, e eu sentia como se nunca saísse do lugar.
Apesar da estranha sensação de estar sendo observado por todos os lados, nem por isso iria retornar ao laboratório, me senti obrigado a continuar andando por essa trilha tênue que abri por entre arbustos mortos.
O silêncio que aqui habitava era quase que ensurdecedor, meus passos eram suaves e com ruídos abafados. Eu sentia como se fosse enlouquecer por não escutar sequer o piar de um pássaro.
Nada.
Eu surtaria, se o que vi logo a frente não fosse um achado e tanto: uma grande área totalmente em aberto, com todas as árvores que haviam a sua volta tendo um padrão de triângulos desenhados no tronco. Fora que a grama do chão era de uma estranha coloração preta, com exceção do centro de tudo, onde havia um círculo em que ela crescia em tom pálido.
Era como se aqui estivesse sendo centro de algum ritual, onde houve um círculo de fogo que matou a vegetação, sendo a grama preta a parte queimada pelo fogo e o meio o centro de algo.
Estranho que nada por aqui parecia estar certo, não havia uma pedra sequer no meio desse campo em aberto.
Receoso, peguei uma pedrinha ao meu lado e atirei-a para dentro do círculo, entretanto, antes que ela caísse no chão, simplesmente começou a flutuar e a subir simultaneamente, até que sumisse de meu campo de visão ao atravessar algumas nuvens.
Então a gravidade desse lugar era, simplesmente... Zero?
Isso não era nada bom... Eu não posso sair acusando ninguém, não tenho provas o suficiente, mas, também, a partir de hoje, não deixarei que mais nada passe despercebido.
Está tudo errado e eu estou começando a me sentir fraco, esse lugar irradia alguma coisa terrivelmente de ruim, é melhor eu sair logo daqui e desenhar o que vi em algum lugar para não me esquecer de nenhum detalhe.
Com o pensamento em mente, corri o mais rápido possível até meu laboratório, atravessando o caminho que já havia gravado, mas acabei por me perder no meio daquela densidão de devastação, tudo parecia ser igual...
É, acho que não vou sair daqui tão cedo.
De repente, quando me cansei, vi algum tipo de luz azul surgir como uma pequena chama em minha frente e se afastar aos poucos por entre as árvores.
O que era aquilo?
Bom, de qualquer modo, é melhor que eu a siga.
Bill
É bom que esse Seis Dedos maldito me agradeça depois pela ajuda, pois seria bastante satisfatório vê-lo ficar piradinho no lugar em que ele está.
Pode parecer estranho, mas eu consigo ver e estar em mais de um lugar ao mesmo tempo, isso, é claro, graças ao meu sexto sentido demoníaco. É uma habilidade incrível e que existe para poucos, mas, infelizmente, estando preso nessa forma, o máximo que posso fazer é estar presente em um único lugar, apenas observando os outros ao mesmo tempo de muitas formas possíveis.
Uma coisa que acho interessante, é como esse cara parece conseguir me rastrear tão bem, sempre deixando seus pés o levarem para os lugares exatos de onde passei, mas sempre estar errado em suas teorias a respeito de mim.
Mas, bom, se ele acha que as coisas são exatamente da forma como ele as vê, quem sou eu para negar? Não é tarefa minha colocar pistas em seu caminho ou um cérebro novo em sua cabeça.
Eu sou Bill Cipher, o demônio mais detestado que já se ouviu falar por aí, então não será por bondade que entregarei meus planos de bandeja, nem mesmo por um milhão de almas.
— Ei, Bill, o que você está achando até agora? — perguntou Dipper, ao meu lado, enquanto sorria e eu, involuntariamente, sorri de volta.
Okay, talvez por essa alma eu entregue.
Mas, mesmo se eu quisesse, não posso. E ninguém precisa saber dessa condição.
Afinal, eu me sinto totalmente vulnerável perto dele, como isso é possível? Se aquele Seis Dedos descobrir, usaria tudo isso com uma facilidade inacreditável para me atingir.
— Eu estou amando. Mas confesso que o Harry me dá raiva, às vezes, ele é muito teimoso! — exclamei e ele riu.
— Verdade, mas, pelo visto, na maioria das vezes a teimosia dele pode ser o caminho certo.
— Se ele escutasse a Hermione...
— Nem sempre ela está certa.
— Para mim, ela ainda é a voz da razão.
Ele cruzou os braços, sorrindo.
— Acho que está apaixonado, viu?
— Que? Por quem?!
Talvez, só talvez, eu tenha me desesperado com essa objeção repentina vinda dele.
— Ehr... Pela Hermione? Quem mais seria?
Oh. Nem te conto.
— E por quê? É segredo de Estado, por acaso? — perguntou arqueando uma sobrancelha, me fazendo sentir um frio descomunal na barriga.
Pensando bem, talvez...
— Uhum...
Droga, para de ler meus pensamentos!
— Ui, mas que irritadinho! — disse rindo e eu revirei os olhos.
— Cala a boca... — disse sem conter um sorriso, empurrando ele de leve voltando a assistir o filme.
Estávamos praticamente na metade do quarto filme, mais especificamente, na cena do baile de inverno, quando escutei Dipper soltar um riso soprado, de repente.
— Eu amo essa parte...
Se bem que eu não o julgo, os efeitos do cenário estavam excelentes e a dança inicial do Harry foi algo comicamente triste de se ver.
— Está aí uma coisa que algumas pessoas nunca farão na vida: dançar esse tipo de música com alguém que ama. — disse e ele concordou num sucinto balançar de cabeça.
— Não gosto de ir para festas, também, por isso... Não consigo dançar adoidado como muitos.
— Ah, isso é porque você não entra no clima!
Ele deu de ombros.
— É, deve ser...
Se ele aceitar ir para a festa comigo amanhã, eu juro que faço uma coisa que nunca pensei que faria algum dia.
Will
Depois de algumas horas fazendo truques, passei, praticamente, o dia e a tarde inteira sozinho naquele palco. O que era meia dúzia de gente logo se multiplicou cada vez mais e as pessoas foram ficando cada vez mais empolgadas com meu show, então terminou que tão cedo os clientes iriam sair daqui.
Enquanto isso, Stanley estava lucrando nas arquibancadas, enquanto guardava o dinheiro que recebia, ou roubava, dentro de uma sacola grande.
— Okay, você! — disse apontando para uma garotinha próxima ao palco e a puxei para meu lado. — Me diga o nome de algum animal.
— Gato. — respondeu um pouco receosa e eu fiz minha cartola flutuar. Bem diante de seus olhos e de todos, retirei de dentro um pequeno gatinho, escutando a plateia me encher de aplausos.
— Diga outro. — pedi sorrindo e ela, ainda surpresa pela aparição do animal, parou pensativa, possivelmente pensando em algo mais difícil de se conseguir tirar de uma simples cartolinha.
— Um peixe vermelho! — respondeu.
Dessa vez, eu não só retirei o animalzinho, como também o trouxe vivo dentro de um grande aquário.
Enquanto, mais uma vez, as pessoas me aplaudiram de pé, Stanley aproveitou a agitação para pegar algumas moedas que caíam no chão.
Eu não sou de fazer justiça por meio de soluções perigosas, mas também não é correto eu ver isso e ficar calado... Acho que um pequeno susto não mataria ninguém como ele do coração, certo?
— Eu posso ficar com os bichinhos? — perguntou a garota, segurando o gato e eu lhe entreguei o aquário.
— Mas é claro! — respondi sorrindo e ela saiu do palco saltitante, indo para o lado da mãe, que fez uma careta por imaginar o trabalho em dose dupla que lhe arranjei.
— Atenção, pessoal, infelizmente nosso show está chegando ao fim, mas, antes, eu gostaria de apresentar um último número. Esse eu garanto que é especial, algum voluntário?
Algumas pessoas levantaram as mãos, mas minha atenção se voltou inteiramente para Stanley.
— Que tal você, sr. Pines?
— Eu?! — indagou o velho e eu sorri em resposta. — Eu estou velho demais para essas coisas...
— Faria isso por dois mil dólares? — perguntei retirando o dinheiro da cartola e ele veio quase que correndo até o palco.
— O que eu preciso fazer? — perguntou sorrindo, olhando para o dinheiro.
— Confiar no meu sexto sentido. — disse e ele me olhou confuso.
Com um movimento de mãos, fiz uma roleta surgir atrás de nós e algumas pessoas tomam um susto pela aparição repentina, mas aquilo apenas rendeu mais aplausos.
— Espera, o que você vai fazer?!
— Bem, eu vou te girar nessa roleta e, de olhos vendados, acertarei sete facas nela, enquanto você roda.
Ele me olhou assombrado pela ideia.
Infelizmente, eu já fiz isso inúmeras vezes.
Nas primeiras, acabei errando a mira e acertando algumas vezes no pé e na palma da mão das pessoas. Quando isso acontecia, eles me atacavam com armas assim que as cortinas se fechavam pela má fama que eu atraía com aqueles erros, mas depois fui obrigado a aprender a fazer isso de olhos fechados e cronometrando o tempo das voltas da roleta em minha mente.
Eu não tenho um "terceiro olho" como o Bill, mas desenvolvi uma certa sensibilidade peculiar quanto a meu sexto sentido, então mesmo tendo um pouco mais de desvantagens que um demônio comum, consigo fazer isso sem acertar, de fato, a pessoa.
— Por cinco mil dólares, você faria? — perguntei, fazendo mais algumas notas aparecerem em minhas mãos. — Você não vai querer decepcionar a plateia...
Ele pegou o dinheiro de minha mão e guardou no bolso, enquanto andava até a roleta.
— Gostava mais de você quando estava apenas apresentando.
Acredite, eu também. Mas depois do que passei, nenhum show foi apenas o que aparentava ser.
Depois de prender seus pulsos e seus pés na roleta, fiz uma faixa escura aparecer em minha mão.
Andei até alguém da plateia e pedi para que a pessoa vendasse meus olhos e, assim que minha visão foi atada, já sabendo a localização exata da roleta em minha mente, subi no palco e fiquei de frente para o velho.
Acho que depois disso, ele nunca mais pensará em roubar sua freguesia.
Num movimento de mãos, fiz sete facas aparecerem e flutuarem à minha volta, para que, num estalar de dedos, a roleta, enfim, começasse a girar.
Era sempre empolgante, as pessoas estavam com grandes expectativas, eu sentia isso. Com os olhos atados, meus sentidos, por mais escassos que fossem, ainda me permitiam sentir todas aquelas vibrações. Eu me sentia quase tão eufórico quanto aqueles que assistiam, mas logo a presença do medo do velho me fez cair na realidade outra vez.
Aquilo era para ser apenas um susto. Eu não irei matá-lo.
Céus... Será que eu estou ficando "mau"?
Não, eu não sou mau. Eu não sou como eles.
Resoluto, respirei fundo e atirei uma faca.
A lâmina atravessou a madeira e perfurou a fundo suas fibras. Eu senti.
Um...
Atirei mais duas.
Dois...
Atirei novamente, mas escutei um grunhido vindo de minha vítima.
Não, ele não é uma vítima!
Três...
Foco, Will. A roleta não vai parar até que você termine isto.
Atirei mais uma faca e, mais uma vez, ela perfurou apenas a madeira.
Quatro...
Faltam duas.
Eu estava dividido.
A contagem continuou em minha mente, mas um lado meu retrocedia cada vez mais para dar espaço a uma triste e velha nostalgia angustiante.
Já morreram pessoas naquele mesmo jogo. Não por minhas mãos, mas em minha frente.
Eles me disseram que eu estava me tornando como eles. Porque eu era submisso. Porque eu não pensava em matar mas tolerava aquelas mortes.
Aquilo me acertou em cheio. Eu estava parado, com a visão escura e revivendo todos aqueles arrepios repugnantes que já passei em situações parecidas.
Não, eu não deveria ter aceitado isso. Eu não gosto disso, eu.. Eu não sou como eles!
Sem querer mais pensar, agarrei o cabo das duas facas e, num giro, as atirei juntas, de uma só vez.
Assim que as duas facas atravessam a madeira, cada uma rente as laterais da cabeça do velho, a roleta parou de girar e escutei fortes aplausos, enquanto retirava a venda de meus olhos e a jogava para longe.
Todas as facas estavam com suas lâminas enterradas em volta dele, todas muito próximas, mas nenhuma, de fato, o acertou.
Eu não gosto de mortes, afinal de contas. Não sou como o Bill. Não sou como os outros demônios. Não sou como eles achavam que eu era e nem como outros já desejaram que eu fosse.
Aliviado de uma culpa que nunca gostaria de conhecer, sorri ao soltar Stanley e o escutei resmungar.
— Certo! Já entendi o que você quis dizer, nunca mais vou roubar na sua frente! — disse ele, com um pouco de raiva e se voltando para a plateia com o rosto pálido. — Pronto, o show acabou, vão comprar seus suvenires lá na recepção, tchau! — disse praticamente espantando as pessoas como galinhas e eu me sentei, reflexivo, na ponta do palco.
Por mais que eu tenha gostado, nunca mais vou querer fazer um show desses na minha vida.
Prefiro morrer do que passar por isso de novo.
Mabel
— Há! Venci, baby! Eu avisei que comigo ninguém pode! — exclamei para Pacífica depois de passar um dia inteiro jogando com ela.
— Isso foi porque eu deixei. — disse a loira e, antes que eu pudesse responder, escutamos batidas na porta. — Se esconda, rápido! — disse se levantando abrindo a porta e eu saltei para debaixo da cama.
— Srta. Northwest, seus pais querem vê-la na sala de jantar daqui há cinco minutos. — disse uma senhora na porta.
— Okay, vou me arrumar, obrigada pelo aviso, Samantha. — disse ela, fechando a porta, e eu rolei para fora debaixo da cama.
— Srta. Northwest. — disse com a voz da mulher e ela ri. — É melhor eu ir para casa, já está bem tarde.
— Eu te ajudo a sair daqui, vamos. — disse segurando minha mão.
Ela me guiou pela casa e me levou pelas sombras de algumas árvores do jardim até o portão. Como praticamente já está de noite, era impossível que nos vissem.
— Eu devolvo suas roupas amanhã, okay? — disse segurando a grade e ela sorri.
— Pode ficar com elas, só você ficaria tão bem com um vestido médio e botas de cano alto com salto baixo.
Eu ri.
— Vou aceitar isso como um elogio.
— Mas foi um elogio.
— Ah, então, obrigada! — disse sorrindo e ela me abraça.
— Até amanhã, Mabel. — eu retribuí o abraço.
— Até, Pacífica.
[...]
Quando cheguei na cabana, me surpreendi com a quantidade de pessoas na entrada, tanto que tive dificuldade para atravessar o mar de gente.
Estava tendo um show?
Quando consegui chegar na recepção, levei um susto ao encontrar Soos e tivô Stan vendendo souvenires como quem vende bananas na promoção para macacos famintos!
— O que aconteceu, aqui tivô Stan? — perguntei e ele sorriu animado. Com certeza estava ganhando muito dinheiro.
— Pergunte a seu amigo Will. Ele é um artista!
— Que...?
Artista?
Assim que fui para o pequeno saguão de entrada, me deparei com Will sentado na escada, vestido como um apresentador de TV elegante.
— Will!
— Mabel? — disse ele, se levantando e sorrindo ao me olhar.
Eu examinei bem suas roupas, antes de começar a rir.
— O que aconteceu com você, menino? — perguntei em meio ao riso e ele sorriu levemente, deixando suas bochechas com uma coloração avermelhada.
— O Stan estava me vendendo...
— Que?!
— Não! D-digo, ele me fez apresentar um show de mágica que durou o dia inteiro... E o que aconteceu com você?
— Ah, eu passei o dia inteiro na casa da Pacífica, só jogamos e ficamos conversando, nada de mais. Mas, então, como foi seu show? Arrasou corações fazendo mágica? — perguntei, dando leves cotoveladas em seu braço, e ele riu.
— Não, mas testei a coragem e a força do coração do seu tio-avô.
— Promete que me conta todos os detalhes depois do jantar?
— Mas é claro! O sr. Pines já fez a janta, mas por questões de saúde, eu recomendo você comer a pizza que estava no congelador... — disse ele, enquanto andávamos pelo estreito corredor.
— É... Mas, espera, você disse "estava", ainda tem pizza no congelador?
— Acho que sim, se o Bill não comeu toda com o Dipper...
— Ah meu Deus! Eu me esqueci deles! Eu prometi ao Bill que o ajudaria assim que chegasse e... — disse enquanto corria atônita até a sala, mas parei na entrada assim que vi uma das cenas mais fofas e inusitadas que já presenciei na minha vida.
A sala estava sendo iluminada apenas pela luz da TV e Bill e Dipper estavam, praticamente, adormecidos de forma desajeitada no sofá. Era tão fofo como Bill abraçava meu irmão! Se não fosse pelo fato de estarem além do décimo terceiro sono, diria que era como se o loiro o estivesse protegendo de algo.
Mas, bem, aquele progresso já era de se esperar. Bill fez um bom trabalho, aquilo era um bom sinal. Precisávamos desse avanço, afinal, amanhã realmente será um grande dia!
— Acho melhor deixarmos eles aí... — disse Will ao meu lado e eu suspirei.
— Se perguntarem, falamos que não vimos nada. — disse e ele sorriu em concordância.
Ficamos um tempo na presença um do outro, assistindo a cena de nossos irmãos, provavelmente pensando em coisas diferentes, mas nos sentindo como iguais pelo mesmo motivo.
Até que eu me cansei e o empurrei de leve.
— Vamos comer pizza?
— Claro!
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