A tarde estava quente e ensolarada como um digno dia de verão deveria ser. Ótimo para tomar um sorvete gelado ou ir pular no mar na praia mais próxima. Era tudo o que eu queria fazer, e era exatamente o que a maioria das pessoas estavam fazendo no momento. Tirando um dia de folga para curtirem o Sol.
Parei de tirar o pó dos meus gibis para invejar um dos meus vizinhos partir alegremente para uma aventura, enquanto eu, ficava exatamente onde estava, prédestinado a limpar sozinho toda a imensa garagem.
Parecia que um tornado havia passado por ali. Pilhas de revistas em quadrinhos estavam jogadas por todo canto, minha bike, meu skate e meus equipamentos de parckeur estavam tumutuados de um lado, minha coleção de bonecos de Tauó do outro.
A garagem era como um depósito das minhas bugigangas e depois de vários meses ignorando a bagunça fui corajoso o suficiente para tomar a difícil decisão de finalmente limpa-la.
Estava na metade do serviço quando ouvi minha mãe chamar por mim. Gritei de volta avisando que estava na garagem e após alguns minutos ela surgiu na porta. Ainda tinha o semblante fechado, a raiva estampada em sua face, mas já não parecia mais querer me fazer em picadinhos, embora eu ainda não ousasse ficar demasiadamente perto dela. Na noite passada, quando cheguei em casa sangrando — culpa do soco que o babaca do Toni havia me dado— tentei passar despercebido pelos meus pais e ir direto pra cama, mas não deu muito certo. Quando viu meu estado, meu pai apenas balançou a cabeça em forma de reprovação enquanto minha mãe... oh, a minha mãe fez um alvoroço e tanto. Entrar numa briga era algo que ela não podia tolerar.
– O que está fazendo?– perguntou, analisando todas as coisas que eu já havia organizado. Parecia incrédula com a cena.
– Apenas dando uma faxina.– sorri ao ver a micro expressão de surpresa que ela fez. Não a culpava pelo espanto, com toda a certeza eu não era o cara mais organizado do mundo.
– Sabe...– continuei a dizer– a Magali vai vim aqui me dar algumas aulas extras, para ver se consigo recuperar as notas até o final do ano. Tudo bem para a senhora?
– Claro...– minha mãe pareceu relaxar as feições por um instante.– Fico feliz que esteja finalmente começando a levar seus estudos a sério, e que bom que tem amigos como a Magali para te ajudar nessas horas, ela é uma boa garota.
– É– concordei.– Ela é sim.
Involuntariamente visualizei o rosto de Magali em minha mente por alguns segundos e então o afastei o mais rápido que pude quando a lembrança da festa, do armário e do beijo surgiram sem aviso. Aquilo estava acontecendo constantemente comigo. Lá estava eu comendo, tocando violão ou fazendo qualquer outra coisa quando BAM, o beijo surgia em minha cabeça, e por mais que eu o afastasse, a memória sempre voltava de alguma maneira. Não sabia mais o que fazer. Lembrar daquilo a todo momento não parecia normal, muito menos certo.
– Já sei, vou preparar aquele bolo de cenoura.– minha mãe exclamou, tirando-me dos meus pensamentos.– Eu sei que ela adora!
– Obrigado.– murmurei, preenchendo meus pensamentos com outras coisas que não envolvessem Magali.
Minha mãe falou mais alguma coisa que não prestei atenção e saiu logo em seguida da garagem. Não demorou muito e eu a segui. Ainda tinha muita coisa para arrumar, mas o tempo estava passando e já estava dando a hora de Magali chegar. Só deu tempo de subir pro meu quarto, tomar um banho e descer para a sala com minha mochila. Um minuto depois a campainha tocou e fui atender.
– Oi.– murmurei sem jeito, ao abrir a porta.
Magali estava parada na minha frente com uma grande mochila pendurada nas costas. Tinha os cabelos negros presos como sempre e vestia um moletom amarelo simples, calça jeans e sapatilhas. Não tinha nada de diferente nela, mas ainda sim, a achei mais bonita do que nunca.
– Oi.– ela sorriu com o canto da boca e no fundo do peito senti um formigamento. Ignorei a sensação e a convidei para entrar. Logo espalhamos os livros e os cadernos por toda a mesa de jantar.
– Tudo bem– ela disse.– Por onde quer começar? Química, Física, Matemática?
– How!– exclamei.– Vai com calma. Pega leve comigo...
– Ok.– ela agarrou um dos livros e começou a folhear as páginas.– Vamos começar pelo mais fácil então. Matemática.
As palavras "fácil" e "matemática" na mesma frase não fazia sentido para mim, mas respirei fundo e gesticulei com a cabeça um sim. Começamos a revisar a matéria e quase duas horas depois, sentia como se nenhum neurônio meu estivesse mais vivo.
– Então é assim que encontramos a temperatura final.– Magali concluiu, terminando de explicar a matéria como se fosse a coisa mais simples do mundo.– Entendeu?
– Sim.– respondi, da boca pra fora.
– Sim?– Magali juntou as duas sombranselhas, como se já soubesse da mentira.
– Na verdade não.– admiti.– Desculpa, mas isso simplesmente não entra na minha cabeça!
– Tudo bem.– Magali sorriu gentilmente enquanto guardava os materiais em sua mochila estampada de gatinhos.– Sem pressa. Podemos estudar mais amanhã.
Abri a boca para responde-la, mas minha mãe entrou na sala no exato momento com uma bandeja enorme nas mãos.
– Licença!– exclamou.– Trouxe algo para vocês lancharem. Espero que gostem.
Quando Magali viu o bolo de cenoura com cobertura de chocolate sobre a bandeja seus olhos castanhos se iluminaram. Ela adorava aquele bolo. Eu chegava a ter dúvidas se entre eu e o bolo quem Magali escolheria. Se bem que não... eu não tinha dúvidas. Com certeza ela escolheria ele.
– Já disse que você é a minha tia preferida?– Magali exclamou e apesar de ter ficado corada, era explícito que minha mãe ficou radiante.
– Sim.– confirmou, em um belo sorriso.– Mas não custa nada dizer de novo.
– Obrigada.– Magali agradeceu, enchendo a boca de bolo. Enquanto isso minha mãe se virou para falar comigo.
– Querido, eu vou ao mercado antes que ele feche, a luz da cozinha queimou e eu não sei onde o seu pai colocou a escada, pode arrumar um jeito de trocar a lâmpada para mim? Não posso fazer o jantar sem luz.
– Claro mãe.– disse sem hesitar. Depois de ter deixado ela brava faria qualquer coisa para agrada-la.– Não se preocupe, dou um jeito!
– Ok. Então estou indo.– ela se despediu, saindo apressada de casa. Quando ouvi o som do seu carro desaparecer pela rua, voltei minha atenção para as anotações que havia feito.
– Não sei como pode ser tão inteligente.– comentei, analisando sem muitas esperanças os papéis.– Não entendo metade do que tá aqui.
– É tudo questão de estudo Cas.– Magali informou, dando a última garfada no seu pedaço de bolo.– Mas não se preocupe, é para isso que estou aqui, para te ajudar.
– Que ótimo!– Me levantei e estendi minha mão para ela.– Então porque não me ajuda agora?
– O quê?– ela pareceu confusa.
Sem explicar nada, peguei a sua mão e a guiei até a cozinha.
– Sabe, mesmo se eu subir numa cadeira não vou conseguir alcançar o bocal.– expliquei.– Preciso de uma ajudinha...
Ao entender o que eu queria, Magali fez um expressão de "nem que a vaca turça" e eu tive que fazer minha famosa cara de cachorro abandonado para tentar convence-la.
– Qual é, confia em mim.– choraminguei, colocando a lâmpada nova em suas mãos.– Alguma vez eu já te meti em alguma enrascada? Não responda!
Magali tentou ficar séria, mas acabou soltando um risinho.– Tá.– sibilou.– Mas se me deixar cair eu te mato!
– Sim senhora!– bati uma continência para ela e no mesmo instante me curvei. Juntei minhas duas mãos e dei sinal para que ela subisse. Sorte a minha que Magali era leve como uma pluma, quase não senti o seu peso quando a suspendi até o bocal. Ela desenrroscou a lâmpada quebrada e em um piscar de olhos colocou a nova.
– Consegui!– exclamou.– Já pode me descer!
Com cuidado segurei firme o seu corpo e a abaixai lentamente. Não sei se foi uma boa idéia. Quando seus pés finalmente tocaram o chão, nós dois estávamos tão próximos que eu poderia beija-la de novo se quisesse.
– É melhor eu ir agora.– Magali se afastou.– Tá ficando tarde.
– Mas já?– estranhei.– Você só comeu um pedaço de bolo.
– Estou satisfeita.– ela afirmou, mas custei acreditar.
– Não acredito.– rebati– Antigamente você comeria três pedaços em menos de dez minutos...
– Eu sei.– Magali murmurou, divertida.– Mas não sou mais aquela garotinha com apetite insaciável de antes. Eu mudei.
– Acho que todos nós mudamos.– refleti e cheguei a ficar melancólico por um segundo. Às vezes batia saudades dos velhos tempos. Tempos onde ainda éramos apenas crianças inocentes que não tinham tantos problemas.
– É verdade.– concordou.– Embora seja meio difícil de acreditar que você tome banho. Ainda acho que isso é lenda urbana.
– Ei, você está claramente me avacalhando.– indaguei.– Eu tomo banho sim, todos os dias!
– Ah é?– Magali se aproximou e colocou as duas mãos em minhas bochechas.– E essas marquinhas de sujeira aqui, hein?
– Nem vem.– Segurei suas mãos.– Essas marquinhas são o meu charme.
– Claro...– Magali exclamou, soltando um riso contagiante. Comecei a rir também e ficamos alguns segundos rindo sem nenhum motivo, como dois malucos. Quando o riso cessou, percebi que ainda estava segurando suas mãos e que estávamos muito, muito próximos.
Meu primeiro pensamento foi me afastar. Uma vozinha em minha cabeça gritava:
Perigo! Perigo! Perigo!
Mas algo dentro de mim se recusava a ouvi-la. Na real, seria tão ruim se nós nos beijassemos de novo? E antes mesmo que eu pudesse responder aquela pergunta, beijei Magali.
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