Não sinto minhas pernas.
Tinha me esquecido como é a sensação de não ter ar dentro dos pulmões. De inspirar fundo pelo nariz e não conseguir expelir nada pela boca. A última vez que senti algo parecido foi há sete anos atrás, quando meu pai tocou gentilmente meu ombro e com os olhos marejados contou sobre a morte do meu avô. Foi como ter uma faca encravada no meio do meu coração, me rasgando de fora para dentro sem um pingo sequer de piedade. Ela ficou lá por um bom tempo, até se desgrudar e deixar uma cicatriz horrível. Agora eu podia sentir a mesma faca atravessando meu peito...
Meio desnorteado, caminhei sem rumo de um canto a outro do cômodo; totalmente fraco.
Meu ombro latejava, indicando que algo estava errado. Talvez eu tivesse o deslocado enquanto me jogava contra aquela porta dura; uma, cinco, dez vezes seguidas até ela oscilar e enfim abrir-se num estrondo. E talvez em uma situação menos estressante, eu estivesse naquele exato momento agonizando no chão frio, mas a adrenalina não me deixava sentir dor, apenas pânico e medo.
Agarrei com mais força o celular contra a orelha e tentei concentrar minha mente no ruído interminável que ele emitia. A linha estava ocupada e eu aguardava ansiosamente para que alguém — qualquer um — atendesse a merda daquela ligação. Os segundos corriam como minutos, os minutos passavam como horas e a cada instante que se seguia mais preocupante tudo ficava.
Precisávamos de mais tempo e tempo era tudo o que não tínhamos.
Parei de andar feito um lunático e me concentrei. Não podia me desesperar, não podia demostrar que estava totalmente em pânico, não quando ela estava ali, fazendo o possível e o impossível para reverter toda aquela situação.
— 192. Qual sua emergência?
Paralizei ao ouvir a voz feminina na chamada. Girei o pescoço e pela primeira vez desde que entramos naquele quarto olhei diretamente para Magali. Ela permanecia de joelhos, as duas mãos sobre o peito da pessoa caída no chão. Meu olhar pareceu atrair o seu. A morena levantou o rosto e as lágrimas brilharam sobre a luz fraca do ambiente. Seu olhar era vago e penetrante ao mesmo tempo. Parecia possuir tantos sentimentos e emoções diferentes, mas nenhuma, sem exceção, parecia boa. Havia um misto de medo, pavor e culpa em sua face, principalmente culpa.
Senti um nó gigantesco se formar em meu estômago quando seu olhar se encontrou com o meu.
Foi quando eu soube;
Eu poderia ser otimista o quanto quisesse, e poderia teimar em dizer a mim mesmo que as coisas iriam melhorar depois daquilo, mas não iriam...
Nunca mais.
Fechei os olhos e tentei respirar fundo;
— E-Eu preciso de ajuda.
***
Uma semana antes;
Cas on;
Fechei a porta atrás de mim e procurei em silêncio os moradores daquela casa. Não havia ninguém na sala de estar, o que denunciava que meu pai estava na oficina e minha mãe provavelmente cuidando de Sofia no andar de cima. Enxerido, subi as escadas e bisbilhotei o quarto cor de rosa que costumava ser de hóspedes. Agora ele estava enfeitado do melhor jeito possível, com móveis fofos e brinquedos ao monte. Pontei a cabeça para dentro do cômodo e sorri feito um idiota ao ver a cena; minha mãe sentada na cama juntamente com Sofia, fazendo tranças no cabelo afro da pequena ao tempo em que cantarolava uma música que eu conhecia muito bem. Ela sempre cantava para mim e agora fazia aquilo com a mais nova. Por falar nela, a garotinha se entretia com o urso que eu havia lhe dado e mais algumas dúzias de bonecas espalhadas pelos lençóis.
— Oi mãe!— adentrei enfim o quarto e depositei um beijo na bochecha de ambas.— Oi Sofi!
— Oi querido! Como foi o...— a mulher de pele negra e olhos amendoados franziu a testa ao analisar meu rosto.— O que é isso no seu lábio?
Senti minha alma sair e voltar para meu corpo em questões de segundos. Havia me esquecido completamente da briga com Quim e do soco que o babaca tinha me dado. Não que tivesse me causado algum tipo de dano severo, não... tudo o que a agressão resultou foi em um pequeno corte no meu lábio inferior que é claro; Dona Lurdes com toda certeza não deixaria passar despercebido.
— A bola acertou meu rosto durante o jogo, nada demais. Só foi um machucadinho de leve.— mostrei os dentes num sorriso forçado, enquanto a mulher a minha frente juntava mais as sombrancelhas e fazia cálculos imaginários para decidir se de fato uma bola de futebol poderia mesmo causar aquele tipo de lesão. Estremessi. Não poderia dar tempo para ela raciocinar, caso contrário teria sérios problemas. Minha mãe odiava que eu me envolvesse em qualquer tipo de briga, discussão ou desavenças. Precisava urgentemente de uma distração, e das boas.— Tenho ótimas notícias! Adivinha quem passou de ano!?
— Oh meu amor!— minha mãe teve uma mudança brusca de expressão. Um tanto quanto surpresa até, eu diria. Ela estava ciente da minha situação critica no colégio e dos riscos que eu corria em ter que repetir o terceiro ano.— Estou tão orgulhosa de você!
Para celebrar a conquista Dona Lurdes levantou-se da cama e me abraçou como um urso pardo provavelmente abraçaria seus filhotes. Agarrou minhas duas bochechas e depositou uma dúzia e meia de beijos na minha testa.
— Para comemorar, como prometido, vou te levar para andar de bike no parquinho depois do meu treino!— avisei a Sofia, que teve a atenção roubada no mesmo instante. Deixou os brinquedos de lado, desceu do colchão com um pouco de dificuldade e veio me abraçar animada.
— Ah, filho...— a voz da minha mãe soou preocupada.— Não sei se essa é uma boa ideia.
— Qual é mãe, eu dou conta.— agachei na altura de Sofia e deixei que ela subisse nas minhas costas e sentasse nos meus ombros, assim como meu pai fazia comigo quando eu tinha sua idade.— Vou cuidar dela.
— Sei que sim querido, é que, bem...— ela coçou de um jeito aflito o próprio queixo.— A Sofia é pequena, crianças exigem muita atenção, não sei se você ainda está familiarizado com isso...
Suspirei. Eu tinha me esquecido como minha mãe tendia a ser tão super protetora...
— Vai ficar mais tranquila se eu disser que a Magali vai com a gente?— joguei minha carta de ouro e lhe vi reconsiderar a decisão na mesma hora. A garota era a queridinha de metade dos pais que eu conhecia. Quando eles não deixavam eu ir em algum canto, bastava citar o fato de que ela também iria para que eles baixassem a guarda. Não podia os julgar. Na visão deles Magali era a definição de filha perfeita. Hiper mega responsável, primeira da turma, educada e como eles gostavam de pontuar; uma excelente influência.
— Ok, podem ir.— eu não tinha dúvida alguma que ela diria algo contrário.
— Tá ouvindo isso Sofi? Nós vamos para o parque!— peguei impulso e saí correndo do quarto com a garotinha no meu gangote, que se acabava em uma gargalhada alta. Minha mãe vinha logo atrás, gritando para eu parar de correr e tomar mais cuidado. Fiquei uns dez minutos brincando com ela, depois tomei uma ducha gelada e saí de casa. O pessoal do meu time havia mandado mensagem marcando um treino de última hora e deixaram bem explícito que eu estava expressamente proibido de faltar. Quando cheguei no local — um tanto quanto atrasado— todos já estavam ali, com a única exceção sendo Ivan.
— Sempre atrasado hein, cabeção?— Pedro me deu um tapa na nuca e eu devolvi com outro.— Chegou na hora certa, estávamos falando sobre você.
— Sobre mim?— perguntei surpreso.— Qual é a treta?
— Nós nos juntamos para fazer uma votação justa e você foi o escolhido!— Xaveco não se aguentou e soltou tudo de uma vez.
— Escolhido para quê?— Eu estava me sentindo uma agulha perdida no meio de um palheiro.
— Ser o capitão do nosso time.— Pedro afirmou, e se eu já estava confuso antes, fiquei cem vezes mais com aquela notícia.
— Calma aí galera.— tive que dar uma breve pausa para colocar meu cérebro para funcionar.— O Ivan é capitão e além do mais, esqueceram que é o pai dele que patrocina a gente? Não podem tirar ele.
— Não tiramos.— Samuel explicou, com calma.— Ele vai deixar o time por conta própria.
— Sério?— estive esperando por aquele anúncio durante muito tempo e agora que ele enfim havia se concretizado não conseguia acreditar.— Por que?
— Chamaram ele para fazer parte de um time na capital.— Pedro deu de ombros. Ninguém ali era muito fã da soberba do garoto.— Me admira não estar sabendo, ele anda se vangloriando por isso aos quatros ventos.
— Então, você aceita?— Xaveco voltou a tocar no tema e todos me encararam esperançosos. Acho que nunca almejei ser capitão ou coisa parecida, mas se eles chegaram ao ponto de votarem em mim, porque não?
— Caro!— exclamei, e eles caíram em cima de mim numa comemoração animada. Ficamos algum tempo conversando sobre os planos futuros e sobre alguns campeonatos que iríamos competir nos próximos meses. Teríamos que viajar para cidades vizinhas, o que parecia um empecilho por conta da grana. Samuel garantiu que o pai de Ivan continuaria nos apoiando após sua partida, mas eu duvidava muito. Por falar no diabo, ele apareceu como uma assombração atrás de nós. Pigarreou alto até termos noção de sua presença e então abriu um largo sorriso;
— Meninos, como estão!?— perguntou, numa preocupação muito pouco genuína. O cumprimentamos com cortesia e quando chegou minha vez de apertar sua mão, ele pousou os dedos frios sobre meus ombros e me fitou;
— Posso dar uma palavrinha em particular com você jovem?
Pisquei algumas vezes até processar o pedido incomum. Acenti com a cabeça e deixei ele me guiar para longe do restante do grupo, que assistia a cena com um misto de curiosidade nos olhos. Quando já não podíamos mais sermos ouvidos, ele parou.
— Presumo que já esteja sabendo da novidade.— começou e concordei, supondo que o homem gordo, de terno azul extravagante, e de perfume que ardia o nariz, estivesse falando da conquista mais recente do filho.— Sabe porque o time da capital o escolheu?
— Porque ele é um bom traceur ?— murmurei, me perguntando internamente qual era o intuito daquela conversa.
— Não.— o homem respondeu, numa risada sincera.— Escolheram ele porque o técnico do time me devia um favorzinho...
Soltei um riso, porém ao contrário do dele não havia graça alguma no meu. Sempre me disseram que meritocracia não existia, e não poderiam estar mais certos.
— Você sabia que o técnico estava na última competição que ganhamos?— ele continuou a falar, ignorando minha cara de pouco interesse.— Ele gostou de você. Disse que tem potencial.
Não respondi. Não estava esperando por aquela informação, na verdade, o dia mal tinha começado e eu já havia me surpreendido mais do que poderia lembrar.
— Vou ser sincero com você garoto.— ele virou-se para me encarar, a postura rígida, o cenho fechado.— Meu filho não é dos melhores, e mesmo que o técnico me deva favores ele não pode simplismente ir embora da cidade levando apenas um atleta medíocre. Ele precisa de mais uma pessoa, uma que realmente tenha talento, caso contrário Ivan não poderá ir.
— O senhor quer que eu vá, para seu filho não perder a vaga?— questionei intrigado, e ele sorriu.
— De fato, o sonho do meu filho depende de você.— murmurou, enfiando as mãos no bolso do terno e retirando um maço de cigarros. Tirou um palito, me ofereceu o restante e quando recusei ele guardou novamente.— Contudo, você é um garoto esperto e sabe que sairia ganhando muito com tudo isso. Meu filho não tem um futuro muito brilhante nesse esporte, mas você... ah, você tem querido.
— Já deve ter ouvido rumores que o comitê olímpico pensa seriamente em inserir o parkour na lista de esportes olímpicos, né?— o homem acendeu o cigarro com um insqueiro que tirou de algum lugar e baforou a fumaça fedida.— Bom não é rumor. Acontece que o Brasil precisa de bons atletas para constituírem a seleção, e você me parece um excelente candidato.
— Olimpíadas?— ri com descrença bem na cara dele.— Isso é impossível.
— Ah garoto, isso é muito mais que possível.— minha vontade era arrancar aquele palito entre seus dedos, tacar no chão e pisar em cima sem dó alguma.— Você é talentoso, com a mentoria certa pode chegar em um patamar que jamais cogitou alcançar. Tudo o que precisa fazer é se dedicar o suficiente para ser destaque. Você ganhará uma bolsa de Atletismo e ficará treinando e participando de campeonatos. Patrocinadores de verdade cairiam aos seus pés... não gostaria disso?
— É óbvio que sim.— travei o maxilar, pensativo.— Mas como você disse eu teria que ir embora.
— É um pequeno preço a se pagar por um futuro brilhante.— retrucou.— É na capital que estão os campeonatos mais importantes e os maiores patrocinadores. Se quer se dedicar ao parkour, seu lugar é lá.
Balancei a cabeça negativamente. Eu não podia simplismente abandonar tudo para trás, por mais tentador que aquela proposta parecia.
— Obrigado pela oportunidade, mas vou passar.
Não pareceu a resposta que o homem estava esperando. Ele respirou fundo, deu uma última tragada e então tacou o que sobrou para longe.
— Voce é esperto, posso ver na sua cara.— balbuciou, o humor mudando para algo mais obscuro.— Então veja bem essas duas possibilidades; Você aceita a proposta, tem um furuto brilhante e como agradecimento por ajudar meu filho, eu continuo patrocinando os seus amigos. Ou você rejeita a maior oportunidade da sua vida, fica num time falido sem patrocínio algum e destrói seu próprio futuro. Então, o que me diz?
Fiquei sem reação. Se aquilo ali não era uma ameaça nítida, eu não sabia o que era.
— Você tem uma semana para pensar.— ele não deixou que eu falasse mais nada, apenas estendeu a mão e me oferecu um cartão pequeno de visitas.— Se mudar de ideia, me liga.
Girou os calcanhares e foi embora, levando consigo toda a minha paz.
Voltei para meus amigos e expliquei a situação. Eu não queria contar, mas eles viram minha cara e insistiram. O time se dividiu entre os que achavam que eu deveria aceitar e os que não concordavam, mas eu não estava com cabeça para discutir aquilo. Me despedi deles e fui para casa com a mente pesada. Eu costumava achar que uma oportunidade como aquela nunca chegaria para mim, mas lá estava ela. O problema era; a que custo?
Cheguei em casa e tomei mais um banho para colocar os pensamentos em ordem. Tudo o que queria fazer era deitar na cama e dormir até que tudo aquilo se transformasse em apenas um sonho, mas não podia. Tinha prometido que levaria Sofia para passear e não podia quebrar a promessa de irmão mais velho.
— Magali que bom te ver!— quando desci as escadas já pronto, dei de cara com minha mãe abrindo a porta para a garota morena. Estava com um casaco de tricô azul claro, calça escura e sapatos brancos. O cabelo preso num rabo de cavalo alto, e as franjas soltas pelo rosto corado.— Como você está?
— Estou ótima e a senhora?— sorriu gentilmente, e meu coração errou uma batida ao ouvir o som de sua voz mansa.
— Ah por favor, já disse que pode me chamar de Lurdes.— minha mãe segurou seu braço e a carregou animada para a cozinha.— Venha, quero te apresentar a minha filha!
Fui logo atrás para não perder a cena. Sofia estava sentada na mesa de jantar agarrada ao ursinho que eu havia lhe dado, acompanhada do meu pai que tomava tranquilamente uma xícara de café.
— Sofia, essa é a Magali.— minha mãe apresentou.— E Magali, essa é Sofia.
— Oi.— Magali se aproximou da pequena e se agachou o suficiente para ficar da sua altura.— Uau, que ursinho lindo! Qual o nome dele?
— Senhor Rocombole.— Sofia respondeu com orgulho, depois baixou o tom de voz como se estivesse contando um segredo.— É um nome engraçado, mas não pode rir.
— Ah entendo...— Magali entrou na brincadeira e cochichou de volta.— Ele deve ser sensível, né?
Sofia concordou e eu não pude controlar o riso. A morena levantou os olhos e sorriu para mim daquele jeito que parecia fazer minhas entranhas desaparecerem de dentro do meu estômago.
— Preparei uma cesta para vocês levarem, o dia estar muito bonito para um piquenique!— Dona Lurdes anunciou, indo até a cesta florida e terminando de colocar mais um monte de comida lá dentro.
— Olá Magali.— meu pai levantou-se para cumprimentar a garota.— Como vai seu pai? Mês passado ele disse que o carro tava fazendo um ruído estranho, tô esperando ele aparecer por aqui.
— Ele está bem.— Magali o cumprimentou de volta.— Pode deixar, vou lembrá-lo de vim.
— Bom, já que tá todo mundo aqui, acho melhor a gente contar logo.— exclamei, entusiasmado por um momento.— Minha mãe odeia ser a última a saber.
— Você ainda não disse para eles?— assisti a cor sumir de sua pele. Ela me encarou desesperada e tive que conter o riso.
— Disse o que?— minha mãe perguntou curiosa.
— Eu achei que seria bem mais legal se contassemos juntos.— defendi, tentando me manter sério.— Além do mais eles não iam acreditar se eu contasse sozinho.
— Ok, vocês vão me matar de curiosidade.— Dona Lurdes não conteve a ansiedade. Parou o que fazia e veio em nossa direção.— Contar o quê?
Magali e eu nos entre olhamos, sem saber muito bem como agir. Se ela baixasse os olhos e visse as alianças idênticas nos nossos dedos ficaria mais fácil de sacar, mas minha mãe parecia muito entretida para reparar naquilo.
— Estamos namorando.— Resolvi soltar de uma vez e meus pais nos encararam atônitos por alguns segundos.
— Cássio Araújo, pare já com essas suas gracinhas.— minha mãe voltou a arrumar sua cesta e meu pai sentou-se novamente para terminar seu café. Nenhum dos dois deu bola alguma para o que eu disse.
— Viu?— me virei para a garota ao meu lado.— Eles só vão acreditar se você falar.
Observei Magali pressionar os lábios um ao outro, enquanto meus pais a fitavam sem um pingo de fé nas palavras que eu havia proferido.
— É verdade.— confirmou, e foi muito divertido ver a cara do meu pai e principalmente da minha mãe. Ela desequilibrou um dos copos de vidro que segurava e por muito pouco não o deixou cair no chão. Era engraçado o fato de que eu poderia dizer mil vezes que estávamos namorando que ainda sim eles não acreditariam, mas bastava Magali dizer duas simples palavrinhas e eles levavam como a maior verdade do mundo.
— Aí meu Deus! Você!? A minha nora!?— eu não vi quando foi exatamente a hora que minha mãe pulou para abraçar Magali e nem quanto tempo ela permaneceu grudada nela.— Tá ouvindo isso Antenor!?
— Estou.— mais uma vez meu pai teve que se levantar, indo até a a mais nova e a abraçando também. — Bem vida a família querida.
— O-Obrigada.— Magali levou alguns segundos para recuperar o fôlego.
— Precisamos fazer um jantar de comemoração com os seus pais! Eles já sabem, não é? Ah que pergunta, é claro que sabem, pais de menina sempre sabem de tudo primeiro!— minha mãe começou a tagarelar sem parar e eu suspirei. Quando ela se empolgava daquele jeito poderia separar boas horinhas do seu dia, porque era quase impossível fazê-la parar de falar.— Venha querida, me conte tudo!
Ela levou minha namorada para uma das cadeiras e não sei como, mas ficamos mais de uma hora naquela cozinha. Seria mais se eu não tivesse interrompido a conversa e se Sofia não tivesse tão impaciente para irmos logo. Quando enfim minha mãe nos liberou para sair de casa, já era tarde e teríamos pouco tempo de sol para aproveitar o parque.
— Desculpa por isso, é que minha mãe te adora.— murmurei, colocando Sofia nos ombros e segurando a mini bicicleta em uma das mãos.— Ela ia surtar de qualquer jeito.
— Tudo bem.— Magali sorriu.— Tô feliz em ter uma sogra tão boa quanto ela.
— Ah eu também adoro a minha.— não pude deixar de pontuar. Eu realmente gostava bastante da mãe de Magali e sentia que era recíproco.
— Que ótimo, porque ela quer que você jante amanhã conosco.— ela soltou de uma vez, como se não fosse nada demais.
— Irei com prazer.— escondi minha insegurança bem lá no fundo do peito para que ela não a notasse.— Que bom que ela me quer no jantar.
— Na verdade foi ideia do meu pai.— ouvi a risada doce de Magali, mas nem aquele som maravilhoso foi o bastente para me acalmar. Aquela hora chegaria, cedo ou mais tarde, mas de preferência eu preferia que fosse tarde. Bem tarde...— Ele quer conversar com você.
— Ah, claro...— minha voz falhou um pouco.— Ele vai me matar, me picotar em vários pedacinhos e me servir ao molho no jantar. Agora tudo faz sentido...
— Não seja bobo.— Magali deu um leve tapinha em meu braço.— Tá bom, talvez tenha uma leve chance disso acontecer...
— Você tá me assustando.— falei em tom de brincadeira, mas estava mesmo falando sério. Só de pensar em ficar a sós com meu sogro já me dava crise de ansiedade! De todo modo, seguiria firme e forte.
O resto da tarde foi maravilhoso. Escolhemos uma árvore grande e montamos nosso piquenique ali mesmo. Depois de comer um pouco, fomos ao treinamento intensivo com Sofia. Magali ficou a uns cinco metros de distância da gente, enquanto eu permanecia atrás da minha irmã. Sua missão era bem simples; manter o equilíbrio e ir pedalando até a mais velha. Demorou até que desse certo. Ela bambeou bastante e custou fazê-la olhar para frente e não para a roda dianteira. Depois da vigésima sétima tentativa ela enfim conseguiu. Sofia ficou animada e queria ficar mais, porém o sol já começava a se pôr e eu tinha prometido para minha mãe que voltaríamos antes de escurecer. Quando chegamos em casa não pude deixar de ouvir um pedaço de uma conversa entre meus pais;
—... mas querida, em vinte anos de casados nós nunca deixamos de comemorar nosso aniversário de casamento!— era o meu pai quem dizia, parecia um pouco chateado.
— Eu sei querido, mas agora temos a Sofia e não podemos simplismente sair assim...— foi a vez da minha mãe. Não queria ficar ouvindo uma conversa particular dos dois, então tratei de os avisar que estávamos ali.
— Chegamos!— berrei.
Segundos depois eles apontaram na sala de estar e Sofia foi correndo como um furacão para os braços deles.
— Iai, como foi?— Meu pai a questionou.
— Muito legal!— respondeu empolgada.— Podemos ir de novo?
A pergunta não foi direcionada para mim, foi para Magali. As duas tinham se dado muito bem, o que não era surpresa alguma. O ser que ousava não gostar daquela garota já estava morto por dentro.
— É claro princesa.— Magali sorriu gentilmente ao tempo em que eu não conseguia parar de pensar no pouco da conversa que havia escutado. Meus pais não estavam brigando, mas pareciam claramente discordar de algo.
— Tá tudo bem?— encarei os dois, que responderam de imediato um "sim" partido da minha mãe e um "não" do meu pai.
— Queria levar sua mãe para jantar no nosso restaurante favorito, por conta da data especial, mas ela não quer sair e deixar a Sofia em casa.— meu pai acabou revelando, mesmo com o olhar reprovador da esposa.
— Por que não?— questionei.— Eu já disse mãe, dou conta de cuidar dela.
— Sei disso querido.— minha mãe ajeitou o lenço florido nos cabelos cacheados.— Só acho que é muita responsabilidade para uma pesssoa só ter que cuidar de uma criança pequena.
— Qual é, do jeito que fala até parece que eu ajudaria a Sofia a sei lá... colocar fogo na casa.— me senti deveras ofendido.
— Querido, antes de sair para seu treino você ficou ensinando ela a jogar bola dentro da sala e quebrou o vaso que a sua vó me deu... isso porque eu estava por perto, imagina longe?— ela balançou a cabeça em um não bem firme.— Não posso deixar vocês dois sozinhos. Podemos sair no nosso próximo aniversário.
— Que tal se eu ficar e cuidar dos dois?— Magali ofereceu, e me surpreendi com sua boa vontade.— Assim podem aproveitar a noite.
— Isso seria ótimo!— meu pai não conseguiu esconder seu entusiasmo.— Meu amor, você sempre diz que a Magali é a mais responsável dos jovens que conhece, ela com toda certeza não deixaria nossos filhos aprontarem!
— Hey!— protestei.— Eu sou o mais velho aqui, porque vão deixar ela no comando?
— Não queremos incomodar.— minha mãe ditou, ignorando minhas claras reclamações.
— Não é incômodo algum.— Magali parecia decidida e meu pai mais ainda.
— Viu?— ele estava se esforçando para convencer minha mãe.— Vamos lá querida! É um dia especial!
Minha mãe relutou, perguntou mais umas dez vezes se ela tinha mesmo certeza daquilo e quando se deu por convencida, enfim aceitou. Magali ainda lhe ajudou a se arrumar, o que era realmente animador. Nada era mais gratificante que ver as duas mulheres da sua vida se dando tão bem.
— Você tem certeza disso?— Dona Lurdes perguntou uma última vez, antes de atravessar a porta.
— Relaxa mãe, Sofi e eu estamos em boas mãos.— empurrei os dois para fora de casa e respirei aliviado quando enfim vi o carro sair da garagem. Fui para a cozinha, peguei o balde de pipoca que havia feito e desci para o meu refúgio. Magali e Sofia já estavam lá embaixo, escolhendo com muita seriedade quais desenhos veríamos pelas próximas horas.
— Ok. Acho que tá tudo aqui.— deixei o balde sobre a mesinha de centro e apaguei as luzes do cômodo.— Pipoca check, refrigerante e chocolate check, filme de princesa? Check.
Sentei entre as duas e colocamos o filme para tocar. Na metade dele Sofia já havia dormido. Acho que gastamos toda a energia da coitada ensinado ela a andar de bike. Com cuidado me levantei e a peguei no colo, lhe levando para o seu quarto com muito cuidado. Quando voltei Magali permanecia sentada, encarando a tela do seu celular com uma expressão não muito boa.
— Tá tudo bem?— perguntei, e ela fez que sim com a cabeça, desligando o aparelho e o colocando sobre a mesa.
— Estou.— esboçou um sorriso pequeno.— E você?
Não respondi, pelo menos não com palavras. Sentei ao seu lado e a puxei para um beijo.
Sentir seus lábios nos meus sem nenhum tipo de temor era meu mais novo vício e ter passado todo o dia sem poder fazer aquilo estava me deixando em completa agonia. Ela sorriu sobre minha boca, o que só me deu mais motivos para querer continuar lhe beijando, mas não pude. Minha mente tinha voltado a se tornar uma bagunça e não consegui me concentrar. Me afastei dela e admirei seu rosto angelical.
Não era justo eu esconder aquilo dela.
— Você disse que queria que fôssemos honestos um com o outro, né?— murmurei sério, e ela me fitou. Pareceu um pouco confusa com minha brusca mudança de atitude, mas seguiu em frente.
— Disse.— murmurou de volta, consertando a postura e me dando abertura para prosseguir;
— Aconteceu uma coisa hoje no treino. O cara que patrocina nosso time conhece um contato importante e bom, esse contato foi na nossa última competição e gostou de mim. Disse que tenho potencial para conseguir uma bolsa de atletismo, até mesmo competir profissionalmente.
Eu não pausei uma vez sequer. Cuspi tudo de uma vez para que não precisasse repetir.
— Isso é incrível!— Magali parecia genuinamente feliz, embora ainda estivesse processando tudo. Passou os braços por meu pescoço e me puxou num abraço reconfortante. Queria ficar ali para sempre, mas precisava terminar de contar o resto da história que ela com certeza não iria gostar.
— O cara é um babaca, só quer que eu aceite para benefício próprio. Disse que se eu não for não vai mais patrocinar o nosso time...— tentei controlar a raiva que tinha acumulado por aquele homem.— Sei que é uma oportunidade única e que provavelmente nunca mais vou ter, mas não posso aceitar...
— Por que não?— ela se afastou e vi sua testa franzir em dúvida.
— Eu teria que me mudar para a capital.— estava jogando as informações rápido demais, mas era a intenção. Quanto antes aquele assunto acabasse, melhor.
— Woh.— ela fez uma careta de desgosto.— Achei que teríamos mais tempo juntos antes de precisarmos ter essa conversa...
— Eu não aceitei.— deixei bem claro.— E nem vou. Meus pais estão aqui, minha irmã, meus amigos, meu time, e você é claro.
— Talvez devesse reconsiderar.— ela me lançou um olhar compreensivo e não entendi o porquê.— Você ama parkour, dá para ver em seus olhos e receber essa bolsa pode ser tudo o que você precisa para alcançar seus objetivos.
— A capital fica a mais de cinco horas daqui.— refresquei sua memória caso ela tivesse esquecido.
— Podemos nos ver nos finais de semana.— sugeriu, como se fôssemos apenas morar em bairros separados e não em cidade diferentes, a quilômetros de distância um do outro...
— Por que tá tão de boa com isso?— poderia imaginar que Magali estava apenas sendo compreensiva comigo, mas ainda sim não conseguia deixar de sentir uma pontada forte de ciúmes.— Quando o Quim foi estudar fora você ficou desolada com a notícia.
— Não fiquei chateada porque ele ia embora daqui meu lindo.— ela levantou a mão e acariciou meu rosto. Um gesto simples que me fez desmontar por inteiro.— Fiquei chateada porque ele escondeu isso de mim. Essa é a grande diferença. Você está sendo honesto comigo.
Não soube o que dizer. Aquela garota era incrível e tudo o que eu poderia pensar no momento era em como Quim foi burro em não ter lhe dado valor. O cara simplismete descartou por insegurança um diamante e eu não sabia como tinha sido tão sortudo em poder encontrá-la.
— Eu não quero estragar tudo.— me joguei em seu colo e aproveitei o cafuné que ela ofereceu.— Não agora que finalmente estamos juntos!
— Não vai.— afirmou, com convicção. Parou de passar os dedos sobre meus cabelos cacheados e ouvi sua respiração pesar; — Olha, mesmo que não aceite a proposta, ainda tem que ter em mente que eu vou prestar vestibular para várias faculdades, e não tenho controle de qual vai me oferecer a melhor bolsa. Pode ser aqui, mas também pode ser para outra cidade. Então no fim, sempre vai existir a possibilidade de um de nós dois ir embora, entende?
Eu não tinha parado para pensar naquilo.
Sentei novamente no sofá e a fitei.
— A vida adulta é uma merda.
— É sim, mas vamos passar por ela juntos. É o que importa, né?— riu, e fiquei tentado em lhe seguir.— Apenas pense melhor na possibilidade. Independente da sua escolha, eu vou te apoiar.
— Acho que você não é daqui.— ri sozinho e ela fez uma expressão de quem não entendeu absolutamente nada.— Você é perfeita demais para esse mundo.
Não lhe dei oportunidade de responder. Voltei a beijar seus lábios um pouco menos tenso que antes. O beijo teria durado mais que meros segundos, se não fosse por um pequeno contra tempo.
— Não consigo dormir.— a voz manhosa de Sofia soou pelo cômodo escuro e tivemos que nos afastar. Podia jurar que ela só acordaria na manhã seguinte, mas pelo jeito seu sono era leve feito uma pluma.
— Nesse caso acho que precisamos de um novo filme de princesa e mais pipoca.— Magali sugeriu, a chamando para o sofá enquanto eu entendia o recado. Peguei o balde de pipoca vazio e comecei a subir as escada para fazer mais. Antes de perder elas de vista, olhei para baixo e admirei o momento. Minha irmã mais nova se acochegava no colo da minha namorada, que tratava de colocar um novo filme.
Dei um sorriso genuíno.
As coisas não poderiam da errado naquele ponto.
***
Ajustei a gravata no pescoço com um desconforto quase irritante.
Nunca conseguiria me acostumar com aquele tipo de formalidade, mas a ocasião exigia e eu estava determinado a dar o melhor de mim. O calor era insuportável, e o gel no meu cabelo estava começando a ficar mais pegajoso do que elegante. Apertei com mais força o buquê de flores na minha mão, com medo de que o suor lhe fizesse escorregar para longe. Meu coração estava acelerado, e a ansiedade fazia meu estômago se revirar. Por um minuto inteiro quase desisti de tocar a campainha, mas respirei fundo, e retirando coragem do fundo do peito, apertei o pequeno botão de bronze.
O som da campainha ecoou suavemente pelo corredor, e a porta se abriu segundos depois com um rangido baixo. Uma Magali apareceu à minha frente, numa visão que parecia mais uma obra de arte. Ela vestia um vestido casual da cor creme, com mangas finas que caíam delicadamente sobre seus ombros. Seus cabelos negros estavam presos em um coque despojado, e a franja longa dividida ao meio caía em ondas suaves. Mesmo sem esforço, ela irradiava uma beleza única que me deixou momentaneamente sem palavras.
— Oi.— cumprimentou, o sorriso iluminando todo o ambiente. Mas logo seu olhar se desviou para minha roupa e uma expressão de confusão se formou ali.
Sentindo-me desajeitado, olhei para minhas próprias vestimentas. Desde que Magali me avisou sobre o jantar com seus pais, uma ansiedade crescente me consumiu. Decidi me vestir da maneira mais formal possível para impressioná-los, apesar de não ser meu estilo habitual. Em vez das minhas roupas esportivas e descontraídas, optei por uma camisa social vinho, uma calça escura e claro, uma gravata preta — que eu havia "tomado emprestado" do guarda-roupa do meu pai.
— Ah não, você não gostou?— a vergonha tomou conta de mim, minhas bochechas corando. Meu pai estava ocupado, então passei uma eternidade assistindo vídeos no youtube para aprender como amarrar uma gravata e mais vinte minutos só tentando manter meus cachos sob controle. Agora, tudo parecia inútil.
— Você está lindo.— ela riu, um som leve e melodioso que me ajudou a relaxar um pouco.— Só não parece muito com o seu estilo. Nunca te vi de camisa social, muito menos com uma gravata.
— Seu pai usa.— tentei parecer casual, dando de ombros.— Sempre vejo ele com essas roupas.
Magali sorriu ainda mais, como se estivesse se divertindo com a minha tentativa um tanto quanto desajeitada de impressionar meus sogros. Ela desceu os degraus que nos separavam e com um gesto carinhoso, permitiu que seus lábios encontrassem os meus em um beijo breve, mas cheio de ternura.
— Você não precisa se esforçar tanto para impressionar meu pai, sabia?— sussurrou, com o rosto tão próximo que podia sentir seu calor.
— É claro que preciso.— envolvi sua cintura com minha mão livre e prolonguei o beijo, o contato parecendo eternizar o momento.— E se ele achar que não sou bom o suficiente para você?
— Isso não vai acontecer.— ela afirmou, o tom firme contra meus lábios. Eu queria continuar o beijo, mas fomos interrompidos pela senhora Fernandes, que abriu a porta completamente. Com medo da presença do meu futuro sogro, retirei minha mão de sua cintura e endireitei a postura.
— Oi querido!— saudou a mãe de Magali com um sorriso acolhedor que parecia iluminar toda a entrada da casa.— Entrem logo!
Sem pensar duas vezes, obedecemos e entramos na casa. A senhora Fernandes me guiou para a sala de estar, e antes que me esquecesse, entreguei a ela o buquê de flores que havia escolhido com tanto cuidado.
— Para a senhora.
— Que atencioso!— a mulher pegou as flores com cuidado. — Muito obrigada, mas nada de senhora, se lembra?
Senti meu rosto arder ainda mais e tratei de me retratar rapidamente.
— Me desculpe! Esqueci...
— Estou brincando querido!— a voz suave da senhora Fernandes preencheu o cômodo , ao passo em que ela cheirava as flores com um sorriso satisfeito, seus dedos deslizando pelas pétalas como se estivesse acariciando algo precioso.— Vou colocar essas flores em um vaso. Volto em um minuto.
Quando ela saiu, tirei um tempo para observar tudo. O ambiente era acolhedor, mas não conseguia acalmar meus nervos. As paredes, decoradas com fotos de família e quadros de paisagens, pareciam testemunhas silenciosas de toda a minha ansiedade. Enquanto esperávamos o retorno dela, a porta da sala abriu-se num rangido, revelando uma figura imponente.
Meu sogro adentrou o lugar com passos firmes e o ar ao redor dele se tornou pesado. Seu cabelo cor de mel, impecavelmente penteado para trás, combinava com a barba meticulosamente aparada. Ele vestia um colete de tricô que, de alguma forma, lhe tornava ainda mais intimidador.
— Cássio.— Ele estendeu a mão, a voz tão formal quanto sua postura rígida.
— S-Senhor.— apertei sua mão com força, me amaldiçoando mentalmente por não ter secado o suor das palmas antes. O toque seco dele contrastava com a minha mão úmida, o que era horrível. Quando nos afastamos, seus olhos percorreram meu corpo como se estivesse me avaliando, cada detalhe da minha roupa e expressão sendo cuidadosamente analisado. Senti cada segundo daquilo como uma eternidade.
A tensão foi finalmente quebrada quando a senhora Fernandes retornou, carregando consigo uma energia bem mais leve.
— Prontinho! Já vou servir o jantar, vocês podem se sentar à mesa.— ela sorriu animada, enquanto nós obedecíamos. Fomos até a sala de jantar, onde o Sr. Carlito ocupou seu lugar à cabeceira da mesa, exalando sua autoridade inquestionável. Eu me sentei ao lado de Magali, tentando encontrar algum conforto na proximidade dela.
A mesa estava arrumada com uma perfeição quase cerimonial. As luzes quentes refletiam nos pratos brancos, e o cheiro da lasanha recém-assada tomou conta do ar. Quando a senhora Fernandes colocou a travessa no centro da mesa, ela nos serviu com cuidado, e não consegui deixar de notar o olhar esperançoso que lançou em minha direção quando dei a primeira garfada.
— Está delicioso!— elogiei, esforçando-me para soar sincero, e fui recompensado com um sorriso radiante que iluminou o rosto dela.
O jantar seguiu tranquilo, com a conversa fluindo entre pequenos elogios à comida e comentários ocasionais sobre o dia. Mas, como se sentisse que o momento de calmaria precisava acabar, meu sogro finalmente decidiu começar seu terrível interrogatório;
— Então Cássio, o que pretende fazer depois do ensino médio?— sua voz cortou o ar com uma precisão cirúrgica. De todas as perguntas que poderia fazer, claro que ele iria escolher a mais difícil. Aquela que não me deixava dormir em paz.— Quais são seus planos para o futuro?
Senti o peso dos olhares ao redor da mesa e o sangue pareceu se retirar do meu rosto. Parecia o fim do mundo, mas tentei manter a compostura. Respirei fundo e me forcei a lembrar de todas as horas que passei ensaiando mentalmente aquela conversa.
— Ah, eu...— minha voz falhou por um segundo, mas logo a controlei. — Eu pretendo expandir o negócio do meu pai.— tentei soar confiante, ainda que a resposta fosse uma invenção.— Abrir uma filial fora do bairro... conquistar mais clientela...
Magali me olhou, claramente confusa, franzindo a testa como se tentasse decifrar algo que não fazia sentido. Já o Sr. Carlito ficou em silêncio por um momento, digerindo minhas palavras com a calma de quem estava pesando uma decisão importante.
— Isso é interessante.— ele finalmente falou, parecendo satisfeito com a resposta.— Sempre digo ao Antenor que ele deveria mudar a oficina para um lugar maior. Ele teria bastante sucesso.
— Eu vivo dizendo isso a ele!— menti sem nem piscar.
A verdade era que eu nunca havia demonstrado interesse na oficina, muito menos em administrá-la. Mas naquele momento, a mentira era a única saída. E parecia ter funcionado, já que o semblante do Sr. Carlito relaxou um pouco após a minha afirmação. Ele até esboçou um ou dois sorrisos enquanto discutíamos sobre modelos antigos de carros — um conhecimento sagrado que adquiri com o meu precioso pai.
O jantar continuou e após devorarmos o pudim impecável que a senhora Fernandes havia preparado, os mais velhos se despediram de mim cordialmente. Magali por sua vez se ofereceu para me acompanhar até a porta.
A noite estava fresca, e a brisa suave acariciava a varanda da casa, onde as luzes amareladas lançavam sombras dançantes. Magali se acomodou no parapeito de madeira com aquele olhar perspicaz, as sobrancelhas finas arqueadas, esperando pela resposta da pergunta que sequer tinha feito ainda.
— Então, que história é essa de administrar a oficina?— começou, a voz carregada de curiosidade e um toque de desconfiança. Seus olhos brilhavam sob a luz fraca, refletindo o tipo de preocupação que só alguém que te conhecia bem poderia ter.
Eu forcei um sorriso, tentando suavizar a situação. Sabia que ela não seria enganada tão facilmente.
— Seu pai adorou a ideia.— arrisquei, tentando desviar o foco da conversa com uma gracinha, mas minha namorada com seus olhos afiados e aquele jeitinho de quem via além das palavras, me encarou seria. Não precisava dizer nada para que eu soubesse que ela não comprava minha história.
— Não é verdade.— rebateu, ajeitando-se no parapeito, de modo que agora ficava na altura exata do meu rosto. Mesmo sendo mais baixa, ali nossos olhares se encontravam em pé de igualdade.— Você não devia ter mentido. Isso não é o que você quer, e a gente sabe disso.
Suspirei e me aproximei, envolvendo sua cintura com os braços. O toque dela era um alívio, uma espécie de porto seguro, mesmo quando a conversa ficava mais difícil. Seus braços repousaram sobre minhas costas, e o simples calor de seu corpo me fez sentir um pouco mais calmo.
— E o que eu diria? Que não faço ideia do que vou fazer da vida?— murmurei, sentindo o peso da responsabilidade me sufocar mais uma vez.— Ele ia me achar um inútil.
Magali franziu o cenho, seu olhar firme e decidido.
— Não, não ia.— respondeu com convicção, e muito embora suas palavras fossem sinceras, elas não conseguiram varrer as minhas inseguranças.
— Bom, talvez eu acabe fazendo isso mesmo, então nem foi uma mentira completa.— brinquei, mesmo sabendo que o assunto era sério. Acariciei a franja que insistia em cair sobre seus olhos, tentando afastá-la para trás da orelha. O gesto era quase automático, sem sentido, já que aquela mecha sempre voltava, mas me dava uma desculpa para tocá-la.
Ela sorriu suavemente, e eu sou e de imediato que aquele era o seu jeito de me dizer que tudo ficaria bem.
— Você se saiu bem hoje, sabe?— confidenciou, olhando-me com carinho.— Mas sério, você não precisava de tanto esforço! Minha mãe já te adora, e meu pai... bom, uma hora ele vai acabar gostando de você também.
— Eu prefiro garantir.— retruquei, com um tom brincalhão, ao que ela apenas revirou os olhos. Antes que pudesse retrucar, inclinei-me para frente e capturei seus lábios em um beijo suave, tentando abafar qualquer argumento que ela pudesse ter, mas o beijo foi interrompido pelo desconforto crescente em meu pescoço. A gravata apertada parecia me sufocar e o colarinho engomado só piorava a situação. Eu havia suportado o incômodo durante todo o jantar, mas agora, com a tensão diminuindo, parecia impossível ignorar.
— Tá tudo bem?— Magali perguntou atentamente, enquanto eu tentava afrouxar a gravata com os dedos.
— Tá...— respondi com um suspiro preso, ainda lutando contra o tecido apertado.— É essa gravata idiota, e o colarinho... tá apertado pra caramba.
Magali riu, aquele riso suave e caloroso que parecia querer dizer um; "eu avisei!" Ela afastou as mãos do meu rosto e com a destreza de quem já me conhecia bem, desatou a gravata com facilidade, desabotoando o colarinho logo em seguida.
— Melhor?— perguntou com um sorriso satisfeito e eu apenas assenti, aliviado. Finalmente, conseguia respirar fundo, sentindo o ar fresco encher meus pulmões.
A brisa da noite parecia aliviar o calor que subia pela minha pele, enquanto Magali se aproximava com aquele sorriso de canto, que sempre me desarmava. Aproveitando o momento, ela passou as mãos pelos meus cachos endurecidos pelo gel e com um toque despretensioso, os bagunçou, como se quisesse desfazer a última camada de controle que eu insistia em manter.
— Agora sim está mais a sua cara.— comrntou, com uma risada divertida.
— Bagunçado?— arqueei uma sobrancelha, fingindo indignação, mas já sabendo que adorava quando ela fazia isso.
— Estiloso.— ela riu novamente e sem aviso, puxou a gravata frouxa que ainda pendia em meu pescoço, me puxando para mais perto.— Gosto de você assim.
O brilho nos olhos dela, a proximidade de nossos rostos e a maneira como ela mexia com minha cabeça me deixavam vulnerável. Engoli em seco e cochichei contra sua boca, sentindo o calor de sua respiração;
— E eu gosto de você de todos os jeitos possíveis.
A tentação de ultrapassar o limite e beijá-la ali, com tudo o que eu sentia, era quase irresistível, mas a porta à nossa frente, o corredor que levava até a sala de estar e a lembrança do meu sogro me observando me mantinham no controle. A última coisa que eu queria era que ele aparecesse e me pegasse em flagrante, comprometendo o que tínhamos construído.
Sem perder a oportunidade, Magali me provocou;
— Até se eu colocasse uma camisa do Palmeiras?
Me afastei um pouco, fingindo uma expressão de horror e incredulidade.
— Você não ousaria.— A ameaça na minha voz era falsa, mas genuína era a risada que ela soltou logo em seguida, cristalina como sempre.
— Quer saber de uma coisa?— Aproximei-me de novo, o rosto a centímetros do dela.— Como minha namorada, você é oficialmente obrigada a virar corinthiana. Sem discussão.
Ela riu de novo, os olhos brilhando como se aquilo fosse a coisa mais fácil do mundo.
— Tudo bem.— disse, puxando-me para um selinho suave. — Acho que posso fazer esse sacrifício.
Aproveitei o contato para aprofundar o beijo. Dessa vez, sem hesitar. Nossos lábios se encontraram de verdade, e o mundo ao redor pareceu desaparecer. Senti o calor da sua respiração e o gosto doce da sua boca, e o tempo simplesmente parou. Os minutos se misturaram, como se o universo tivesse nos dado uma pausa só para nós dois, mas a necessidade de respirar acabou por nos forçar a separar.
Então, a voz grave do meu sogro ecoou pela casa, rompendo nosso pequeno universo.
— Magali?
Afastei-me dela na velocidade da luz, o coração disparado, como se tivesse levado um susto.
— Já estou indo.— ela respondeu com calma, enquanto um sorriso dançava em seus lábios, agora levemente vermelhos do beijo. A vontade de voltar para aquele sorriso era imensa, mas eu me contive. Já estava tarde, e eu sabia que cruzar a linha poderia significar mais do que uma simples bronca.
Ela desceu da varanda com a leveza de quem não tinha pressa, e eu aproveitei para envolvê-la em um último abraço, longo e silencioso, tentando gravar aquele momento na memória. Quando finalmente nos despedimos, fiz um esforço para não olhar para trás, sabendo que se fizesse isso, provavelmente não iria querer ir embora.
Acenei de longe enquanto me afastava pela rua silenciosa, o coração ainda acelerado, pulsando com uma felicidade que nunca antes havia experimentado.
Eu nunca havia me sentido tão feliz em toda a minha vida.
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