Tudo bem, acalme-se Shion! Repetia o médico para si mesmo. Fizera todas as visitas agendadas com os pacientes que moravam fora do perímetro urbano de Londres. Tudo fora dentro dos padrões, exceto que desde o instante em que soubera de Dohko, passava as noites insone, preocupado com a situação daquele que amava.
Não adianta, não conseguirei dormir até reencontrá-lo! E quando o fizer como será entre nós? Ele se perguntou rolando da cama e vestindo um robe de seda escura.
A noite estava fria e calma como ele apreciava. Seu semblante permanecia sereno e obstinado. No entanto, sua inquietude já atingia níveis insuportáveis e, aos primeiros raios do amanhecer decidira pegar uma carruagem e rumar Village West...
Jamais pensei em retornar dessa forma. Sussurrou junto ao vento frio que adentrava a janela de seu quarto, enquanto sentia o corpo estremecer. Nuvens pesadas continuavam a povoar o céu e, mesmo em meio ao negror da noite, elas se destacavam com a luminosidade ocasional dos relâmpagos.
Um gato gordo e preto se encontrava no parapeito da janela e parecia alheio ao ar frio que começava a balançar as cortinas de voil. Shion pegou-o no colo e deixou-o pular para o chão, enquanto fechava a janela.
– Então, Barnaby... O que acha que vai acontecer quando eu reencontrar Dohko? – perguntou ao gato que olhou-o de forma indiferente e começou a brincar com a cortina.
Mais uma vez, Shion pegou o animal no colo para que não rasgasse, novamente, a cortina e desse trabalho para a senhora Hilary que vivia consertando o que Barnaby rasgava ou desfiava com suas garras afiadas. Fiz até esse rato de brinquedo para que ele pare com isso! Dizia a velha senhora mostrando um rato feito de pano.
– Venha, vá brincar com seu rato. – disse Shion soltando o gato no chão e vendo-o saltar e correr tentando pegar uma mariposa que entrara pela janela.
O médico sorriu, pensando em como devia ser fácil ser um gato. Brincar, correr, dormir, comer... Nada de preocupações quanto ao amor, profissão, títulos, vida social. Um gato era livre, assim como ele pensava que era, antes de conhecer aquele jovem e saber sobre a situação de Dohko, seu primeiro e único amor.
Naquele instante, soubera que ainda estava preso ao passado doloroso e, por mais que tivesse viajado, conhecido pessoas e exercido a medicina em tempo integral, seu coração jamais pertencera a nenhum outro e seu corpo se acostumara a substituir suas necessidades pelo trabalho quase sacerdotal que exercia para salvar vidas...
Com um suspiro, Shion sentou-se à escrivaninha e escreveu uma carta que mandaria entregar ao jovem Milo. Nela, avisava-o que já estava se encaminhando para Village West pela manhã e pedia desculpas por informar-lhe tudo por carta, mas que, devido à própria situação, sua visita se fazia necessária o mais rápido possível.
Bem, a sorte está lançada! Disse a si mesmo enquanto vertia um pouco de cera derretida para selar a carta. Depois, voltou à cama e fechou os olhos mesmo sabendo que não conseguiria dormir. Barnaby olhou-o, no exato momento em que o médico puxava as cobertas e disparou na sua direção, subindo na cama e embrenhando-se por baixo dos lençóis. Shion sorriu e acariciou a cabeça do gato que se aninhava junto a si. O calor do corpo do animal foi relaxando-o e, minutos depois, mesmo sem conseguir dormir, o médico sentiu a angústia arrefecer...
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Camus esperava no hall de entrada da Royal, sentado em uma confortável cadeira, enquanto Milo tirava suas medidas para os ternos que mandaria fazer. A alfaiataria era modesta, mas a melhor e mais rápida na entrega de confecções, em toda Londres. Quem visse o alfaiate, jamais apostaria que um homem daquele tamanho e com aquelas mãos enormes seria capaz de tal refinamento. Entretanto, a fama daquele estrangeiro já correra por todos os lugares e permanecia firme e forte na corte londrina.
– Creio que este corte e este tecido o favorecem, senhor Milo. – disse Aldebaran entregando um sobretudo já pronto para que o jovem tivesse uma ideia de como ficaria naquele tipo de roupa.
Milo olhou-se no espelho e concordou. Tinha gostado do alfaiate, mesmo que em um primeiro momento tenha deixado explícito em seu rosto a surpresa por ver um homem tão grande e viril com talento para a alta costura. No entanto, ao contrário de ficar constrangido com tal observação, Aldebaran dera uma sonora gargalhada que, simplesmente impediu qualquer tipo de mal-estar entre eles.
– Vamos chamar o duque? – perguntou o alfaiate.
– Sim, quero ver o que ele acha. – respondeu Milo.
Quando Camus entrou na pequena sala e viu Milo vestindo um sobretudo negro, tendo os cabelos loiros caindo,ondulados, sobre o tecido encorpado, sua respiração estancou.
– Então, o que acha? – perguntou Milo.
– Está muito elegante, senhor Milo. – disse Camus com um sorriso discreto.
Milo sorriu e deu a clássica virada de corpo, mostrando o caimento do tecido e se olhando, novamente, no espelho amplo e com moldura dourada.
– É estranho, mas... acho que posso sobreviver me vestindo desse jeito. – disse Milo.
Aldebaran sorriu e acertou os detalhes das provas finais e da entrega. O alfaiate tinha um método inovador que era o “segredo” do seu sucesso. Ele já tinha tecidos, previamente cortados, com as medidas aproximadas do tipo físico da grande maioria dos cavalheiros. Havia dividido essas medidas em três tipos: o pequeno, o médio e o grande. Assim, escolhia os melhores tecidos, cortava-os e só precisava ajustá-los às medidas tiradas do cliente. Isso o fazia ganhar em tempo e diminuir bastante os prazos de entrega.
– Amanhã mesmo, mando entregar dois ternos e até o final de semana, o senhor Milo terá a roupa de gala para o baile. – disse Aldebaran.
– Obrigado. – disse Camus apertando a mão firme do alfaiate.
Milo também se despediu e logo, ele e Camus retomavam o caminho para a casa do duque indo em direção à carruagem que já os esperava, quando viram uma pequena aglomeração. A cena era algo relacionado a um homem que cambaleava e um cavalo que parecia assustado.
Ao chegar bem perto, tanto Milo quanto Camus observaram que o animal sangrava pela boca e tinha uma das patas dianteiras muito ferida.Todo o corpo dele tremia, mas mesmo assim ele ainda tentava escoicear.
– Mas que diabos? – falou Milo com uma expressão de incredulidade ao ver que o suposto dono do animal estava bêbado e ainda continuava fustigá-lo com um chicote.
Antes que Camus ou qualquer outro dissesse algo, Milo adiantou-se e arrancou o chicote das mãos do homem. Com um movimento rápido ele inverteu o chicote e com o cabo desfechou um golpe no estômago do sujeito que cambaleou para trás e caiu de costas.
– S-Seu... ordinário! C-Como... o-ousa...me...tocar! – gritou o homem.
Embriagado, o homem caído não conseguia levantar-se o que arrancou risos e exclamações efusivas da pequena multidão. Todos aplaudiram a eficiência com que o valente jovem imobilizara o desagradável lorde que era conhecido por sua crueldade com os animais e criados.
– Esse cavalo precisa de cuidados. – disse Milo olhando para Camus que estava um tanto atônito.
– Senhor Milo... O animal não lhe pertence e...
– E o caralho! Não vou deixar esse idiota matar o pobre animal. Vê como ele está ferido? Não sei o que aconteceu, mas se o deixarmos com ele, irão sacrificá-lo!
Camus estava tenso e surpreso com a atitude intempestiva de Milo, porém sabia que ele tinha razão. Entretanto, apossar-se do animal de um nobre após agredi-lo fisicamente, seria um sério problema se ele não intervisse.
– Leve o animal para minha casa antes que as autoridades apareçam para prendê-lo por agressão. Eu vou encaminhar as coisas por aqui. – disse Camus.
– Não vou deixá-lo responsável por tudo. – retrucou Milo.
– Por favor, senhor Milo... Faça o que estou pedindo, sim? Não torne as coisas mais difíceis. Agora vá. – falou o duque mantendo a voz baixa e fria.
O jovem fitou o duque bem dentro dos olhos e, mesmo querendo revidar, achou por bem obedecer.
– Está bem. – respondeu Milo, por fim, e foi até o cavalo que já demonstrava sinais de cansaço.
O cavalo estava exausto e nervoso. Milo se aproximou com toda a cautela e falava de forma baixa, porém firme.
– Calma, rapaz... Calma... Não vou deixar ninguém mais machucar você.
Relinchando baixinho e mexendo a cabeça, o animal foi se acalmando até Milo tocá-lo na crina espessa e sussurrar-lhe palavras de encorajamento. Segundos depois, ele conduzia o cavalo, pacientemente, em direção aos currais da propriedade do duque.
Quando Milo deixou o local, Camus foi até o lorde que havia sido levantado por alguém da multidão.
– Eu... Eu quero que prendam... aquele rapaz! Um ultraje, isso sim... Chamem a polícia! – dizia ele passando um lenço na testa molhada de suor.
Mantendo a fachada séria, Camus se aproximou dele e o encarou.
– Na verdade, acho mais sensato que encerremos esse caso, lorde Standiford. Está embriagado e há testemunhas dos seus maus tratos ao animal que conduzia. Peço desculpas pela agressão de Milo, porém o senhor estava agindo de forma irracional e atraiu o mesmo para si. O jovem perdeu a cabeça, algo natural para a sua idade. No entanto, o senhor já é um homem maduro e plenamente consciente de suas atitudes. Atitudes essas, completamente, inadequadas para um nobre.
– Olhe aqui... Eu sei quem você é... Seu duquesinho de merda! Seu avô perdeu tudo jogando e se refestelando com uma vadia! Como ousa me afrontar e ainda dar razão àquele... Àquele sujeitinho?!
– Continue cuspindo insultos e eu mesmo chamo a polícia para acusá-lo por difamar minha família e meu pupilo. Creia-me, Standiford... sua reputação não está acima da minha e de ninguém aqui! Encerre este caso ou eu mesmo me encarrego de arruiná-lo ainda mais do que já fez por si mesmo. – disse Camus entre dentes.
Olhando em volta e não recebendo o apoio que esperava, o lorde grunhiu um palavrão baixo e saiu. Camus suspirou e olhou em volta. As pessoas que ainda permaneciam, pareciam olhá-lo com admiração e... respeito.
– Pode ir tranquilo, Sua Graça! Se alguém perguntar nós testemunharemos ao seu favor e também do jovem que impediu aquele homem terrível. Já era hora de alguém ter coragem e dar-lhe uma lição! – disse um cavalariço.
– Obrigado. – respondeu Camus.
– Dando espetáculos em público, meu caro Camus?
O comentário irônico o fez virar-se depressa e deparar com um par de olhos verdes e divertidos. Elegantemente trajado, Aiolia estava recostado despreocupadamente a uma carruagem com um sorriso um tanto tenso no rosto.
– Ainda vou descobrir como faz isso, essa capacidade de estar em todos os lugares onde algo acontece. – disse Camus sem poder evitar um ligeiro sorriso.
– O que posso fazer se a ação me chama? Também gostaria de saber como consegue manter a fleuma e o distanciamento num momento como esse. Quando me aproximei do burburinho cheguei a tempo de ver Milo arrancando o chicote das mãos de Standiford e afundando-o naquela pança gorda dele! Bem, devo admitir que foi bem feito para aquele imbecil! E você, meu caro, fechou tudo com chave de ouro!
– Embora o sujeito seja um crápula, Milo se excedeu. Imagine se isso acabasse na polícia! Eu seria o responsável pelo escândalo de um de meus pupilos e Milo teria sérios problemas.
– Você fala como se fosse um ancião, Camus. Homem, você só tem 27 anos!
– Sou um homem adulto, Aiolia, plenamente inserido nesse universo social que nos cerca e nos exige. Milo tem 22, é ingênuo e tem um temperamento impulsivo, como ficou provado aqui, e isso pode colocá-lo em sérios apuros.
– Bem, ele tem você para protegê-lo e ensiná-lo. E... Camus? São apenas cinco anos de diferença entre você e ele. Não queira colocar barreiras para tentar escapar da felicidade.
Camus franziu o cenho e fitou Aiolia com um brilho perigoso nos olhos.
– Gostaria que parasse com isso, Aiolia. Milo está sendo preparado para assumir um título, casar e viver uma vida normal. Eu jamais faria algo que o levasse a viver o contrário do que se propôs.
– E quem disse que ele quer tudo isso? A quem está tentando enganar, meu amigo? Existe uma aura selvagem entre vocês... Raios e trovões parecem cercá-los e eu bem sei onde isso vai parar... Mas, se quer continuar negando, boa sorte! Minha carruagem está logo mais adiante, quer uma carona?
Camus ficou aturdido com as palavras do amigo, mas logo se recobrou. Quando tornou a falar, sua voz soou glacial:
– Obrigado, mas minha carruagem está a minha espera.
– Ah, Camus... Não faça isso comigo! Olhar-me com essa frieza que, obstante esconde um enorme tesão recolhido, me deixa muito, mas muito triste! Afinal, sou seu melhor amigo! – disse Aiolia fazendo uma expressão contrita.
Mesmo sem querer, Camus teve que rir.
– Quem disse a você que é meu melhor amigo?
– E quem mais lhe diria a verdade na cara e suportaria esse seu olhar gélido sem cair morto e congelado?
Os dois riram e foram em direção à carruagem do conde Aiolia.
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Era início de tarde quando Valery recebeu o conde Jamian. Achava-se sentada à elegante escrivaninha no salão principal de sua mansão. A cabeça repousava numa das mãos, enquanto ela verificava um envelope selado. Tratava-se de um documento que agora lhe seria de grande poder de barganha. Ela o guardara para um momento especial e jamais esperava que tivesse de usá-lo tão apressadamente.
Havia anos que vivia aquele tipo de relacionamento, onde dividia seu marido com o conde Hades. Era tudo muito simples, já que o conde ainda não tinha encontrado uma amante que coubesse com perfeição em seus desejos...
Então surgira Pandora. Ela representava um perigo imediato e que deveria ser erradicado de forma exemplar. Até o seu surgimento, nenhuma outra se integrara ao triângulo erótico com tanta perfeição. Ela encantara Hades e Minos, também. Embora fosse muito jovem, possuía um talento genuíno para a perversão e cumpria sua função com prazer e não somente para agradar. Tinha que livrar-se dela!
– Então, o que quer? – perguntou o conde um tanto impaciente.
– Ora, mas que falta de educação, meu caro conde! Nem parece que somos parentes. – respondeu ela estendendo a mão na direção de Jamian.
Com uma expressão de enfado, Jamian depositou um beijo na mão oferecida e então encarou-a, novamente.
– Nunca fez questão desse parentesco. Por que agora?
– Preciso de um favorzinho seu. – disse ela num tom rouco e sedutor.
– Que favor? – perguntou o conde franzindo o cenho.
– Quero que convide o jovem pupilo do duque Camus para uma festa particular em sua mansão, antes do grande baile. Uma festa com muita bebida, jogatina e mulheres... Ah, e aquele tipo de rapaz, também!
– O que está pretendendo, Valery? Qual seu interesse nisso?
– Quero que arme tudo direitinho para que este jovem seja o mais novo e intenso escândalo na corte. E quero que você acabe com ele.
– Você enlouqueceu?
– Não, eu apenas vou torná-lo milionário, novamente! – disse ela mostrando o envelope. – Isso, meu caro primo, são todas as escrituras das propriedades que eu resgatei depois que você as perdeu no jogo. A casa de campo, a mansão em Liverpool. Até mesmo as joias da família... Comprei-as, novamente! Tudo isso voltará a ser seu se fizer o que estou pedindo.
– Me toma por um estúpido? Se eu prejudicar o rapaz, serei execrado por todos!
– Aí é que você se engana, meu caro. Quem vai pagar por isso é uma tal de Pandora, amante do conde Hades. Faça o que eu estou pedindo e deixe o restante comigo. Tenho meus interesses nessa história e vou defendê-los até a morte, se for preciso!
Jamian olhou para o envelope. Não lhe agradava fazer o que a prima pedia, mas... ali estava a chance de retomar o patrimônio perdido. Coçou o queixo e a cabeça. Depois franziu o cenho e sentiu a boca seca.
– Preciso de uma bebida.
Valery sorriu e tocou a sineta. Segundos mais tarde, um criado foi instruído a trazer uma garrafa de conhaque envelhecido.
– Está bem, mas não vou fazer nada que machuque o rapaz. – disse Jamian depois de sorver um gole generoso da bebida forte.
– Não me diga que está interessado... Ah, mas claro que está! Você sempre teve uma queda por rapazinhos e esse, segundo minhas informações é bem o seu estilo!
– Isso não é da sua conta! – respondeu Jamian, irritado.
Valery soltou uma gargalhada e ficou confiante. O primo era fraco, viciado em jogatina e estava endividado. A isca perfeita para um plano perfeito.
– Pode ficar tranquilo, meu caro. Um bom e grande escândalo, já será de bom tamanho. E pense, você poderá até se divertir um pouco com o loirinho.
Jamian dispensou a taça de conhaque e bebeu o restante no gargalo. Estava nervoso, mas quando a bebida desceu ardente por sua garganta, ele fechou os olhos e se viu cercado de tudo o que era seu. Um sorriso torto se fez em seus lábios molhados pelo conhaque e tudo pareceu menos feio do que era.
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Na cocheira, Milo já havia lavado o cavalo e agora, colocava uma atadura na perna do animal. Quando Camus chegou, viu-o falando como se estivesse conversando com uma pessoa.
– Pronto... Vai ficar tudo bem, amigão. Nunca mais vão ferir você, ouviu? Você não voltará para aquele escroto filho da puta.
– Nunca faça promessas as quais não possa cumprir, senhor Milo.
O jovem virou-se, a camisa de linho estava aberta revelando o peito forte. O tecido das calças moldado às coxas musculosas e o olhar dele era tão intenso que quase fez Camus esquecer a repreensão que viera fazer ao seu pupilo.
– Eu não vou devolver este cavalo para aquele ordinário! – disse Milo.
– A menos que o compre, ele ainda continua sendo propriedade do conde Standiford. – falou Camus, sério.
– Então eu compro!
– E por acaso, acha que ele o venderia ao senhor, de boa vontade, após ser humilhado e agredido publicamente?
– Se ele não o fizer eu termino de quebrar a cara nojenta dele! Aquele golpezinho com o chicote foi muito pouco para o que ele fez ao pobre animal.
– Senhor Milo...
– Estamos só nos dois aqui. Por que está sendo formal?
– Porque é assim que deve ser. O senhor não pode usar de violência para resolver os problemas que surgem. Sua atitude foi impensada e perigosa.
– Ah, tá! Eu devia deixar aquele ordinário maltratar o cavalo, enquanto pedia “por favor, pare com isso meu bom homem!” – disse Milo fazendo falsete.
– Existem várias formas de se impedir uma pessoa, senhor Milo. O homem que usa de violência atrai o mesmo para si.
– Sua Graça teria uma sugestão para o que aconteceu?
– Sim, eu teria chamado um policial que, por sua vez, impediria a continuação daquela atitude inconveniente. Poderíamos, então, nos tornarmos guardiões legais do animal, porque teríamos a lei como testemunha da total inadequação do conde como proprietário.
– Até Sua Graça encontrar um policial, o cavalo já estaria morto! Têm coisas que pedem uma ação imediata, não dá para esperar. E, quer saber? Eu não me arrependo de nada e se acontecesse de novo, eu faria a mesma coisa! Talvez mudasse a parte em que deixei o ordinário com todos os dentes da boca.
– Pois muito bem, senhor Milo, se quer agir por suas próprias regras não tenho o porquê de continuar a ser seu preceptor.
Ao impacto daquela frase, Milo ficou sem saber o que fazer. O tom de voz do duque não era agressivo, mas ele percebeu que havia uma nota de decepção entremeada pelas palavras diretas.
– Está desistindo de mim?
– Não, estou deixando-o livre para agir conforme acha correto. Se não se dispõe e mudar seu comportamento, não tenho razões para ensiná-lo, não acha?
– Está bem... Desculpe. O que eu devo fazer?
– Por enquanto nada. Amanhã faremos os encaminhamentos necessários para resolver a questão do cavalo. Agora vá se preparar para o jantar. Depois, Aiolia virá buscá-lo para irem juntos à ópera.
– Eu? Ir à ópera com o conde? E você? Quer dizer, Sua Graça?
– Eu tenho assuntos importantes para resolver. É bom que se acostume a sair com outros nobres, receberá muitos convites e poderá escolher suas amizades. Aiolia é um grande amigo e confio nele para ajudá-lo a socializar-se.
– Tá. – disse Milo sem grande entusiasmo.
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Após o jantar, embora estando sem a menor disposição para eventos sociais, Milo acompanhou Aiolia como o duque o instruíra e teve que admitir que estava apreciando a ópera. Era estranho não entender uma só palavra, mas sentir a dramaticidade das cenas era interessante.
Por ter um temperamento quente, Milo acabava achando tudo aquilo muito vivo e excitante, principalmente as cenas de amor e morte. Em algumas partes, sentira os olhos úmidos pela emoção que o invadira de forma intensa.
Para o sofisticado camarote, Saga, June e Kanon também haviam sido convidados e como já se conheciam, todos emendaram uma gostosa conversa durante os intervalos.
No terceiro intervalo, os quatro resolveram andar um pouco pelas galerias, cumprimentando e apresentando Milo a outros nobres. Jamian aproximou-se do grupo, acompanhado de uma mulher bonita, porém fortemente maquiada.
– Que bom encontrá-los aqui! Apresento-lhes Lady Louise Underwood – disse ele.
– Muito prazer... – disse ela estendendo a mão para os homens.
Aiolia, Milo, Saga e Kanon beijaram-lhe a mão, enquanto Jamian sorria.
June olhou-a de cima a baixo. Desde o ruivo exagerado dos cabelos até o vestido dourado com um generoso decote. Bem sei de onde Lady Louise veio... Pensou ela, enquanto sorria, falsamente para a mulher.
– Aproveito para convidá-los para jantar em minha casa, amanhã. Lady Louise faz aniversário e daremos uma pequena recepção para comemorar a data especial.
– Oh, mas que pena Jamian, eu já tenho compromisso para amanhã. – disse Aiolia.
– Nós também! Estamos indo para a casa de campo amanhã cedo. Que lástima! – falaram Saga, June e Kanon.
– E você, meu caro rapaz? – perguntou Jamian voltando-se para Milo.
Sem possuir a malícia para inventar um compromisso de última hora, o jovem respondeu com sinceridade:
– Bem, eu não tenho compromisso algum.
– Mas que ótimo! Então estou esperando-o amanhã às 21h00min horas. Aqui está meu endereço. – disse Jamian estendendo um pequeno papel para Milo.
– Está bem, eu irei. – falou Milo.
Jamian voltou ao seu camarote, enquanto Aiolia dizia a Milo para inventar uma desculpa e recusar o convite.
– Este homem não é boa companhia. Invente algo e recuse o convite. – disse o conde.
– Sabe, eu acho os senhores muito engraçados. Frequentam os mesmos lugares, fingem ser amigos uns dos outros, quando na verdade não se suportam. – falou Milo.
Saga pigarreou, Kanon sorriu e June olhou para o lado. Aiolia suspirou e então encarou o jovem.
– Tem razão, isso se chama verniz social e todos nós acabamos por desenvolvê-lo para sobreviver neste tipo de sociedade. Jamian é um pobre coitado que já perdeu quase tudo. É chato quando bebe e não possui uma conversa interessante, mas ainda assim, insiste em manter as amizades.
– “Amizades”... Sei. – disse Milo com deboche. – Bem, não precisa se preocupar, eu não sou amigo do conde, mas já aceitei o convite e acho que faz parte, desse tal verniz social que o senhor tanto fala, cumprir com a palavra.
– Milo, meu caro... Você é mesmo uma raridade em nosso meio. – disse Aiolia tocando-o no ombro.
O jovem sorriu e, em seguida, a ópera recomeçou fazendo todos esquecerem a presença de Jamian e seu convite.
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A residência de Jamian era uma mansão espaçosa numa rua escura, a uma breve distância da área central de Londres. Decorada de forma extravagante, possuía afrescos pintados pelas paredes, imensos lustres que se refletiam em numerosos espelhos de molduras douradas e um piso escuro e lustroso que refletia a mobília refinada estilo Luis XV.
Milo chegara um tanto contrariado. Esperava ter falado com Camus, porém o duque passara o dia inteiro fora e nem mesmo Jonas sabia do paradeiro de seu patrão. Acabara achando que o duque ainda estava chateado pelo que tinha feito e isso o deixou sem saber o que fazer. Talvez indo ao tal jantar de aniversário, pudesse demonstrar para Camus que estava aprendendo a ser civilizado. Sim, era isso que faria! Mostraria já estar preparado para agir como um cavalheiro.
Assim que entrara na mansão, Milo fora recebido com toda a pompa e circunstância. Tinha sido apresentado a uma baronesa e seu irmão, mas não guardara os nomes. Os dois o haviam deixado com certa impressão...
A baronesa maquiava-se com exagero, usava um vestido tão justo que seus seios pareciam explodir pelo decote ousado e ela o olhara igualzinho às meninas que concediam favores no prostíbulo onde tivera sua primeira relação sexual aos dezessete anos! Bem, mas isso não quer dizer nada! Talvez o tal verniz social saia um pouco quando as pessoas estão a fim de comemorar! Pensou Milo enquanto era conduzido à sala de jantar.
Um coro de parabéns a você abriu o excelente jantar que provou ser um verdadeiro banquete de iguarias deliciosas. Todos comiam e bebiam sem nenhum pudor. O vinho era servido de forma generosa e Milo notou que o ambiente estava ficado cada vez mais quente. As damas pareciam muito à vontade com os cavalheiros que afundavam o rosto em seus decotes profundos... Todos riam alto e se tocavam com excesso de intimidade.
– Vamos, fique à vontade em minha casa, meu rapaz! Beba e coma sem moderação! Se desejar companhia, não se acanhe em pedir... – disse Jamian piscando e se aproximando de Milo.
Apesar de já ter vivenciado muitas experiências sensuais, Milo não conseguia ficar à vontade. Aqueles não eram seus amigos e ele sentia algo estranho no ar. Entretanto, fez o que achava que agradaria a Camus, sorriu e agradeceu. Um criado surgiu trazendo-lhe uma taça com champanhe e ele bebeu para tentar espantar o mal-estar.
– Vamos todos para o salão no andar de cima, lá tem mesas de jogos de cartas e roletas! Vamos nos divertir, pessoal! – gritou Jamian.
Milo sentiu um alívio e, em seguida, uma espécie de vertigem. A baronesa aproximou-se dele e o beijou no pescoço. O irmão veio em seguida e os dois ficaram um de cada lado, sustentando-o como se ele fosse cair.
– Ei... Eu... Eu estou... bem. – disse Milo sentindo o salão girar e o barulho de homens e mulheres, rindo, retumbar em seus ouvidos.
– Venha descansar um pouco lá em cima... – sussurrou a baronesa.
Enquanto o levavam, uma mulher e um homem se atracavam aos beijos e carícias na escadarias e Milo foi sendo levado para um dos quartos no piso superior. O jovem estava grogue, porém ainda não estava totalmente inconsciente e seu instinto aflorou.
– Não! Eu... quero ir... embora! – disse ele.
– Como ele pode estar de pé? O quanto ele bebeu? – perguntou a baronesa ao irmão.
– Ele é muito forte! A quantidade de calmante que coloquei no champanhe dava para adormecer um leão. – respondeu o jovem.
– Pelo visto não funcionou! Ajude-me aqui! Vamos botá-lo na cama, tirar-lhe a roupa e fazer o que nos mandaram.
Ao ouvir aquilo, Milo resistiu ainda mais.
– Faça alguma coisa! – disse a baronesa ao sentir que o jovem lhe escapava.
O irmão atendeu a ordem segurando Milo pelo braço, impedindo-o de seguir em frente.
– M-Me... largue!
– Ei, seja educado e venha conosco! – esbravejou o rapaz tentando sacudir Milo pelos ombros.
Como era de menor estatura e franzino, o jovem não conseguiu sequer mover Milo, então resolveu empurrá-lo com violência. Cambaleando para trás, Milo bateu na parede, mas ainda assim continuou resistindo. Fechou o punho e deu um soco fraco no rosto de seu agressor. A baronesa pediu ajuda e mais dois homens vieram para imobilizar Milo.
– M-Me... larguem... Já disse! – gritou Milo e recebeu um soco no rosto e outro na altura do estômago.
Mesmo sangrando, Milo ainda tentou se soltar, mas agora a droga já estava fazendo efeito. Tudo girou e ele viu descer uma cortina escura frente aos olhos. Então, quando tudo parecia perdido, uma voz grave e autoritária se fez ouvir:
– Soltem o senhor Milo ou sofrerão consequências bem desagradáveis! – disse Camus.
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