História Anamnese - Quebra-cabeça ; único

Você consegue ouvir no silêncio,
Você consegue sentir isso na volta para casa,
Você consegue ver com as luzes apagadas,
Você está apaixonado, um amor verdadeiro
Você está apaixonado

Minhas mãos fecharam-se em punho e meu maxilar travou-se enquanto meus olhos mantiveram-se fixos em um ponto totalmente aleatório que meu cérebro não era capaz de reconhecer devido ao fato de meus pensamentos tomarem conta de toda minha atenção.

Eu não aceitava que aquilo estava acontecendo comigo. Eu me sentia frágil, impotente e extremamente vulnerável. A dor e o sentimento de perda, o buraco negro, ficava em meu peito e se alastrava como uma grande epidemia contagiosa.

O que diabos eu havia feito? Por que tomar todas aquelas decisões me trouxeram logo a isto?

Quando eu o conheci, ele parecia um anjo. Daqueles que saem diretamente de um filme hollywoodiano com suas asas iridescentes brilhantes e translúcidas, preparado para te pegar no colo e partir voo rumo ao grande horizonte. Seja em um entardecer ou em um lindo amanhecer. Todas as sensações boas da brisa batendo em seu rosto e o prazeroso frio na barriga como efeito colateral da sua decolagem no abraço caloroso que lhe faz se sentir infinita e completamente segura.

Que tola!

Fiquei completamente apaixonada, caidinha de amores por ele. E como eu pude ser tão frágil e obcecada? Como eu pude me deixar levar por uma simples bobagem chamada amor que apenas lhe traz dor e sofrimento quando a sua afeição não é aceita?

O olhar angelical, os olhos verdes esmeraldas brilhantes límpidos que traziam a calmaria da maresia em um final de tarde, após a grande extensão azul ter sido extremamente conturbada e agitada. Contraditoriamente, estes mesmos olhos apenas me aterrorizavam. Não consigo pregar o olho a noite toda somente por fechar minhas órbitas e você estar lá.

A questão é que você sempre vai estar lá. Não importa o quanto de terapia eu faça ou o quanto de remédios eu tome. Você não abandonará meus pensamentos e muito menos o meu coração.

Ah, se eu pudesse voltar ao tempo e resistir à essa tentação.

Tentação essa de sentir seus lábios carnudos e avermelhados colados no meu, os toques gentis de seus dedos longos e mãos enormes que me transmitiam proteção e estabilidade. Tentação de percorrer meus lábios por todos seus pontos, de sentir o calor que emana de sua pele, ouvir sua risada rouca no meu ouvido ou até mesmo sua voz sonolenta em uma manhã, manhosa o suficiente para deixar sólido em minha mente o cansaço de uma noite em que nos amamos exatamente como um homem ama uma mulher.

Alguma vez você sequer me amou? Alguma vez eu fui especial para você? Alguma vez você me desejou como eu te desejei, Harry? Eu queria tanto as respostas para essas perguntas que são vazias e não preenchem o espaço, apenas flutuam por aí, sem respostas.

Eu teria me entregado de corpo e alma para você. Concederia a todos os seus desejos porque amar você fazia com que estes também fossem meus.

Amar você foi minha perdição. Eu perdi minha sanidade, levada próxima ao abismo da psicose prestes a me jogar rumo às pedras que poderiam me acertar e me causar a mais pura e garantida demência.

O problema disso tudo não se baseia somente no fato de que eu perdi você. Para ser honesta, acho que nunca nem sequer eu tive você verdadeiramente. Eu tive apenas a ilusão de você, me apeguei ao delírio de que seria tudo conforme estava em meus pensamentos: ficaríamos juntos e viveríamos felizes para sempre. O problema disso tudo é que eu aceitaria fazer tudo de novo se fosse para ter você ao meu lado.

Que tola, eu.

A bebida amarelada no copo já não me trazia mais o efeito e sensação de paz, alívio, dormência; pelo contrário, aquilo não tinha mais efeito. Nenhum entorpecente seria capaz de me embriagar como você, Harry, e acho que isso, provavelmente, nunca mais mudará.

Você é a magnitude mais linda que eu já vira, um satélite natural mais forte e luminoso do que o sol; você possui seu brilho próprio. Acho que foi por isso que eu me apaixonei, afinal. Me apaixonei por sua confiança e pulso firme. Me apaixonei por quem você realmente era – e isso que estragou.

Eu o conheci por completo.

De dentro para fora.

De fora para dentro.

Eu realmente te conheci e vi que era exatamente isso o que eu estava procurando, era disso que minha alma precisava: você.

E você se foi.

Como o vento leva embora uma folha seca caída de uma árvore, como a correnteza puxa a água e a arrasta para frente e para trás, espalhando-a em diversos fragmentos para que ela possa seguir um rumo ou simplesmente vaporizar de volta para o céu.

Você se foi não porque quis. Você se foi porque a vida não nos quis.

A verdadeira pergunta é: será que você se foi mesmo?

Minhas pálpebras caíram e meu cérebro deu forma àquilo que eu encarava enquanto me tornei totalmente inerte ao mundo exterior. Lágrimas haviam molhado meu rosto e meu nariz estava tampado, quase me impossibilitando de respirar.

Respirar, que irônico.

Meu cérebro encarava exatamente aquilo que estava te fazendo respirar.

Minhas mãos foram de encontro ao meu rosto enquanto a outra eu soltava levemente meus dedos, já brancos, levantando meu braço para tocar a sua mão, anteriormente quente e confortável, para gélida e fúnebre.

Será que você poderia sentir minhas carícias? Será que você poderia sentir o quanto eu te amo e o quanto eu sinto a sua falta, Harry?

Por que você não abre os olhos e me deixa ver, pelo menos pela última vez, os seus lindos olhos? Por que não me dá um daqueles seus lindos sorrisos acompanhados por suas lacunas, essas as quais eu nunca quis preencher porque elas não precisavam serem preenchidas, uma vez que elas que preenchiam você.

Eu estive lá, no dia do acidente. O acidente que te colocou em um sono profundo que não poderia ser desperto nem mesmo pelo beijo de amor verdadeiro, como diria os contos de fadas; o acidente no qual te colocou em coma por tempo indeterminado.

Eu quero e peço para que volte para mim. Não precisa ser agora, nem amanhã, depois, mês que vem ou no próximo ano. Eu só quero que volte para mim, de alguma forma: nesta vida, após ela ou até mesmo na outra.

Na vida, somos um grande quebra-cabeça que espera que suas peças se unam para que possamos ver uma adorável imagem no final e, no momento, você é a única peça que falta em mim.