Nesse ponto eu já havia desistido de fazer perguntas que não teriam respostas, como a ligação entre minha morte e escolha de vida e as memórias que eu recuperava. No final de todas eu esperava ter minhas dúvidas saciadas, então, por agora, decidi deixar de bater na mesma tecla incontáveis vezes. Além disso, não era como se estivesse sendo ruim aquela sessão de memórias e sensações com Jeon Jeongguk. Eu me sentia bem a cada fio rompido e lembrança recuperada. Só isso já fazia tudo valer a pena.
Olhei para trás pela primeira vez desde que comecei a romper as amarras e encarei a escuridão da escada que havia me levado até ali. Eu sentia um frio interior e psicológico ao olhar para lá e não ser capaz de enxergar mais de dois passos. O purgatório era um local solitário e perturbador, de certa forma. Eu me sentia relaxado graças as memórias que eu recuperava, mas, se eu analisasse o local em si, era de dar arrepios. Talvez por ter mais lembranças e personalidade agora do que quando acordei, aquele lugar me parecia ainda mais assustador.
Andei até o próximo pilar e vi uma mancha azul em meio ao vermelho. Era ainda mais curiosa que as demais, pois nelas eu sabia que significaria algum conflito interno ou sensação ruim vivida por mim. Mas, o que o azul significaria?
Pronto para descobrir (e ver Jeongguk nas minhas memórias), rompi mais um fio.
As imagens que ocuparam minha mente eram um tanto confusas. Eu parecia já ter me formado e, supostamente, era para ser um dia feliz. Entretanto, a expressão no rosto de Jeongguk indicava o contrário. Fechei os olhos e me deixei ser guiado para aquela lembrança.
Foram cinco longos anos de faculdade, muitos trabalhos, provas, aulas, festas e acontecimentos dos mais inesperados. Jeongguk havia se formado primeiro e, agora, era minha vez. Eu estava mais sorridente que o normal e aquelas cenas de filmes em que as pessoas jogam seus chapéus de nome exageradamente extravagante rodava como uma fita quebrada na minha cabeça. Eu queria fazer aquilo também, mas não sabia se deveria. Talvez eu fizesse quando chegasse em casa só pela sensação de jogar a faculdade para os ares.
Quando recebi meu certificado com méritos, eu me senti uma criança no natal novamente. Me lembrei da minha animação quando tivemos a primeira neve do ano no meu aniversário e o quão animado eu fiquei por isso. O que eu sentia agora parecia semelhante, mas num nível bem mais alto. Enquanto eu tirava infinitas fotos com meus colegas de curso, eu olhava vez ou outra para Jeongguk, a distância. Ele me olhava com um sorriso orgulhoso nos lábios e parecia feliz.
Foi o tempo necessário para eu me distrair numa conversa com alguns amigos e buscar Jeongguk com os olhos novamente para ver uma nova expressão completamente antagônica no seu rosto. Ele falava ao telefone com alguém e tinha o cenho franzido e os lábios numa linha reta. Com a outra mão, notei que ele fechava os punhos com força. Não esperei para ver aquela cena se desenrolar e me despedi dos meus colegas, correndo em direção de Jeongguk e sentindo meu coração apertar a cada passo que eu dava para perto dele.
Quando me aproximei o suficiente, vi seus olhos brilhando e encarando o chão. Ele me olhou brevemente antes de voltar a focar na grama verde sob seus pés. Andei com cautela para mais perto e envolvi seu punho gentilmente com minhas mãos. Ele pareceu perceber a força que fazia e relaxou, entrelaçando nossos dedos e apertando ambas juntas. Com minha mão livre, levei meus dedos até seus fios, que estavam num novo tom de vermelho que eu teimava em dizer que era rosa, e deixei um carinho suave ali. Ele fechou os olhos com força e vi lágrimas deslizarem por sua bochecha. As enxuguei com carinho.
–– Certo. E eu posso visita-la hoje ainda? –– Ele perguntou para a pessoa do outro lado da linha.
Continuei os carinhos em silêncio, aguardando a chamada encerrar.
Depois de um silêncio longo, Jeongguk se despediu e desligou, guardando o celular. Antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa, ele me puxou para seus braços e me apertou num abraço, escondendo seu rosto no meu pescoço e fungando baixinho em seguida. Não pensei duas vezes antes de rodear seu corpo com meus braços e deixar um beijo no topo da sua cabeça, consolando-o da dor que sentia por algum motivo que eu ainda não sabia. Demorou mais uns minutos dessa forma para ele finalmente respirar fundo e se afastar levemente, mas mantendo nosso abraço.
–– Tae... –– Ele chamou choroso e passou a bochecha na minha. –– Meu pai ligou. Minha mãe está no hospital.
Depois da ligação que Jeongguk recebeu, fomos para casa descansar. Meu sogro fazia companhia a mulher no hospital e nós só iríamos visita-la no dia seguinte. Vi o quanto isso afetou meu namorado e eu mesmo fiquei bastante abalado. Ela era como uma mãe para mim também e eu estava preocupado com sua saúde, então descansaríamos por hoje e tentaríamos acalmar nossos nervos antes de a visitar. Ao chegar em casa, ficamos em silêncio e fomos para o quarto, onde tomamos banho juntos com algumas carícias trocadas aqui e ali, mais da minha parte tentando consolá-lo um pouco do que dele realmente. Jeongguk parecia estar no mundo da lua e não era para menos, mas ele não poderia continuar daquele jeito e muito menos pensando naquilo. Não lhe fazia bem.
Quando nos deitamos na cama, percebi sua postura desconfortável e seu olhar perdido no teto. Senti meu coração enfraquecer só de observar o seu estado. Me sentei e subi para o seu colo. Ele continuava deitado e me encarou. Levei minhas mãos em direção aos seus ombros e comecei a apertá-los levemente, descendo por seus braços e voltando o caminho mais uma vez. Jeongguk fechou os olhos e apoiou as mãos nas minhas coxas, alisando-as levemente.
–– O que está fazendo? –– Ele perguntou baixinho.
–– Tentando te dar uma massagem. –– Sorri fraco e inclinei meu corpo para frente, deixando um beijo na sua bochecha. –– Tente relaxar um pouquinho.
Ele respirou fundo e se manteve calado. Continuei a tocá-lo e apertá-lo levemente numa tentativa de o deixar mais tranquilo e descansado. Depois de um tempo dessa forma, me ajeitei no seu colo e fiquei de costas para si antes de começar uma massagem nos seus pés e pernas. Jeongguk ainda mantinha o carinho constante nas minhas próprias e eu tentava fazê-lo dormir com aqueles toques e, talvez assim, conseguir fazê-lo não pensar na mãe por alguns minutos. Eu me perguntava em como ela estaria e o que tinha, mas, por mais preocupado que estivesse, minha atenção e preocupação eram, em suma, de Jeongguk. Vê-lo daquele jeito me deixava abalado.
Com o passar dos minutos, senti a mão de Jeongguk começar a parar lentamente o carinho em minhas pernas. Não demorou muito para que ele parasse completamente e fiquei mais alguns minutos nas massagens antes de me virar lentamente e observá-lo dormindo. Com cuidado para não o acordar, saí de seu colo e me deitei ao seu lado. Fiquei admirando o seu rosto por um tempo e me perdi em pensamentos dos mais diversos. Com delicadeza, passei a ponta dos dedos na sua bochecha e retirei a franja de seus olhos. Ele é tão lindo. Sorri sozinho e deixei um beijo suave no seu ombro antes de fechar os olhos parar dormir.
Acordei depois de um tempo e me senti aquecido. Olhei para baixo e vi o braço de Jeongguk abraçado a minha cintura. Me virei para si e vi seus olhos fechados, respiração baixa e a boca levemente aberta. Me aproximei ainda mais de si e retribuí aquele abraço, passando os braços por baixo dos seus e o apertando contra mim antes de esconder o rosto no seu pescoço. Era tão confortável e parecia tão seguro que nada seria capaz de me atingir enquanto eu estivesse nos braços de Jeongguk e ele nos meus. Ouvi dizer que casa é onde o seu coração está. E o meu sempre vai estar com Jeon Jeongguk. Ele é a minha casa. Eu iria atrás dele até o fim do mundo, assim como sei que ele faria o mesmo por mim.
O senti me apertar mais contra si e respirar fundo, começando a acordar. Vi quando ele abriu os olhos perdidos e os vagou levemente pelo cômodo antes de me encarar, sorrindo sonolento. Ele era tão fofo que não resisti em deixar um beijo na sua bochecha.
–– Dormiu bem? –– Perguntei baixinho, fazendo um carinho nas suas costas com a mão que o abraçava.
–– Sempre durmo bem quando tenho você ao meu lado. –– Respondeu rouco e sorriu levemente. Fechei os olhos ao vê-lo se aproximar e senti um selar gentil nas minhas pálpebras.
Passei a mão que estava nas suas costas até seu peitoral e o empurrei levemente, fazendo-o deitar de barriga para cima. Ele me observava com atenção, apenas seguindo meus comandos. Deslizei uma perna para o outro lado e me deitei por cima de si, tomando cuidado para não colocar todo o meu peso. Jeongguk levou as próprias mãos até minha cintura e começou a afagar o local.
–– Você é lindo. E muito importante para mim. –– Falei num sussurro, ao pé de seu ouvido.
O vi se aproximar mais de mim e cheirar meu pescoço, deixando um selar ali.
–– E você é o meu mundo. A pessoa mais especial da minha vida. –– Ele respondeu no mesmo tom e se afastou, me encarando com um sorriso. –– Além de ser um gato maravilhoso.
Ri soprado e deitei a cabeça no seu ombro. Senti um beijo logo depois.
–– Obrigado por ter me acalmado. Estou me sentindo melhor. –– Ele disse após um tempo. –– Estou preocupado com a minha mãe, sabe? Ela nunca teve a saúde muito boa.
–– Eu sei, meu amor. Mas ela vai ficar bem, ok? –– Falei suavemente, deslizando a ponta dos dedos pelo seu braço num carinho singelo.
–– Eu espero que sim. –– Ele murmurou e entrelaçou nossos dedos antes de aproximar minha mão de sua boca e plantar um beijo carinhoso ali. –– Você é um ótimo melhor amigo.
Ri baixinho e o encarei nos olhos. Ele sorria divertido.
–– Eu sou o exemplo de amizade, Jeon Jeongguk. Amigo para todas as horas. –– Falei e mordi os lábios, passando a mão por baixo da sua camisa. –– Para o que você quiser.
Ele riu soprado e me puxou para um beijo. Sua mão fazia um carinho agradável na minha bochecha e eu afagava sua barriga, sentindo-o contraí-la vez ou outra sob meus toques.
Depois de um tempo, nos separamos com alguns selinhos e ele mordeu meu lábio inferior, puxando-o com os dentes e se afastando lentamente.
–– Eu te amo. –– Ele falou baixinho contra meus lábios.
–– Eu te amo muito. –– Respondi, encarando o escuro de seus olhos e me deixando ser sugado por aquele céu estrelado e único.
O toque de seu telefone chamou a nossa atenção e saí de cima dele para que o atendesse. Jeongguk começou a falar com a pessoa do outro lado da linha enquanto eu o observava, sentado de joelhos na cama. Aparentemente, era seu pai com quem falava. Jeongguk deu um sorriso aliviado e soltou um suspiro antes de se despedir e virar-se para mim.
–– Vamos visita-la?
Já era fim de tarde quando chegamos no hospital. O sol começava a se esconder no horizonte e deixava o céu com uma mistura de cores bonita e única. Entrei no local com a mão entrelaçada a de Jeongguk, tentando passar conforto a ele. Parados em frente a porta do quarto onde estava minha querida sogra, levei sua mão até meus lábios e os beijei delicadamente.
–– Vamos. Vai dar tudo certo. –– Encorajei.
Ele assentiu e mordeu os lábios antes de girar a maçaneta, nos permitindo a entrar no quarto e ter uma visão da mulher conectada ao soro e com uma pequena máscara para auxiliá-la na respiração. Ela parecia feliz em nos ver, mas senti a mão de Jeongguk esmagar a minha. O senhor Jeon estava sentado num sofá ao pé da janela. Ele tinha um olhar cansado, mas sorria levemente e nos observava com alegria nos olhos, assim como a esposa.
–– Meus filhos. Vocês estão bem? –– Ela sorriu e se ajeitou com dificuldade na cama. –– Desculpe não ter ido com vocês a sua entrega de diplomas, querido. –– Ela disse para mim.
–– Não se preocupe com isso, sogrinha. –– Sorri de volta e tentei puxar Jeongguk comigo para mais perto dela. –– Nós estamos bem, mas preocupados. Como a senhora está?
Ela tossiu. Era possível ouvir o arranhar de sua garganta.
–– Estou feliz, meu bem. Muito feliz. Ainda bem que vieram me visitar. –– Ela disse após se recompor.
–– Mãe... –– Jeongguk a chamou, libertando sua mão da minha e agarrando a da mulher. –– Como está se sentindo? Quero que fique boa logo.
Ela sorriu com os olhinhos quase fechados.
–– Eu vou ficar, filho. Estou muito feliz. –– Tornou a repetir.
Depois disso, tudo aconteceu rápido demais. Seus batimentos cardíacos começaram a cair no monitor e ela sorriu mais uma vez antes de se deixar ficar deitada na cama, como se não se importasse com o que estava acontecendo. O senhor Jeon se levantou apressado do sofá e apertou em um botão que havia no quarto, chamando as enfermeiras. Jeongguk tinha os olhos arregalados e segurava a mão da mãe com força. Eu sentia o ar sair de meus pulmões.
Em pouco tempo, várias enfermeiras entraram no quarto acompanhadas de um médico. Nos foi pedido que saíssemos dali e, com certa dificuldade, consegui arrastar Jeongguk para fora do quarto juntamente de seu pai. O moreno praticamente rosnava para entrar e ver sua mãe novamente, mas eu tentava acalmá-lo e mantê-lo em seu lugar. O senhor Jeon parecia perdido e caiu sentado num dos bancos do lado de fora, olhando para o nada. Meu coração batia tão rápido que eu sentia que iria morrer, mas precisava ser forte para Jeongguk.
Mas não importavam quantos “está tudo bem” que eu lhe dissesse, pois nem eu mesmo conseguia mais recitá-los. Não quando a comoção dentro do quarto se encerrou e o médico nos chamou para dar uma das piores notícias de nossa vida. Eu via o senhor Jeon em lágrimas e Jeongguk chorando em silêncio, com raiva e tristeza. Eu queria dar apoio a ambos, mas parecia que uma parte do meu coração havia sido deixado para trás junto da mãe do moreno. Ela disse que estava feliz. Ela parecia calma. Ela sabia que isso ia acontecer?
Eu tinha tantas perguntas, mas não sabia se queria coloca-las para fora. Me deixei cair sentado entre ambos os Jeon e agarrei a mão de cada um com força, tentando passar conforto a eles. E encontrar o meu próprio conforto no gesto. Por que perder alguém doía tanto?
A memória se tornou escura e desapareceu. Senti algo quente deslizar pelo meu rosto e foi a primeira vez, desde que acordei naquele lugar, em que senti alguma coisa de temperatura diferente. Minhas lágrimas. Era uma lembrança dolorosa e que fazia eu sentir um vazio no meu peito, talvez ainda maior do que a ironia do momento em realmente não o sentir ali. Mais uma série de dúvidas surgiu na minha mente com esta última lembrança. Teria a senhora Jeon ido para este mesmo purgatório? Teria ela cortado amarras, assim como eu, e feito uma escolha? Se sim, teria ela escolhido voltar para nós, como eu desejava ansiosamente neste momento? O próximo fio me diria isso.
E agora faltavam apenas quatro amarras.
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