- Terminar? – Samantha questionou a mais velha. Lica sentiu o tom de desapontamento em sua voz. Não conseguia sustentar seu olhar. – Heloísa, olha para mim... – Samantha solicitou. – Estou falando com você.
Lica levantou a cabeça e os olhares se cruzaram. Os olhos de Lica chegavam a inundar de lágrimas. Passou a mão pelas vistas para desembaraçar sua visão. Samantha tinha perguntas a fazer. A outra não poderia simplesmente tomar aquela decisão sozinha.
- Você está com raiva de mim? – Perguntou temerosa. – Por que seu pai foi preso por minha causa?
- Raiva? – Lica reagiu instantaneamente. Logo respondeu. – Lógico que não... Dá onde você tirou isso, Sammy?!
- E por que você veio com essa ideia toda errada? – Antes que Lica falasse algo, Samantha antecipou. – E nem vem com essa conversa de que você não quer me prejudicar... – Levantou agitada. - Eu sei cuidar de mim e eu sei o que me prejudica. Sabe o que é? Ficar longe de quem eu amo! – Afirmou. – Eu sei disso porque eu estou sem a minha mãe, eu estou há quase um ano sem meu pai... E foi um dos anos mais difíceis da minha vida... – Atordoada. – E eu não quero ficar sem você porque se eu te perder...
Samantha tinha muitas coisas para dizer a Lica, mas nada foi dito pois uma corrente forte de choro a impediu. Um pranto que havia segurado por toda a madrugada, mas agora ali, na frente de Lica simplesmente desabou como uma tempestade de verão. Lica a apertou em seus braços como se quisesse proteger Samantha de si mesma. Chorou também, mas de maneira mais contida. Quando Samantha conseguiu controlar o choro, Lica a fez sentar na cama e pegou água para ela na cozinha.
Enquanto tomava a água, Lica procurava se explicar a ela. Não queria que Samantha pensasse que ela estava fazendo aquilo por algum ressentimento em relação a Edgar. Seu plano estava bem distante disso. Apesar de sofrer em ver o pai preso, Lica defendia que Edgar devia ser condenado e cumprir a pena como um criminoso qualquer. Ele tinha tirado a vida de duas pessoas e prejudicado muitas outras. Sua razão para afastar de Samantha era outra.
- Eu gosto de você, Sammy... Eu nunca tive um sentimento tão forte... – Lica fazia um carinho em sua mão livre. – Eu amo você... – Afirmou arrancando um sorriso suave de Samantha. – E por te amar eu quero o que é melhor pra você... E hoje talvez não seja saudável estarmos tão próximas...
- Mas será que eu não posso decidir isso?
- Calma... – Lica pediu. – Claro que você pode decidir... Mas escuta os meus motivos primeiro... – Samantha fez um gesto de acordo. – Você está tendo um ano difícil... Agora que conseguiu reaproximar do seu pai e ele vai embora... – Fez uma pausa. – Ele fez uma proposta pra você...
- Que eu não aceitei...
- Mas a situação mudou... Eu te conheço, Sammy... Eu tenho certeza que você não está se sentindo bem aqui... O Grupo, o pessoal e principalmente eu acabamos que sem querer te fazendo lembrar de tudo, não é?!
Samantha ficou sem graça.
- Eu sei que vocês não fazem de propósito, mas é que fica marcado...
- Aí que eu quero chegar... Você precisa agora oxigenar... Descobrir que a sua mãe foi assassinada foi como se ela morresse de novo, não foi?
Samantha fez um gesto afirmativo.
- Quando o meu pai contou que o carro foi sabotado eu tive essa sensação mesmo. Como se ela tivesse morrido outra vez... Eu senti um aperto, uma sensação de medo e solidão tão grande...
- E você não teve tempo de digerir isso... De ter esse luto de novo. – Fez uma pausa. – Quando eu fui pra Paris, eu fui para me tratar também, aproveitei para estudar o idioma, mas eu resolvi a ir porque eu precisava acertar as contas comigo, organizar a minha cabeça pra depois me acertar com os outros.
Samantha começava a entender o ponto de vista de Lica. Ela tinha certa razão em algumas coisas. Depois de tudo o que passou, Samantha andava sentindo necessidade mesmo de se afastar de tudo para repensar melhor em sua vida. Eram muitas informações juntas para absorver de uma vez só. Além de toda a situação com Edgar, havia um novo quadro que teria que aprender a lidar, a convivência com o pai.
Ela não era mais a mesma garota que saiu de casa e tinha certeza que Lambertini também não era o mesmo homem, precisavam se reconectar e para isso teriam que se conhecer novamente. Outro fator que pesava bastante em sua decisão era a escola. Samantha não estava disposta a voltar para o Colégio Grupo. Se fosse estudar no Cora Coralina teria que passar por um período de readaptação faltando poucos meses para o Enem e ainda passaria pelo processo de prestar vestibular. Não estava com cabeça para aquilo. Estava pensando em até a perder o ultimo ano para fazer direito no ano seguinte. Se fosse para Nova Iorque com o pai poderia estudar inglês e se dedicar as aulas de música até o início do próximo ano letivo.
- Amor... – Samantha disse a Lica. – Como você soube que tinha que ir para Paris? Como você chegou a conclusão...
Lica fitou a garota por alguns distantes. Refletiu um pouco e começou a se explicar.
- Teve uma reunião das fives no galpão e nós discutimos, brigamos feio. Eu estava muito louca aquela época. Tinha desencantado do Felipe e estava pegando geral, uma noite antes eu tinha ficado com o Deco e eu contei pra Keyla... Ela ficou puta comigo, a Tina queria fugir com o Anderson e a Ellen estava preocupada, estava uma confusão danada... Nós brigamos e depois que eu saí de lá, eu fui procurar a K1 porque eu estava me sentindo triste e queria ficar com ela pra me sentir melhor... Encontrei e ela me contou que estava se acertando com o MB... Eu vi que ela gostava dele e eu sabia que ele gostava dela... Então eu decidi que eu não ia ficar com K1 nunca mais... Porque eu gostava dela, mas o MB era apaixonado e ela merecia mais do alguém que não queria nada sério... Aí eu fui sozinha pra uma balada e chapei tudo que eu tinha direito... Fritei com balinha, enchi a cara... E depois bateu a bad... Larguei o carinha que estava ficando no meio da balada e fiquei andando... Acabei chegando no galpão. Passei mal... Eu pensei em chamar a Keyla, mas estava tarde, aí eu fiquei ali, meio que escondida, esperando amanhecer... – Lica fez uma pausa. – No meio da madrugada eu estava quase cochilando quando eu ouvi alguém tocando violão... – Encarou Samantha. – E era você.
Samantha se surpreendeu.
- Eu?
Lica fez um gesto afirmativo e retomou a palavra. Jamais esqueceria aquela noite. Chegou no galpão por volta das três da manhã. Usou o banheiro do local e se encostou rente a velha Kombi de Roney. Decidi esperar o dia clarear para procurar Keyla. Estava quase cochilando quando ouviu passos pelo local. Abriu os olhos e avistou Samantha. A garota ainda não morava ali, mas ela era amiga de Gabriel. Os dois ficaram conversando até tarde e ele sugeriu que ela passasse a noite ali já que Tato havia brigado com Keyla por causa de Deco e estava dormindo fora.
Samantha se levantou para usar o banheiro, depois seguiu para pegar um pouco de água no filtro do galpão e se acomodou no sofá. Lica a observou por alguns minutos. Em nada lembrava a Samantha que costumava a ver. Ela continuava bonita, mas a expressão de seu rosto era melancólica. Seus olhos eram enevoados por uma tristeza quase que tocável. Lica a espiava em segredo. A mais nova pegou o violão de Keyla que estava próximo do sofá e começou a manobrá-lo. Primeiro tocou qualquer coisa, depois Lica identificou os acordes da música que Samantha executava no instrumento musical.
Des yeux qui font baisser les miens
Un rire qui se perd sur sa bouche
Voilà le portrait sans retouche
De l'homme auquel j'appartiens
Quand il me prend dans ses bras
Il me parle tout bas
Je vois la vie en rose
Il me dit des mots d'amour
Des mots de tous les jours
Et ça me fait quelque chose
Il est entré dans mon coeur
Une part de bonheur
Dont je connais la cause
C'est lui pour moi
Moi pour lui dans la vie
Il me l'a dit, l'a juré
Pour la vie
Et dès que je l'aperçois
Alors je sens en moi
Mon coeur qui bat
Des nuits d'amour à plus finir
Un grand bonheur qui prend sa place
Des ennuis des chagrins s'effacent
Heureux, heureux à mourir
Oculta pela Kombi, Lica assistia a performance realizada por Samantha acompanhada pelo violão. Sua voz era forte e continha uma tristeza quase que poética. O timbre às vezes desafinava pois Samantha sentia a garganta presa em um bolo, mas mesmo chorando ela insistia em cantar. Lica acabou se emocionando com a cena que presenciou. Ela sabia perfeitamente que Samantha chorava ir falta da mãe. Lica já havia assistido algumas apresentações de Cíntia e ela sempre cantava La Vie En Rose depois de confessar ao público que aquela era uma de suas canções favoritas. Cíntia tinha o nome da música tatuada no pulso direito e logo após a morte da mãe, Samantha fez uma tatuagem igual no mesmo lugar. Lica sabia a importância daquela música para Samantha e via de perto a dor que sua alma sentia. Ergueu-se com o intuito de ir consolá-la, mas ao bater os olhos em seu reflexo no retrovisor da velha Kombi, acabou desistindo. Estava toda suja, suada, descabelada, batom bordado e as pálpebras sujas de lápis de preto de maquiagem. Seus olhos estavam vazios e levemente avermelhados. Sem graça por conta de seu estado deplorável, Lica permaneceu escondida.
- Eu tive vergonha de aparecer na sua frente.
- Vergonha? – Samantha questionou.
Lica fez um gesto afirmativo.
- Foi a versão mais triste e mais bonita que eu ouvi de La vie en Rose. Você estava chorando pela sua mãe e a minha provavelmente estava louca atrás de mim... De repente eu vi que os meus problemas eram pequenos perto do seu... E eu queria te abraçar e te dizer que tudo ia ficar bem, mas eu estava tão detonada que eu fiquei com vergonha. – Fez uma pausa. – A minha mãe já tinha me falado há alguns dias sobre um intercâmbio em Paris que eu poderia fazer... Primeiro eu neguei, mas quando eu te vi ali e vi que eu não estava em estado digno para cuidar de uma amiga que estava precisando de mim, eu entendi que eu precisava mudar e cuidar de mim pra eu ter possibilidade de cuidar das pessoas que eu gostava... Eu cheguei em casa de manhã, a minha mãe estava doida me procurando, começou a gritar comigo quando eu disse pra ela que eu queria ir para Paris e queria me tratar. Ela não entendeu nada, mas ela me abraçou tão forte que ali eu tive certeza que devia ir.
Samantha estava perplexa com aquelas informações que Lica nunca havia compartilhado com ninguém. Lembrava -e perfeitamente daquela noite. Tinha aceitado o convite de Gabriel pois havia discutido com seu pai ao encontrar Vivian em sua casa pela primeira de muitas vezes. Tinha perdido o sono, as lembranças da mãe brincavam em sua memória e o violão estava ali... Jamais havia passado por sua cabeça que não estava sozinha.
- Eu lembro desse dia... Eu acabei adormecendo no sofá do galpão e alguém havia me coberto no meio da noite e... – As duas se encararam, Samantha abriu um sorriso curto deixando Lica sem graça. – Foi você?!
Lica meneou um sim com a cabeça fazendo o sorriso de Samantha crescer.
- Estava frio, você estava toda encolhida como se fosse um bichinho assustado e... – As duas se entreolharam. Lica não resistiu e jogou uma mexa do cabelo de Samantha para trás e admitiu. – Você fica linda, dormindo...
Nova troca de olhares. O sorriso de Samantha se tornou ainda maior. As bocas estavam próximas, Lica fechou os olhos e encurtou a distância beijando-a com todo seu sentimento e desespero. Samantha envolvia as mãos em seu rosto e devolvia o beijo na mesma intensidade, o doce dos lábios apaixonados misturava com o salgado das lágrimas, Lica desvencilhou levemente com alguns selinhos e disse a mais nova, olhando em seus olhos.
- Me promete uma coisa? – Samantha não tinha ideia do que a garota ia pedir, mas fez um gesto de acordo. - Quando você estiver em Nova Iorque você vai conhecer o máximo de lugares possíveis que tem pra ir naquela cidade enorme? E curtir tudo que você direito? Promete que vai ser feliz quando estiver lá?
Com uma expressão entristecida no rosto, Samantha fez um gesto afirmativo. Fez um carinho no rosto de Lica e murmurou.
- Eu te amo...
- Eu também amo você...
Samantha puxou Lica e iniciaram um novo beijo cheio de sanha, paixão e saudade. Mais tarde Lica percebeu que seus lábios estavam até machucados, mas não se arrependeu nem um pouco da força que imprimiu em seu gesto. Os primeiros dias sem Samantha foram difíceis. Os amigos evitavam falar sobre a garota, mas Lica sabia uma coisa ou outra através de redes sociais e pelo que ouvia dizer. O retorno de Clara para o apartamento a ajudou pois a loirinha e ela se encontravam quase que na mesma situação e procuravam ser apoio uma da outra. Clara e Fio tinham retomado o namoro e o rapaz também era presença frequente no apartamento de Marta e Luís.
Lica também arranjou um trabalho fixo, pegou a vaga de bibliotecária do Colégio Grupo no período da tarde. A vaga que era de Samantha. Quando não estava em aula, estava trabalhando na biblioteca e aproveitava os horários de movimento fraco para estudar. Ela também auxiliava Bóris na coordenação com pequenos serviços. Com Edgar e Malu presos, aguardando julgamento, Marta assumiu, através de uma procuração, as ações do colégio que estavam em nome de Clara e Lica e nomeou Bóris como diretor e Matheus foi recontratado como professor de educação física após esclarecer sua situação com a justiça. Lica também havia retomado sua rotina na terapia e no jiu jitsu. Apesar de estar sofrendo bastante pela separação de Samantha, Lica estava ocupando bastante o seu tempo para tentar esquecer de seus problemas.
Samantha também buscava ocupar seu tempo com os preparativos da viagem. Retornou definitivamente para a casa do pai e passou a maior parte do tempo ao lado dos amigos aproveitando a presença deles o quanto podia. Dedicava-se bastante as aulas de música e foi procurar os familiares da mãe para contar o que havia acontecido. O tempo parecia custar a passar pois vivia pensando em Heloísa, questionando o que ela estaria fazendo, mas mesmo assim respeitou sua decisão de não se verem e não a procurou. Na noite anterior a sua viagem, Guto apareceu com uma novidade que não agradou Samantha.
- O MB tá apareceu aqui no galpão, bêbado e mais louco que o Batman. Tá quebrando tudo e te xingando.
- Me xingando? – Samantha questionou sem entender.
- Você sabe que no fundo o MB não gostou da gente dar um tempo nos Lagostins... É melhor você vir pra levar um papo com ele...
Samantha bufou irritada.
- Inferno... Você tá aí no galpão com ele?
- To... O Juca colocou ele embaixo do chuveiro pra ver se o fogo passa.
Samantha chegou em frente ao galpão às oito e meia da noite e não entendeu nada. A Chapa do Romano e a casa do ex cantor estavam apagadas assim como o galpão. Preocupada, ela usou suas chaves para abrir o mesmo.
- Tem alguém aí e...
- SURPRESA! – O coro, liderado por MB, anunciou fazendo o coração de Samantha quase parar. O loiro, completamente sóbrio, exibia um sorriso radiante ao lado de Juca e Guto. Os três rapazes estavam em cima do palco que Roney montava especialmente para os dias de festa. Anderson estava no comando das picapes junto de Tina, Tato havia cuidado da comida e bebida, Keyla, K1 e Gabriel eram os responsáveis por toda a decoração e a organização da festa de despedida de Samantha. Além dos citados havia alunos do Cora e do Grupo e amigos da ex garçonete em peso para a comemoração da partida de Samantha. Tudo pensado por MB. – Minha lagostosa, você não achou que a gente ia deixar você ir embora sem um bota fora, não é meu Mozão?
Samantha sorriu envaidecida.
- Vocês não existem... – Disse abraçada a K1 e Keyla que estavam ao seu lado. – Me enganaram direitinho!
- Pois é... - K1 brincou. - Guto maior ator... Globo tá perdendo...
Risadas e zoações da galera.
- A gente nunca ia deixar você ir embora sem dizer que vai deixar saudade... – Roney afirmou. – Mas vem cá? Tem música nessa festa ou essa bandinha de garagem é só pra inglês ver...
Guto tomou a palavra.
- Claro que tem! Hoje é dia de rock! – O pianista e agora vocalista dos Lagostins se manifestou provocando gritinhos do público. – E essa é especial dos Lagostosos pra você, Sam!
Seus olhos e seus olhares
Milhares de tentações
Meninas são tão mulheres
Seus truques e confusões
Se espalham pelos pêlos
Boca e cabelo
Peitos e poses e apelos
Me agarram pelas pernas
Certas mulheres como você
Me levam sempre onde querem
Garotos não resistem
Aos seus mistérios
Garotos nunca dizem não
Garotos como eu
Sempre tão espertos
Perto de uma mulher
São só garotos
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