Em pé, no caixa da sorveteria, terminando de pagar a conta de sua casquinha de frutas vermelhas, Brick tomou nota de não ficar sozinho quando seus irmãos resolvessem sair com Bubbles e Buttercup. Ele não se incomodava de segurar vela, mas ficar numa fila, sozinho e sem fazer nada de maneira entediante, era de longe menos pior.
“Por favor”, ele pensou, colocando os pés para fora do estabelecimento, com o sino da porta tocando sobre sua cabeça, “Que alguma coisa, qualquer coisa, torne meu dia mais legal”.
Talvez não possa ser considerado algo bom — ou sim, difícil dizer —, mas quando viu um rastro luminoso rosa cortando o céu de Townsville, pensou que o dia poderia valer a pena.
— Ah, Brick — suspirou, jogando sua casquinha de dois dólares intacta no lixo. “Dois dólares e noventa e cinco centavos”, corrigiu-se mentalmente. — Você, com certeza, vai se arrepender disso — e voou atrás da Superpoderosa, mantendo uma distância relativamente segura para que ela não o percebesse.
Sempre tivera curiosidade em saber para onde ela ia. De vez em quando, ela ia — ou dizia que ia —, para Biblioteca de Townsville, mas na maioria das vezes em que ficava o dia todo fora, suas irmãs não sabiam dizer onde ela ia. A resposta veio quando viu Blossom pousar num enorme prédio branco, na região norte de Townsville.
— Hospital William Hanna — Brick leu a placa ao pousar.
Ele seguiu no encalço de Blossom até a lateral esquerda do prédio. Escondido atrás de uma árvore, Brick a observou flutuar até uma das janelas do terceiro andar e bater três vezes na janela. “O que ela está fazendo? ”, se perguntou. Uma enfermeira veio até a janela e a abriu para que a garota entrasse. Brick saiu de trás da árvore e flutuou, cuidadosamente, até mesma para bisbilhotar.
— … tem algumas semanas desde o acidente — ele ouvia uma voz que supôs ser da enfermeira. — Ela chegou aqui em coma.
A enfermeira tinha longos e lisos cabelos castanhos, leve bronzeado californiano, e olhos azuis. Devia ter seus quarenta e poucos anos, falava com a ruiva como se já a conhecesse há alguns tempos.
Ao seu lado, Blossom parecia… sorrir. Parecia bem. Seus cabelos caíam como cascatas de fogo sobre seus ombros, presos por sua tiara de laço vermelho. Os olhos pareciam cintilar como cristais de quartzo-rosa.
Ambas conversavam com os olhos direcionados para a cama, onde se encontrava uma garotinha, com não mais do que oito anos, de curtos cabelos castanhos. Estava de olhos fechados, estática, envolta por aparelhos, com a máscara de respiração presa ao rosto.
Blossom trouxe sua mochila à frente, e de dentro tirou um pequeno frasco com um líquido preto estendendo-o para a mulher.
— Acho que é hora dela acordar — Blossom sorriu.
A enfermeira tomou posse do frasco. Passou o seu conteúdo para uma seringa, e depois, penetrou a agulha no braço da garota. Nada aconteceu em um primeiro momento, mas após três segundos… a garotinha se remexeu sobre o colchão.
Brick engoliu o ar, o que infelizmente acabou saindo alto demais. Quando percebeu Blossom mover o pescoço, rapidamente se abaixou. “Droga”, murmurou para si mesmo.
— Sra. Snyder — ele ouviu Blossom dizer. — Me dê licença, só por um minuto?
Brick esperava que ela saísse por aquela janela ali mesmo, mas o que ele ouviu foram os passos se dirigindo ainda mais adentro ao hospital. O garoto se aproximou da janela novamente, e tomando ainda mais cuidado, voltou a bisbilhotar.
Viu a Sra. Snyder sentada ao lado da cama. E viu, também, a garotinha que outrora estava em coma, com seus olhos agora semiabertos e zonzos, fazendo movimentos mínimos com braços e dedos.
— O que está fazendo aqui?!
Brick virou-se num sobressalto com a voz atrás dele. Parada no ar, Blossom o encarava de braços cruzados. Seu semblante estava sério e pouco amistoso, não havia um traço que indicasse uma brecha na plenitude de sua sisudez.
— Oi…
— Não tente mudar de assunto, eu te fiz uma pergunta — a voz era monocórdica, como se não lhe-importasse nem um pouco o que ele tinha a dizer.
— Eu te vi no céu — respondeu, dando de ombros e tentando fingir desinteresse. — E resolvi vir atrás…
— Como um maníaco perseguidor — interviu. — Agora, dê meia volta e saia antes que eu o leve à base de pontapés de volta para aquele buraco que você e seus irmãos chamam de casa.
— Suas irmãs sabem que você vem aqui? — Brick sabia que não, mas ver a expressão carrancuda de Blossom murchar lhe-fez abrir um deleitoso sorriso. Valia por qualquer desaforo.
— Se você abrir esse seu bico…
— Não vou — ele a cortou com a voz calma e apaziguante. — Será o nosso segredo. Quero ganhar sua confiança.
Era nesse momento que Blossom se virava para ele com suas patadas, dizendo e repetindo que eles eram os vilões e toda aquela ladainha que se acostumara. Mas não foi nada do que Brick esperava, Blossom apenas o olhava. E diferente das outras vezes, não parecia ter remorso ou raiva.
— Aquela garotinha — Brick apontou para a janela atrás dele. — Qual o nome dela?
Blossom fitou o chão doze metros abaixo deles.
— Mary — Brick percebeu um sorriso tímido surgir em seus lábios. — Ela sofreu um acidente de carro há poucas semanas e acabou entrando em coma.
— Mas você a acordou — Brick completou. — O que foi aquilo que deu para ela?
Blossom não respondeu. Talvez, devido aos gritos que vieram da janela do quarto. A garota se empertigou sobre a janela, Brick veio logo atrás.
Viram um homem e uma mulher sobre a cama, abraçando a pequena Mary. Decerto, os pais dela. Blossom abriu um sorriso. Brick não pôde conter o seu ao ver a cena. Atrás do casal, a Sra. Snyder sinalizou para que a ruiva entrasse.
— Senhor e Senhora Miller — ela chamou a atenção dos pais. — A responsável pelo tratamento de sua filha.
— Muito obrigada, minha querida — disse a Sra. Miller apertando sua mão, as lágrimas de alegria ainda escorriam de seus olhos. — Você é uma dádiva a este mundo, obrigada.
— Só fiz o que acho ser o certo, senhora — respondeu gentilmente, se virando a enfermeira em seguida. — Lembre-se de aplicar o Antídoto para eliminar os resíduos do corpo depois que o quadro se estabilizar.
A Sra. Snyder assentiu. Blossom lhe-dera às costas e aos pais, e estava a meio-passo da janela quando escutou:
— Obrigada, moça — a voz da pequena Mary saiu com um sussurro.
Blossom freou, se virou e abriu um sorriso.
— De nada.
Ela flutuou para fora. Encontrou Brick sentado sobre os galhos da árvore, iluminado pelos filetes de luz do sol que se abriam por entre as suas folhas.
— Então, foi por isso que deixou de ser uma heroína? — Ele perguntou.
— Nunca deixei de ser uma “heroína” — respondeu. — É uma questão de ponto de vista. Eu apenas percebi que poderia salvar mais vidas usando minha inteligência ao invés dos músculos. Quando se tem um dom que pode mudar as coisas para melhor, mas não faz nada e coisas ruins acontecem, você se torna responsável.
Brick sorriu de canto. Por um instante, Blossom novamente pareceu ser o símbolo de liderança das Meninas Superpoderosas que um dia ela costumou ser.
— E quantos já foram?
— Mary foi a primeira de um caso de coma — respondeu, olhando a ponta das sapatilhas vermelhas. — Somando os cânceres, viroses, doenças crônicas, cardíacos, passíveis de amputação, infecções, entre outras… cerca de sessenta.
— Sessenta pessoas — repetiu Brick para si mesmo como se ainda absorvesse a informação. — Como?
Blossom oprimiu qualquer palavra. Seu semblante enigmático desceu das folhagens e dos galhos, passando pelo tronco até chegar às raízes do carvalho-japonês.
— Tudo bem — suspirou Brick, erguendo as mãos em trégua. — Se não quer dizer, não vou ficar insistindo.
O ar foi cortado pelo vibrante toque do celular de Blossom no bolso de sua calça. Ela trouxe à mão o aparelho de capa rosa encrustado por lantejoulas vermelhas em formato de flor e o levou até o ouvido.
— Alô — atendeu. — Ah, eu estou um pouco ocupada, agora, Jerry — Brick, que antes observava sem qualquer traço de emoção no rosto, estreitou um olho e arqueou a sobrancelha oposta. — Me ligue mais tarde, ok? Tchau!
Blossom desligou a chamada e enfiou o telefone novamente no bolso.
— Quem é Jerry? — Brick apressou-se a perguntar. Ele mantinha o tom calmo, mas emendava uma pergunta atrás da outra sem uma pausa para respirar. — É o rato? Ele seu amigo? … É o seu namorado? Ele é bonito?
— Não é da sua conta! Não vou falar — cortou Blossom. — Afinal de contas, veio atrás de mim só para me azucrinar?
— Se for um começo para eu ganhar sua confiança e você parar de ser tão cabeça dura — ele deu ombros —, então, sim!
— Quer ganhar a minha confiança? — Um sorriso irônico brotou. — Pegue o seus irmãos e suma com eles.
— Se isso a deixaria feliz, tudo bem. Mas, e quanto à Bubbles e Buttercup? Não se preocupa com a felicidade das suas irmãs?
— Mais do que pode imaginar.
— Não é o que parece — replicou. — Eu só vejo uma garota teimosa que quer as coisas do seu jeito, sem se importar com o que os outros pensam.
Blossom estreitou o olhar.
— É isso o que você vê?
Brick assentiu.
— Devia tentar compreender o lado dos meus irmãos e eu. O lado das suas irmãs. Devia tentar ver a imagem inteira.
— Eu não vejo a imagem inteira — Blossom tinha o olhar vazio e indecifrável. — Vejo duas imagens menores. Acordo de uma e encaro a outra… todo dia.
Brick suspirou.
— A Fábrica do Mal, a destruição do Ele, suas irmãs me contaram…
— As imagens falam mais do que palavras — ela interrompeu.
Brick estudou sua linguagem corporal.
Seu rosto ligeiramente inclinado para baixo estava abstraído de qualquer emoção, como uma máscara de teatro. Tinha os braços cruzados à frente do peito. A única surpresa que obteve foi ver o colar que lhe-dera de aniversário em seu pescoço, com o pingente de coração entre seus dedos distraídos.
Ver aquilo era o que fazia Brick acreditar que nem tudo estava perdido, que talvez houvesse uma chance, mesmo que pequena. Como um sábio disse uma vez: “Se houver um por cento de chance, devemos ter cem por cento de certeza”.
— Eu quero ver a imagem — ele disse.
Blossom ergueu os olhos para Brick, mas nenhuma emoção veio-lhe ao rosto ou palavra aos lábios. O silêncio só não era absoluto por conta do leve sopro do vento, que chacoalhava as folhas das árvores e ondulava os cabelos de fogo da superpoderosa.
— Muito bem — murmurou ela com a voz monocórdica. — Me acompanhe.
Brick flutuou para fora dos galhos na cola de Blossom, e juntos, voaram na direção oposta ao hospital, cortando o ar com os rastros vermelho e rosa.
O menino desordeiro foi tomado por uma certa expectativa. Por meses, Brick e seus irmãos tentaram entender o porquê de Blossom despreza-los tanto. Pensara no início que era somente birra, ou então, receio por terem sido antigos inimigos. Mas não parecia só isso; parecia ser algo mais. Algo que nem Bubbles e Buttercup tinha ideia do que fosse. E agora, ele estava perto de descobrir o motivo — ou um dos motivos.
Mas essa expectativa rapidamente ruiu por terra, quando pousaram no Cemitério de Townsville. Brick sentiu um calafrio subir pela espinha. Não que ele tivesse medo de cemitério, mas depois que Bubbles e Buttercup lhes-contaram a história da vez em que enfrentaram o mágico-zumbi Abracadáver, Brick tomou receio por cemitérios ou lugares parecidos.
— Vai ficar aí, parado? — Blossom o trouxe de volta à realidade, alguns passos à frente sob o arco do portão. — O que foi? Os mortos o assustam?
Brick retorceu os lábios. “Já fui um deles”, pensou em responder. Lembrava de quando ele e seus irmãos foram destruídos por elas na primeira vez. Primeiro, os beijos; depois, a explosão; e então, os três estavam na dimensão psicodélica do inferno com um demônio afeminado sorrindo para eles de maneira megalomaníaca. Não havia qualquer memória ou resquício do que ocorrera entre a explosão e a ressureição.
Brick limitou-se apenas a responder:
— Não — e a seguiu cemitério adentro.
Após alguns minutos, Brick se encontrava ainda mais incomodado do que antes. Não pelo cemitério em si, afinal de contas, o mesmo era bem cuidado e mais parecia um parque central, com a grama verde aparadinha como em um campo de golfe. As lápides não passavam de pequenas placas de granito no gramado. As árvores eram vívidas e bem floridas, apesar de estarem só no início da primavera.
Mas o que realmente perturbava Brick era o fato de Blossom não proferir uma palavra desde o portão e a estranha sensação desacolhedora que permeava o ambiente.
— Chegamos — Blossom anunciou desprovida de emoção.
Os músculos do rosto estavam duros e sem expressividade, os braços cruzados e a pose rígida. Os olhos inertes e de rosa desbotados, fitavam uma das placas sobre o gramado. Brick desceu os olhos de Blossom para a lapide, e leu o nome gravado em baixo-relevo.
— “Bianca Bean” — Brick voltou seus olhos para Blossom. — Quem é ela?
— Bianca era a irmã mais nova de Julie Bean, uma antiga colega nossa da Escolinha Carvalhinho — respondeu, sem tirar os olhos da pedra e mantendo a voz monótona.
— E como ela morreu?
Blossom finalmente o encarou. Seus olhos antes sem emoção agora atravessavam com amargura os de Brick.
— Você a matou.
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