A MULTIDÃO ESTAVA ENLOUQUECIDA. Gritos ininteligíveis percorriam a praça central de Omashu numa velocidade avassaladora, punhos levantados aos céus numa fúria palpável que trazia calafrios aos poucos que decidiram permanecer em suas casas. Soldados vermelhos e verdes comprimiam a colmeia humana, fechando-a em uma espécie de círculo e mantendo-os sob estrita vigilância. Se um dia duvidou-se que o Reino da Terra e a Nação do Fogo poderiam trabalhar juntos, hoje era um exemplo perfeito dessa capacidade.
O ano era 90 (D.G.). E, neste fatídico dia coroado pelo grande Eclipse Solar, o Avatar foi capturado.
O som de correntes sendo arrastadas foi escutado e, com ele, a voz da multidão se tornou impossivelmente alta. Uma figura de roupas sujas e rasgadas apareceu, seus braços machucados sendo apertados por dois oficiais vermelhos, e rapidamente a plateia abriu um caminho no centro para que os três indivíduos passassem — mas não antes de um homem de braços enfaixados se aproximar e cuspir em cima do prisioneiro, logo sendo empurrado para longe pelos guardas.
Os gritos ininteligíveis começaram a ganhar forma e, enquanto praticamente resvalava pelo chão, Keith entendeu as ameaças dirigidas a si ainda que não virasse o rosto para encará-las.
“Morte ao Avatar!”
“Te vejo no Inferno, seu monstro!”
“Cortem-lhe a cabeça!”
“A culpa é sua, Avatar!”
Ele riu anasalado e olhou de relance para a multidão à sua esquerda, satisfazendo o âmago ao notar como as pessoas encolheram os ombros em medo e se afastaram. “Covardes”, pensou, os orbes brilhando momentaneamente em branco frente ao turbilhão explosivo que se desenrolava dentro de si, “Vocês mesmos causaram essa guerra e ainda me culpam? Que patéti-” — e teve o pensamento interrompido pela sensação de uma queimadura no braço, arrancando-lhe um grito abafado.
— Tente qualquer coisa, — Um dos soldados murmurou diretamente em seu ouvido, a respiração próxima trazendo mais do que simples desgosto e calafrios a Keith — e você morre antes do tempo, Avatar.
“E faz diferença?”, Keith riu sem som, a parte inferior de seu rosto coberta por uma máscara de metal semelhante ao material que prendia-lhe as mãos e que impedia que tentasse qualquer tipo de dobra. Não que fosse realmente tentar, de qualquer maneira. Há muito havia desistido. Supunha que era uma consequência dos vários anos em que optara por ignorar suas responsabilidades: o grande Avatar, mestre dos quatro elementos e com um poder tão inimaginável que seria impossível derrotá-lo. O grande Avatar, genocida, tirano e ditador, o único vilão responsável pela Grande Guerra. O grande Avatar. O Avatar.
A caminhada ao grande palco de madeira tornou-se mais curta e logo a visão da imponente armação tomou sua atenção, a lâmina suspensa tão colossal que certamente só poderia ser obra do chamativo Senhor do Fogo Lotor. Deveras, o próprio se encontrava ao lado da guilhotina, a coroa prendendo-lhe os cabelos em um coque embora alguns fios negros caíssem, emoldurando orbes que pareciam extremamente satisfeitos em ver o Avatar acorrentado à sua mercê. Keith foi empurrado escada à cima e seus pés tropeçaram em si mesmos, levando o corpo enfraquecido ao chão — e sendo pego pouco antes de colidir.
O prisioneiro teve a face levantada por aquele que decidiu seu destino, mãos de pele oliva apertando-lhe a mandíbula para forçá-lo a encarar cruéis olhos azuis. Keith estreitou as irises violetas e forjou desinteresse. Sabia muito bem como funcionava o sadismo de Lotor e preferia morrer a ser tratado como um brinquedo infantil.
— Por quanto tempo achou que se esconderia de mim? — O Senhor do Fogo sorriu largo, unhas cravadas nas bochechas afiladas do Avatar de tal maneira que o outro chiou de dor — Ir a tantos vilarejos certamente não foi inteligente… E matar todos aqueles pobres aldeões? — Apertou mais, trazendo o rosto de Keith tão perto do seu que era capaz de ouvir seu coração — Avatar, sua burrice me surpreende!
Keith piscou uma, duas, três vezes, e permaneceu incólume. Imóvel. A expressão de Lotor lentamente ganhou pinceladas de fúria e o sorriso se deturpou, a boca curvando-se para baixo e o aperto em sua mandíbula ficando impossivelmente forte. Ele parecia querer alguma reação que massageasse seu ego, algo que inflasse a raiva da multidão e lhe desse ainda mais motivos para executá-lo. Ao não receber nada, o Senhor do Fogo o soltou e chutou-lhe a barriga, forçando Keith a se curvar. “Ah, é claro”
— Eu... — Keith tossiu, fincando o olhar no do outro desde seu lugar no chão de madeira envernizada — Eu não estava me escondendo de você. Tire esse pau da bunda, Senhor do Fogo... — e sorriu sarcástico, ainda que não fosse visível através da máscara — Você nunca nem passou pela minha cabeça.
Outro chute foi afundado em sua barriga, subitamente deixando-o sem fôlego. Lotor chutou-lhe as costelas mais um par de vezes, finalizando com um em sua testa que trouxe estrelas à parte interna dos olhos de Keith e, quando foi agarrado pelo colo da camisa em fiapos, o rapaz finalmente sentiu a frieza do medo. Os olhos de seu captor beiravam à loucura, suas pupilas tão pequenas que pareciam duas profundezas escuras do mar. A respiração do Senhor do Fogo estava acelerada e quase animalesca, como um homem que perdeu totalmente as estribeiras da razão em nome da glória.
Keith esperou mais dores; um tapa, um chute, qualquer coisa. Ele só não esperava que o outro abrisse um sorriso de orelha a orelha e deslizasse uma das mãos pela lateral de seu rosto até chegar à nuca, onde agarrou as madeixas negras e puxou-as com veemência, sua faceta absolutamente insana.
— Mas outra pessoa passou, não é? — A cor no rosto de Keith se esvaiu ante o tom glacial e das intenções das palavras de Lotor, que de imediato percebeu e sua satisfação foi quase tangível — Aquele dobrador de água… Foi ótimo quebrá-lo em pedaços. Como era mesmo o nome dele…? — e estreitou os olhos, apreciando o desespero cru que assolou a face alheia — Lio? Lau…?
— V-Você está mentindo! — O Avatar exclamou, debatendo-se para sair das mãos do homem — É mentira! Ele… Ele foi embora! — sentiu o suor frio deslizando por sua testa. De repente faltou-lhe o chão e pôde sentir seu coração estremecer, como se garras afiadas o apertassem de tal forma a extravasar todo o conteúdo. O rosto de Lance tomou figura em sua memória, os olhos bonitos e brilhantes, as tranças e as sardas salpicadas pelo rosto, o nariz com ponta quadrada e para cima, o— Lance. Keith respirou fundo e endireitou as costas, mãos tremendo dentro das caixas metálicas. — Você está mentindo — repetiu, como um fato seguro. Sólido.
— Estou? — O homem de cabelos longos retrucou, tombando a cabeça e se afastando alguns metros. O sorriso vulpino era-lhe de péssimo gosto, como o mau augúrio antes de um explosivo cair. — Isso não importa, não é? Porque agora, — Lotor pausou, sua mão levantando-se para enviar um sinal ao capataz que aguardava ao lado do suporte da lâmina — você irá morrer pensando se é verdade ou não.
Antes que pudesse se pronunciar, Keith foi arrastado para trás pelos guardas. A bomba soltada pelo Senhor do Fogo, por mais que negasse, foi bem sucedida em instalar a dúvida em sua cabeça e agora a face de Lance estava presa em suas córneas. Não haviam se separado em bons termos e arrependimentos assombravam o jovem Avatar, memórias queridas enterradas sob chão salgado de mágoas.
“O que é isso?”, Keith perguntou baixinho, cobrindo a cabeça com o lençol e levantando-a preguiçosamente para olhar o jovem ao seu lado. Lance estava sentado em posição de lótus e o capuz do casaco felpudo da Tribo Sul envolvia-lhe os cachos castanhos, as tranças curtas ocasionalmente balançando contra o queixo afiado conforme ele mexia os braços de seu jeito tipicamente enérgico. Ao ouvi-lo, fitou Keith e o vislumbrou com, quiçá, um dos sorrisos mais brilhantes que o mais velho já vira.
“Te acordei? Desculpa”, Lance não parecia nem um pouco apologético, aproximando-se mais ainda de Keith e estreitando os olhos do jeito que fazia borboletas nascerem em sua barriga. “Senta aí”
Keith se sentou, é claro. Não se importava com o frio cortante que pintava a paisagem branca fora da caverna onde se abrigaram; não quando podia usá-lo como desculpa para ficar mais perto de seu companheiro de viagem. E assim o fez, aproximando os joelhos do peito e apoiando o peso do corpo na lateral alheia. Lance repetiu seu gesto e Keith prontamente ignorou a pontada em seu coração.
“Estava testando uma coisa”, ele comentou risonho, abrindo a bolsa de água e mexendo as mãos em um movimento de maré para que o líquido saísse. Moveu-as, então, em um formato ovalado e repentinamente cerrou os punhos, congelando a água e transformando-a numa pedrinha de gelo que caiu em sua palma aberta. Lance segurou-a e mostrou o objeto ao Avatar como uma criança que havia acabado de encontrar uma concha bonita na praia, embora o sorriso semiaberto de cantos unilateralmente levantados indicasse que era algum tipo de pegadinha.
“Uh… Legal?”, Keith hesitantemente elogiou, arrependendo-se de imediato ao ouvi-lo rir com um grunhido. Irritado, desenhou um círculo pequeno com a pontinha do dedo indicador e soprou, derrubando Lance com a esfera de ar. Este, caído de costas no chão da caverna, soltou uma gargalhada progressivamente alta ao ponto de assemelhar-se a um porco. “Lance!”
“D-Desculpa!”, pronunciou entre gargalhadas, lentamente se sentando e afastando as lágrimas nos cantos dos olhos, “Pffft, deveria ver a sua cara! Hahah!”, outro som de porco.
Keith fechou a cara e sentiu a raiva borbulhando junto à vermelhidão das próprias bochechas e, antes que pudesse pensar, seu punho foi de encontro ao ombro de Lance para derrubá-lo mais uma vez; entretanto, quase instantaneamente o mais novo fugiu e levantou as mãos em rendição, agachado sobre os calcanhares enquanto engolia as risadas. “Espera! Espera, é sério agora!” Ele pediu, finalmente parecendo se acalmar após respirar fundo e ver que Keith não tentaria matá-lo novamente. Lance engoliu em seco e abriu um sorriso trêmulo, aproximando-se como quem tenta domesticar um animal selvagem, e se sentou com cuidado na frente do rapaz. “Me dá suas mãos”
“C-Como é?”, o outro titubeou, enrubescendo-se por um motivo completamente diferente ao anterior. Lance revirou os olhos e bufou e Keith sabia que isso deveria parecer irritante, mas era estranhamente adorável agora — e ele certamente não soube como reagir ao ter suas mãos enluvadas agarradas com veemência. Por isso, recorreu ao primeiro pensamento possível. “Você não vai congelar minhas mãos, vai?”
Lance o fitou como se sua cabeça fosse feita de repolhos.
“Talvez”, respondeu, a boca tremendo como se segurasse uma risada. O garoto espalmou as mãos do Avatar entre eles e as cobriu lateralmente com as próprias, formando uma espécie de casulo. Após isso, trancou olhos azuis com violetas e, naquele instante, Keith prendeu a respiração. “Faz um foguinho aí nas suas mãos. Mas pequeno, né? Não vá queimar a gente”, Lance riu meio sem graça, mas com a voz firme para incentivá-lo.
Se ele manda, Keith obedece. Logo, um dos homens mais poderosos do planeta fez um foguinho minúsculo entre as mãos.
O rosto do dobrador de água se iluminou e, desta vez, aparentava ser sincero. Ele olhou entusiasmado para Keith e meneou a cabeça em agradecimento silencioso, pouco antes de pegar o cubo de gelo previamente feito que estava largado no chão e que, devido à baixíssima temperatura, não havia derretido completamente. Lance, então, meneou as mãos para manusear o estado da água congelada ali, girando-as sobre a cabeça e esticando-as, o elemento voltando ao estado natural e seguindo cada movimento.
“Pare de se achar e ande logo com isso”, Keith grunhiu, recebendo apenas uma risada anasalada como resposta.
As mãos de Lance voltaram para perto das suas e giraram em cima do pequeno fogo fátuo, fazendo com que a água acompanhasse numa espécie de redemoinho. Foram descendo, descendo, até que o jovem circulou o fogo inteiramente e cerrou as mãos, finalmente congelando-o. Seu espectador piscou incrédulo um par de vezes, alternando o olhar entre o entusiasmo palpável de Lance e entre o cubo de gelo que havia, literalmente, apanhado o pequeno fogo, mantendo-o intacto dentro de si.
“Não fode”, ele disse com muita elegância, pegando o cubo e erguendo-o entre o polegar e o indicador para olhá-lo mais perto. Lance estava quase explodindo de orgulho.
“Eu sei! Incrível, né?!” O rapaz saltitou nos calcanhares, um rubor bonito colorindo-lhe a pele escura.
“Que… bonito”, concordou, mesmerizado pela imagem do fogo congelado “Não havia pensado nesse tipo de utilidade”
“Ah! Espera aí”, Lance recordou-se de algo, chamando-lhe a atenção. “Falta mais uma coisa…”
Com uma cautela inédita para alguém de seu caráter, Lance voltou a pegar as mãos de Keith entre as suas e segurou o cubo, dando um beliscão com o dedo anelar. O Avatar franziu o cenho, prestes a perguntar-lhe o que estava fazendo, quando a camada exterior caiu. O cubo de fogo congelado agora tinha um esquisito formato semelhante a dois triângulos unidos pela ponta e, por algum motivo, seu companheiro o olhava com um brilho diferente nos olhos, um estranho pudor pintando-lhe as ações.
“É pra você”, o dobrador murmurou, a voz rouca e insegura. Keith não estava entendendo nada, então franziu ainda mais as sobrancelhas e, conforme Shiro tinha lhe aconselhado, mais uma vez disse a primeira coisa que passou por sua cabeça.
“Oh, hm, obrigado pela batata?”
O sino de Omashu ressoou marcando meia-noite e, com ele, o horário da sentença do Avatar. Keith foi arrastado até uma barra e sua cabeça, colocada na pequena depressão antes de outra barra descer e paralisá-lo no lugar. Poucas coisas se remexiam em si a não ser a enfadonha incerteza do paradeiro de Lance, as palavras venenosas do Senhor do Fogo infeccionando sua prévia desistência.
Quando fora capturado, Keith achou que era um sinal de que sua hora havia chegado: não importava mais se o que diziam sobre ele era real ou não. Lance e Shiro já não estavam mais com ele, então por que deveria insistir? Se sua existência causava tanta fúria e dor, sua morte parecia ser a única solução — inúmeras aldeias foram queimadas e exterminadas por sua causa, uma perseguição iniciada pelo Senhor do Fogo Zarkon e posteriormente continuada por seu filho, Lotor, e o conhecimento disso pregou um papel muito importante em sua captura. Tudo ficaria melhor com sua execução, era óbvio só de olhar para a multidão furiosa que o assistia. Mas…
“Até quando você vai fugir disso? Eu sei que você nunca quis ser o Avatar, Keith, mas você é! Então engole esse choro, aguenta o trampo e vai treinar naquela cachoeira!”
Keith suspirou, sôfrego. Era meio tarde para mudar de ideia quando a corda da lâmina já estava nas mãos do capataz, sua sentença sendo lida pela voz firme de Lotor e marcando os segundos antes da quebra do Ciclo Avatar e, consecutivamente, do fim da Guerra dos Cem Anos.
“Já que você é tão foda, Keith, pode continuar a viagem sozinho! Eu vou voltar para a Tribo Sul, de onde eu nunca deveria ter saído!”
“Por que você tenta fazer tudo sozinho?! Vai acabar se matando e então o que eu faço? Que droga, Keith!”
“Relaxa, cara. Se um dia te pegarem, prometo que vou correndo te salvar com minha mira de corvo-águia!”
“Aquele dobrador de água… Foi ótimo quebrá-lo em pedaços. Como era mesmo o nome dele…?”
O coração de Keith bateu forte contra seu peito, um fogaréu irradiando desde o esterno até a ponta dos dedos das mãos. Não podia desistir ainda, não podia morrer com esses arrependimentos sem ter a certeza de que Lance estava seguro. Não podia desapontar Shiro dessa maneira, Allura, Hunk, Pidge, Krolia, todos os que haviam acreditado em si ainda que seu rosto estivesse em todos os cartazes possíveis de procurado. Força de vontade brotou dentro de si e Keith fechou os olhos, concentrando-se com todas as forças para chamar suas vidas passadas. Não desistam ainda de mim, por favor. Eu preciso de sua ajuda para fazer isso dar certo!
Sentiu, então, a energia dos Avatares antigos preenchendo-o por inteiro e sua consciência mesclando-se, a vertigem tão familiar e calorosa da união dos quatro elementos fazendo-se presente. Cerrou os punhos dentro das caixas metálicas, rezando, rezando, rezando—
— Huh? — Keith murmurou para si mesmo quando, tão rápido como a sensação veio, ela foi embora, deixando-o como um balão desinflado e gélido.
Os Avatares não estavam respondendo. Suas ações haviam cortado sua confiança.
Não havia mais o que fazer.
— Cortem a corda!
Keith fechou os olhos e permitiu que sua cabeça tombasse em desistência, lágrimas ardendo sob pálpebras fechadas e boca torcida em autopunição. Embora não merecesse, permitiu que seu último pensamento fosse sobre os olhos bonitos de Lance e suas tranças ridículas.
— Keith!
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