-... la morrer aqui, vamos ter problemas!
...
-... dado! A situação já está bem ruim, do jeito que está!
-Ele está acordando.
-Ela...
...
Por um longo, interminável espaço de tempo, nenhuma das vozes fazia sentido. Primeiro, não as reconhecia. Segundo, os períodos de inconsciência começavam de repentem, engolino os segundos de lucidez. Mas por mais que desmaiasse, a sensação de ter sido amassado, mastigado e cuspido não desaparecia. Era um desmaio doloroso, em que apenas não podia acordar o suficiente para reclamar.
Abri um olho. Os dois era impossível. Sentia meu rosto inchado e disforça, não sabia dizer se minha pálpebra tinha inchado até tocar a maçã do rosto, ou ela tinha subido até o olho. Provavelmente, um pouco dos dois. Havia um teto desconhecido, com uma lâmpada fluorescente, e um par de olhos negros me encarando. Gemi e tentei me levantar, mas no mesmo instante, mãos pesadas me impediram e gemi de novo, porque essa pequena luta corporal era desafiadoramente dolorosa.
-Fique deitado. Você está horrível – pisquei e analisei aquele rosto pequeno, quase infantil, e os olhos negros que destoavam do restante muito branco – Se lembra do que aconteceu?
-Eu... – minha voz soou baixa e rouca, minha garganta estava seca demais para falar.
-Mestre, deixe ela em paz, por favor – o pronome feminimo me colocou em alerta e sentei depressa. Derrubei o garoto de cabelos descoloridos e quase caí sobre ele quando minhas costelas machucadas doeram como novos golpes – Você NÃO PODE se mexer, onee-sama!
Fechei os olhos com força, reprimindo a vontade de gritar. Me empurraram de volta para o colchão fino e fiquei imóvel, respirando devagar. Quando meus pulmões se enchiam, pareciam que iam se rasgar.
-Mestre, por favor... – aos poucos, parei de prestar atenção na dor para entender o que acontecia ao meu redor. Abri os olhos de novo e imediatamente reconheci o homem alto, de cabelos negros e braços fortes, que me cumprimentara no primeiro dia na casa de Reita. Ele parecia cansado, mas era gentil com o garoto que me observava pelo canto do olho – Kiyo vai voltar logo, você pode esquentar água?
-E se ele morrer aqui?
-Ninguém vai morrer. São só uns hematomas – tranquilizou o rapaz moreno, empurrando o garoto para longe do meu campo de visão. Se virou com um suspiro e me encarou. Imediatamente, endireitou os ombros e se ajoelhou ao lado do colchonete, curvando-se – Perdoe-nos pelas acomodações, onee-sama.
Acenei com a cabeça e devagar, dessa vez com paciência, me apoiei nos cotovelos – O que aconteceu?
Ele se endireitou e me encarou com um pouco de desconfiança – Na verdade, eu quem gostaria de perguntar isso. Onee-sama estava caída na estrada, pensei que houvesse batido a moto, mas... mas isso não são ferimentos de acidente.
Meus olhos se encheram de lágrimas e ele se precipitou depressa, me ajudando a sentar – Eu sinto muito! Não quis... não chore... Eu não sei o que fazer se você chorar!
Respirei fundo, ignorei a dor e tratei de não deixar nenhuma lágrima cair. Forcei um esgar que lembrava um sorriso e levei uma mão ao rosto, tocando meu maxilar ferido.
-Não foi um acidente – respondi sem rodeios, encerrando o assunto, como eu sabia que ele entenderia – Você me conhece, mas naquele dia, não fomos apresentados.
-Sim, é verdade. Meu nome é Uke Yutaka –inclinou-se novamente, mas eu só consegui me torcer sem jeito – Minha família serve a casa Matsumoto, e para minha honra, sou mentor do jovem Takanori-sama.
Olhei por cima do ombro dele, o garoto de cabelo descolorido esperando paciente a chaleira no fogão. Naquele dia, quando o vi pela primeira vez, sabia que ele não era um homem comum, mas pensei, naquele instante, que ele devia ser mais perigoso do que Reita jamais seria.
-Pode me chamar de Kou, sem tantos honoríficos – pedi, enrolando a língua meio pastosa – Eu fico sem jeito... Pode me dar água?
-Vou fazer um chá.
Enquanto ele se afastou, fiz uma análise superficial do estrago que sofrera. Meu rosto parecia desfigurado, mas a pior dor era do olho fechado. Sentia todos os dentes no lugar, alguns cortes, mas nada que ainda sangrasse. Meu medo era meu tórax, mas ir ao hospital não era uma ideia nem mesmo razoável. Queria que Reita estivesse ali...
Epa, não mesmo! Precisava pedir a ajuda dele, mas não nesse sentido, não como se ele pudesse me salvar como uma heroína indefesa de dorama. Precisava de um banho, de analgésicos e uma cama, mas não sabia por onde começar. Yutaka não era confiável, mas não me matara, nem sabia que eu não era apenas a namorada esquisita de Reita. Se ao menos tivesse o meu celular...
-Chá – o garoto chamado Takanori se ajoelhou ao lado do colchonete e me estendeu o copo tradicional, dando de ombros com a minha demora – Kiyo foi buscar o seu namorado. Não da para contar ao Reita, por telefone, que a namorada dele está na sua casa, sabe – aceitei o copo com lentidão, incômodo com aquele olhar – Mesmo você não sendo uma garota.
Quase derrubei o chá sobre as minhas pernas, mas as mãos dele eram firmes. Yutaka estava do outro lado do pequeno apartamento, distraído com alguma coisa, e não parecia ter nos ouvido.
-Tudo bem, não se preocupe. Eu não vou falar nada para ninguém – soergueu os ombros e se sentou no chão, me olhando beber o chá devagar. Era um bálsamo na minha boca seca e ferida – Ele sabe?
-Reita?
-Hm.
Concordei com a cabeça, devagar.
-Bom, se ele sabe, não tem por que ficarmos pensando nisso – revirou os olhos e sorriu, me deixando nervoso – Vocês namoram de verdade?
Fiquei imediatamente vermelho.
-Vocês se amam? Vocês namoram por que se amam, não é mesmo?
-Eu não sei se... se pode ser colocado assim...
-Vocês já fizeram sexo?
Quase cuspi o gole de chá e comecei a tossir. Yutaka nos lançou um breve olhar, depois sumiu pelo corredor, talvez aliviado que Takanori estivesse conversando normalmente comigo.
-Takanori-sama, eu...
-Me chame de Taka. Eu gosto de você, devíamos ser amigos – decretou com uma empolgação grotesca, infantil, que me dava arrepios, porque aquele olhar não era de uma criança - Pode me ensinar a fazer sexo com um homem?
Meu coração disparou e tinha certeza de estar vermelho, horrorizado e em pânico. Takanori se aproximou, quase colando o rosto no meu.
-Tem um homem com quem eu quero fazer isso... mas você pode me ensinar antes – tocou de leve a testa na minha, os olhos tão próximos que eu nem conseguia pensar de vergonha, então se afastou depressa, sério – Você tem febre.
Se levantou, tão rápido quanto tudo antes, e foi atrás de Yutaka, me deixando para trás com a certeza de que devia ir embora logo.
Me levantei devagar, tentando ser silencioso, mas nenhum dos dois parecia estar voltando. O chá me despertara e devolvera uma ínfima parte da minha força de vontade, o que aumentou minha necessidade de ir embora. Me apoiei na mesa, depois na parede, e fui aos poucos me aproximando da porta. Olhei para trás algumas vezes, mas nenhum dos dois voltou.
Se eu ao menos tivesse a moto...
Duas batidas fortes na porta me fizeram parar. Meu coração estava batendo na garganta, como se pudesse sair, e as células inteiras do meu corpo gritavam perigo. Como um fantasma, Yutaka se materializou do meu lado, correndo, e me empurrou para trás de si, ficando entre mim e a porta. Vi a arma na sua mão e tive vontade de gritar, mas sabia que não era uma boa ideia. Acompanhei com o olhar mudo ele espiar pelo olho mágico da porta e demorei a perceber sua postura relaxando, porque a minha mente não via motivo para tal. Guardou a arma depressa e destrancou a porta, correndo ferrolhos e travas exageradas.
Reita surgiu pela porta antes que eu entendesse que estava tudo bem. Abraçou-me sem força, com medo de me tocar, mas eu o sentia tremendo contra mim e isso doía, porque o tinha preocupado. Parou com as mãos a centímetros do meu rosto, sem coragem de tocar os ferimentos, e eu via nos seus olhos como estava assustado. Não sabia quão grave parecia, mas eu na verdade estava aliviado. Reita estava bem. Reita não estava com raiva.
Estava tão aliviado!
Eu mesmo segurei seu rosto e o beijei.
Reita ficou tão surpreso que não reagiu. Me afastei minimamente, mas continuei abraçado a ele, o ar finalmente entrando e saindo sem me dilacerar, porque estava aliviado de verdade. Não sei o que esperava. Que Reita não aparecesse nunca, que não me quisesse por perto nem para me permitir explicar por que sumira o dia todo, que me odiasse. Esperava talvez nunca mais vê-lo, mas ali estava ele, tremendo mais do que eu.
Mas ainda estávamos naquela casa estranha, e não estávamos sozinhos. Reita me segurou, gentil, mas firme, e eu me afastei, ficando ao seu lado. Minha cabeça começava a girar, mas não ia desmaiar de novo.
-Yutaka-san, estou em débito com você – até a voz dele estava instável, uma coisa que eu não esperava – Com certeza, não vou me esquecer disso.
Yutaka se curvou com humildade, a expressão consternada, e eu quase, quase acreditei que ele se sentia assim.
-Reita-aniki-sama não me deve nada. Eu apenas fiz o que deveria e Matsumoto Takanori-sama ficou muito feliz em poder ajudar.
-Por favor, transmita meu convite a Takanori-san, gostaríamos de retribuir toda a ajuda. Minha casa está aberta para recebê-lo.
Uma parte pequena da minha cabeça cansada registrou aquele músculo tremendo no rosto de Yutaka, como se ele mal pudesse se controlar para não rir. A outra grande parte da minha cabeça estava lidando com a sensação de tontura e um peso anormal. Eu definitivamente precisava ver um médico.
-Rei... – sussurrei, me apoiando um pouco no seu braço. Reita imediatamente passou um braço pela minha cintura e se despediu, acenando com a cabeça. Lancei um último olhar a Yutaka, esperando que ele reconhecesse minha gratidão estampada no único olho aberto, e passamos pela porta.
Havia uma mulher ali. Uma mulher que despertou meu reconhecimento, mas não forte o suficiente naquela hora. Descemos a escadaria de metal, quase jogado sobre Reita, trincando os dentes para não reclamar a cada passo. Uma porta de carro abriu e bateu e os passos largos de Aoi ecoaram pela calçada vazia.
-Onee-sama! – tomou meu outro lado e, junto com Reita, quase me tiraram do chão. Fui colocado no banco de trás do carro e tomaram os bancos da frente. Esperava ver um motorista, mas era Aoi quem dirigia. Fiquei o caminho todo pensando nisso, principalmente porque minha mente dava voltas sem controle.
O carro deu um solavanco tão forte que quase saltei do banco e em seguida o carro parou. Quando Reita abriu a porta, estávamos na grama, dentro do jardim dele, e eu só queria dizer que meu caso não era tão grave para aquela comoção, mas não disse nada porque a movimentação me fez ficar muito, muito zonzo.
Aoi novamente lhe ajudou a me arrastar para fora. Sabia que era tarde, mas as luzes estavam todas acesas. Ergui os olhos e vi Aiko parada ali, de pijama e moletom, os olhos arregalados e vermelhos, como se não tivesse dormido por minha causa. Queria pedir desculpas a ela, mas no fim, desmaiei de novo.
A primeira coisa que percebi foi que a dor não era mais insuportável. A segunda é que alguma coisa me impedia de tentar abrir os dois olhos. Abri aquele que eu já sabia estar inteiro e fitei Reita, sentado do outro lado do quarto, com os braços cruzados na altura do peito. O nariz quebrado tinha virado uma massa roxa que se espalhava debaixo dos olhos, aumentado pelas olheiras, e ele não tinha trocado de roupa ainda.
-Você não vai me matar?
Reita riu pelo nariz, chacoalhando a cabeça de leve. O breve movimento parecia lhe causar dor – Na verdade, morrer é tão perto do que podia ter te acontecido ontem, que eu perdi completamenta a vontade.
Isso era pior do que se ele estivesse com raiva, porque agora, bem, agora estava arrasado pela culpa.
-Tem ideia do que eu passei atrás de você?
-Eu sinto muito.
-Eu sei que sente, merda! Mas eu estou apavorado! – ele controlava a voz, mas bem poderia estar gritando. Ninguém nos interromperia se ele quisesse me socar depois daquilo. Era um tanto perturbador, mas era verdade – Estou com raiva, e estou morrendo de medo! Porque você some, é quase espancado até a morte e eu não estou lá para impedir!
Não tinha como impedir. Havia pago um preço e Reita não tinha nada a ver com aquilo. Pelo menos, enquanto eu não permitisse.
-Nós vamos encontrar quem fez isso, você me dizendo ou não.
-Não! – me sentei com dificuldade, notando aos poucos que estava cheio de ataduras e um cheiro forte que não reconhecia – Reita... Não. Eu preciso que você esqueça, porque acabou aqui. Só... só acabou.
Reita se levantou e pensei que fosse sair, mas ao invés disso, vi seus ombros encurvarem com um peso invisível e se sentou na cama, desanimado.
-Isso nunca vai acabar, você não vê? – sussurrou com um pesar doloroso, evitando me olhar – Você pode sair e viver sem isso, eu juro por deus, eu nunca mais vou deixar nada disso te atingir, mas isso... Isso! – ergueu os braços e os largou de volta no colo, encolhido – Isso que nós somos nunca vai acabar.
Tentei segurar a sua mão, porque se eu a tocasse, se a segurasse ali comigo, ainda estaríamos unidos de alguma forma. Mas ele estava distante.
-Rei...
-Lan está morto.
No fim, eu também me sentia distante.
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