Yutaka
Estava exausto. Havia sangue nas minhas mãos, debaixo das minhas unhas, nos meus sapatos, na minha camisa branca que agora jogaria fora sem pensar duas vezes. Odiava isso. E me odiava muito mais por não poder sair desse caminho. As luzes no pequeno apartameno ainda estava acesas, então não poderia entrar sem chamar atenção.
O conjunto no subúrbio tinha dois andares e seis apartamentos em cada. O nosso era o último, mais distante. Os vizinhos haviam se mudado, então a paz era relativamente maior. Não que pudessemos reclamar. Atualmente, qualquer espécie de paz era bem vinda.
Subi as escadas de metal com a cabeça latejando e a sensação de que não estava tão frio quanto sentia. Puxei o paletó sobre o peito e cruzei os braços, me aquecendo e escondendo o sangue. Uma porta se abriu e cruzei por pessoas que não conhecia, bêbados demais para notar o quão suspeito parecia. Quando suas vozes desapareceram, já estava na frente de casa. Tirei a chave do bolso e entrei depressa, trancando de volta. Haviam mais dois ferrolhos e as janelas tinham grades que eu mesmo instalara.
Deixei os sapatos ali e tirei o paletó com um arrepio, apressando-me na direção do banheiro, perto da entrada.
-Você chegou tarde – uma cabeça anormalmente loira se ergueu de onde estivera deitado no sofá e Takanori me encarou com sua desconfiança ferrenha. Me reprimi para não rosnar uma praga – Onde estava?
-Que merda aconteceu com o seu cabelo? – ignorei-o enquanto tirava a camisa e jogava no lixo do banheiro. Meu peito também estava sujo, mas me ative primeiro às mãos.
-Eu descolori, por quê?
Fiz uma careta – Ainda pergunta por que.
Uma sombra parou contra a porta e reconheci outro olhar desconfiado e desdenhoso que não precisava encontrar tão cedo.
-Vai limpar essa pia – disse simples, seguindo seu caminho para a cozinha. De todas as pessoas insuportáveis que poderia ter que aguentar debaixo do mesmo teto, aquela mulher era a pior.
-Por que deixou o mestre descolorir o cabelo? – desisti de limpar tudo debaixo das unhas e resolvi descontar minha raiva em Kiyo.
Ela ergueu seus olhos grandes e escuros da xícara que segurava e jogou os ombros para trás, afastando os cachos escuros.
-Não sou a babá dele. Quando Nanami-sama morreu, a proteção física do mestre foi confiada a mim, mas quem deveria mantê-lo na linha é você, senpai.
Esfreguei o rosto com as duas mãos e fui até Takanori, empoleirado no sofá de dois lugares. Não podia dizer que estava lindo com aquele cabelo quase branco, mas poucas coisas não lhe caíam bem. Engoli em seco e toquei seu rosto pálido por um momento, preocupado com aquelas olheiras constantes. Ele só tinha quatorze anos, nem deveria estar naquele lugar, com pessoas como Kiyo e eu.
-Você precisa dormir, tem aula amanhã de manhã.
-Onde você estava? – insistiu, a desconfiança dando lugar a uma tristeza que me partia a alma em pedaços – Está machucado?
Neguei com a cabeça e Takanori se apoiou nos joelhos sobre o sofá, abraçando-me pela cintura. Queria poder afastá-lo, mas eu também não era tão forte assim. De certa forma, ele também era tudo que me restara de família.
-Vou matar qualquer um que machucar você – sussurrou contra a minha pele, enviando arrepios infinitos pelos meus braços. Era assustador como não me importava mais com aquelas emeaças, mesmo que fosse verdade.
Kouyou
Shiro-san ainda estava dormindo profundamente quando acordei, assustado por ter pego no sono enquanto a observava. Imediatemente senti aquele aperto no peito que vinha me acompanhando nas últimas horas e senti vontade de socar alguma coisa. A porta do quarto deslizou e Reita sorriu fechado quando me viu desperto. Acenou com a mesma mão que segurava um copo descartável de café e eu me levantei, seguindo-o para fora.
A luz do corredor parecia forte demais depois de dormir e esperar na penumbra, mas não reclamei. Sentamo-nos no sofá do corredor e me estendeu o café, ainda fumegante.
-Obrigado.
Tomei alguns goles, mas ele não se moveu. Parecia mais sério do que eu. Na verdade, me sentia ridículo demais para pensar que parecesse menos do que isso. Era tudo minha culpa.
-Não é sua culpa, sabe disso.
-Tem que parar de ler meus pensamentos – murmurei sem vontade, ainda que surpreso.
-Seu rosto diz muita coisa – defendeu-se e finalmente tomou um gole. Fez uma careta e engoliu depressa, reclamando. Estava mesmo quente – Sei perfeitamente que está se culpando, e isso é um absurdo. Ela é inteligente, sabe que essas coisas acontecem. Além do que, os médicos disseram que ela está ótima.
-Ela foi atropelada, Reita. Ela não pode estar ótima – rebati, pessimista demais para acreditar que não sairia com um kharma pesado dessa vida – Agora ela vai acordar e ficar sabendo que quase perdeu o bebê que nem sabia estar esperando – essa também era uma surpresa bem grande para mim.
Reita bufou e acertou meu ombro com um soco nem tão leve assim – Mas ela NÃO perdeu. Chega de ser dramático. Vamos descobrir se Starish está por trás desse incidente, ou seja lá quem for. Ninguém desaparece completamente com um carro, Kou.
Meu estômago, que já andava estranho, se apertou de leve, e era difícil não sorrir. Não tive uma infância muito fácil, depois uma adolescência de merda e me tornara um adulto problemático. Era fácil demais ficar amolecido quando Reita tomava uma posição toda segura comigo. Era muito, muito fácil.
-Achei vocês! – nos viramos ao mesmo tempo que uma enfermeira olhou feio para Aoi – Opa, falei alto. Então – sorriu de maneira carinhosa e se sentou ao lado de Reita, exalando prestatividade – Imaginei que vocês quisessem descansar.
Neguei com um aceno decidido – Não vou deixar a minha amiga sozinha agora.
-Eu fico aqui – disse depressa, acomodando-se melhor no sofá – Faço a proteção dela, pode ter certeza – piscou um olho, querendo me passar uma confiança que não sentia. Procurei pela opinião de Reita, mas ele parecia distraído – Não vou deixar ninguém suspeito passar.
Engoli em seco e endireitei as costas. Estava mesmo cansado. E estava com tanta fome que nem conseguia mais pensar direito. Eram quase oito horas naquele hospital.
-Certo. Ela não tem família na cidade, então não deixe ninguém entrar. Dificilmente alguém do jornal viria, então, não deixe ninguém entrar – pensei melhor por uns dois segundos de tensão – Na verdade, se alguém aparecer, me ligue. Só se lembre de não...
-... deixar ninguém entrar. Entendi – era estranho, mas sentia que podia confiar um pouco naquele cara que atirava primeiro para perguntar depois – Pode ficar tranquila, Kou-nee-sama.
Mordi o interior da boca e assenti. Reita se levantou primeiro e o imitei – Então nós estamos indo. Relate qualquer problema, Aoi. Vou mandar Seiru com alguns garotos até o depósito da rodovia. Podemos encontrar alguma coisa.
-Mande o Seiru e o Gai.
-Certo.
Tocaram-se as mãos num cumprimento informal e partimos. Joguei fora o copo de café e abracei o tronco, tentando me aquecer. Um vento incômodo vinha pelo vão da escada e só piorou no andar de baixo. A porta do estacionamento estava aberta e saímos por ali. Ainda havia vários carros, mas a moto de Reita era a única. Me estendeu o capacete e parou, os olhos estreitos que pareciam querer mesmo poder ler meus pensamentos.
-Quer ir para casa?
Ri com a ideia. Que casa? Onde estava me escondendo?
Mas não diria isso a ele, não poderia magoá-lo quando estava sendo tão gentil.
-Você por acaso não tem um saco de areia, tem?
Reita sorriu de canto e tirou a própria jaqueta, me estendendo – Tenho uma coisa bem mais legal.
Vesti a jaqueta e coloquei o capacete sem protestar. Dessa vez, quase o abracei quando subi na moto, mas se o incomodava, ele não disse. Talvez soubesse como me sentia.
Havia um portão nos fundos da propriedade dele e entramos por ali, sem sinal de seguranças na porta, mas um deles logo veio pegar a moto para guardar. Super eficientes. Segui Reita pelo gramado até uma espécie de armazem baixo, que na verdade se revelou, logo que a porta foi aberta, em um pequeno dojo. Aquilo era bem mais legal do que eu podia imaginar.
-Você tem umas coisas realmente interessantes em casa – comentei com um sorriso divertido. Até mesmo a culpa e a preocupação podiam diminuir um pouco com aquelas surpresas.
-Meus truques para conquistar as garotas – se ele não tivesse me contado que nunca namorara sério, poderia acreditar. Encareio-o com as sobrancelhas erguidas e ele piscou um olho – Tira os tênis e a jaqueta, vou aquecer você.
Me virei de costas depressa, antes que ele visse o rubor que me subiu pelo rosto com aquela frase. Andava criando teorias demais à respeito de Reita, mas precisava lembrar que afinal, não estava ali para me divertir. Não que estivesse sendo um grande esforço, mas não podia abusar dele. Não mais do que já estava abusando.
Quando me virei, puxando as mangas da camiseta até os cotovelos, Reita tinha tirado a camiseta e pulava na ponta dos pés descalços, soerguendo os ombros. Inclinei a cabeça de leve, tentando fazer uma pergunta muda. Ele sorriu e fez sinal para me aproximar. Pegou do chão dois aparadores pequenos de chute, colocando-os nas mãos nuas.
-Eu geralmente uso um saco de areia, de fato, mas não gostaria que você quabrasse os dedos. Acha que consegue chutar aqui – sorriu presunçoso e ergueu uma sobrancelha, como se deixasse bem claro que não botava fé nisso.
-Você vai se arrepender – ri comigo mesmo e fui para o banco encostado em uma das paredes – Posso pegar essas?
-Vá em frente.
Vesti as luvas vermelhas pesadas e me senti um pouco melhor. Fazia séculos que não praticava, mas me fora muito útil quando nada mais parecia esvair meu estresse acumulado. Não que tivesse me ajudado a me defender. Relaxei os ombros e voltei até Reita, começando a aquecer o corpo todo com aqueles pulos rápidos no mesmo lugar.
-Vamos, gracinha – brincou, um sorriso largo no rosto normalmente pálido. Arregalei os olhos e bati um punho no outro, balançando a cabeça – Opa, deixei alguém irritado?
Não disse nada, apenas avancei sobre ele e soquei com todas as minhas forças. Reita recuou dois passos para não perder o equilíbrio e me encarou com mais seriedade.
-Ok, se está mesmo sério... – ajeitou os ombros e ergueu os aparadores mais ou menos na altura do seu rosto, a uma distância segura.
Não percebi quanto tempo continuei descontando nele minha frustração, mas em algum momento, fiquei ensopado de suor e Reita parara de rir. Julgando que fosse o suficiente para aprender a não me subestimar, me afastei um pouco e chutei. Por um instante entrei em pânico porque ele baixara a guarda, certo que tinha cansado. Tentei mudar o ângulo e ele desviou ao mesmo tempo.
Meu pé cheio de suor escorregou no tatame e caí desajeitado no chão, mas não completei o serviço até conseguir fazer Reita se atrapalhar comigo e cair também. Cheguei a esperar a dor extra, mas ele tinha alguma habilidade e conseguiu se apoiar nos cotovelos ao invés de me esmagar.
-Ai... Sinto muito – resmunguei com os olhos ainda fechados. Minha bunda ia ficar roxa.
-Erro meu. Achei que tinha jogado a toalha – riu com diversão, perto demais. Quando soprou o ar, seu hálito quente batia no meu pescoço. Engoli em seco e forcei um sorriso, abrindo os olhos. Reita não se movera nem um milímetro, encarando-me com tranquilidade – Mas é claro que você não desistiria.
-Está aprendendo a me entender – consegui responder com alguma normalidade – Hmm, será que pode se levantar?
-Você é sempre tão orgulhoso com tudo?
-Não sou orgulhoso – rebati com uma sensação incômoda na boca do estômago – Sério, você é pesado.
-Mesmo?
Em vez de le levantar, Reita apoiou o resto do peso em mim. Comprimi os lábios e estreitei os olhos, ansioso.
-Reita...
-Quando entendi como tinham se envolvido, eu fiquei um pouco irritado, porque pensei que você fosse mais difícil.
-Eu vou quebrar a sua cara, bastardo – rosnei entredentes.
-Também o ameaçou até que Starish o levasse para a cama?
Ergui a cabeça com toda a força que tinha e bati na dele. O som oco e pesado me fez ter náuseas, mas compensou quando imediatamente senti Reita rolar para o lado. Rolei sobre ele e o prendi com as minhas pernas e braços.
-Se queria me irritar, você conseguiu – sorri com alguma histeria, porque minha cabeça estava doendo bastante. Reita tinha os olhos cheios de lágrimas e me encarava com fúria – Eu disse a verdade, não sou orgulhoso. Não tenho nenhum apreço especial por esse corpo inútil, e se alguns imbecis se atraem por ele, só facilitam meu trabalho. Não tive tempo de criar sonhos românticos, Reita-sama. Então se quiser que eu pareça “difícil” para soar divertido dormir comigo, posso fazer isso também.
Soltei seus braços e me sentei sobre seu quadril, obrigando-me a desviar os olhos. Minha garganta estava apertada. Droga. Odiava admitir coisas do meu passado, ainda mais na frente de estranhos idiotas como ele. Sabia que naquele momento estava pensando na melhor forma de se livrar de mim. Ah, sim, eu o irritara bastante. Se Reita estava sendo indiscreto, eu estava sendo muito impertinente.
Me apoiei nos joelhos novamente para sair dali, mas agarrou meu pulso enquanto se sentava, usando-me de apoio. De novo estávamos a poucos centímetros, mas agora não me encarava, na verdade, nem levantava a cabeça.
-Me perdoe.
Sua mão tremia ao redor do meu pulso e seu maxilar estava travado. Ele estava mesmo sentindo muito por isso? Deixei meus ombros relaxarem e suspirei. Minha mão caiu sobre as pernas, mas Reita não me soltou.
-Eu disse coisas idiotas, tem toda razão se ficar muito bravo comigo, mas não me odeie – tive de prestar atenção para suas palavras quase sussurradas fazerem sentido.
Mordi o interior da boca para não rir. Onde estava o cara cheio de pose e ordens? – Ok. Mas se isso se repetir, vou deixar uma marca maior na sua cara, entendeu?
Concordou com um aceno, mas não me olhou nos olhos, ainda cabisbaixo. Suspirei, começando a me irritar de novo.
-Já o perdoei. Melhore essa expressão de derrota! O que o seu avô diria se o visse assim?
-Diria que eu sou um covarde.
Rolei os olhos e o segurei pelos ombros, chachoalhando-o.
-Você é um idiota, mas não é covarde! – disse com mais irritação do que pretendia demonstrar. Por bem ou mal, ele me fitava com a boca meio aberta – Me salvou quando achei que ia apanhar do Starish, depois me salvou quando Aoi-san achou que podia atirar em mim, e aquela foi a pior desculpa que podia ter inventado, mas mentiu por mim. Me deixou ficar aqui e ainda é gentil. E quando eu vi Shiro-san naquela cama... eu fiquei tão desesperado... mas você estava lá comigo. Então não se chame de covarde, seu babaca infantil!
-Kouyou...
Talvez ele fosse dizer mais alguma coisa, mas desistiu quando me beijou.
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