“No fim do mundo ou na última coisa que vejo
Você nunca voltará para casa, nunca voltará para casa
Eu poderia? Eu deveria?
E todas as coisas que você nunca me disse
E todos os sorrisos que vão sempre me assombrar” (My Chemical Romance – The Ghost of You)
- O que raios vamos fazer em Tadfield? – Crowley suspirou, irritado, estavam perdendo tempo. O Bentley corria na velocidade máxima. A cidadezinha próxima a Oxford havia sido palco para a primeira vez que haviam tentado impedir um apocalipse, fora isso, era um lugar bem comum e tedioso.
Aziraphale já explicara mil vezes, mas o ruivo estava mais mal-humorado do que nunca.
- Crowley – o ex-anjo insistiu, seu tom de voz doce como sempre – no século XXI, quem foi o mais próximo de um profeta que encontramos?
- Dan Brown? ¹ – o infernal perguntou, apenas para irritar o amigo.
Aziraphale bufou.
- Quantas vezes eu já te disse que aquilo é apenas ficção?
- Mas ele acertou bastante coisa, vai? – Crowley riu.
- Certamente irritou bastante gente lá em cima, o escândalo de Jesus com Maria Madalena foi abafado por quase dois milênios... Pode ter acertado muita coisa, mas... blasfemou demais também. Muita gente tomou aquilo por verdade!!
O demônio riu mais alto, uma gargalhada forçada, adorava irritar o anjo – agora ex-anjo – aquela discussão já acontecia há pelo menos uma década entre eles. Parecia que tudo estava voltando ao normal, mas Crowley estava machucado, magoado, o coração partido. As coisas jamais voltariam ao normal e não havia nada que Aziraphale pudesse fazer que curasse a ferida em seu coração. Era isso... ele foi um anjo mais ou menos, um demônio meia boca... era solitário por um tempo, mas achou que poderia não ser com o anjo ao seu lado, mas os planos do Divino são... inefáveis.
- Você ficou quieto de repente – Aziraphale observou.
- Muita coisa na cabeça – o demônio replicou – nada que umas doses de whisky e umas pílulas para dormir não resolvam mais tarde. Coisa de demônio, você não entenderia.
Mas Aziraphale entendia. Lidar com o apocalipse mais uma vez era mais fácil do que lidar com as consequências da última conversa que tiveram. Ele queria acertar as coisas, mas Crowley estava tão distante dele que não conseguia se sentir confiante.
- Então – o anjo limpou a garganta, definitivamente não estava pronto para falar sobre aquilo – Anathema. Está vivendo em Tadfield, como já havia lhe dito.
- Olha, an... Aziraphale – o demônio revirou os olhos por trás dos óculos, era difícil se livrar de maus hábitos – aquela menina não era profeta nem de longe. Era uma bruxa bem mais ou menos também.
- Mas descende de uma bruxa e profeta legítima! Bom, as profecias de Agnes Nutter terminavam no quase apocalipse, não é? E se tiver algo mais? Algo que foi escondido de nós. Agnes era perspicaz, precisamos começar por algum lugar e minha intuição diz que tem que ser por Anathema.
Havia descrença em Crowley em relação à Anathema, mas o que mais poderiam fazer? Dessa vez, o mais provável é que não conseguissem adiar o fim do mundo. Quer dizer, quem poderia dar essa sorte duas vezes?
Crowley se pegou pensando na Terra. Sentiu vontade de protegê-la desde quando era um anjo, mas era parte do Grande Plano que ele fosse ao pequeno planeta azul para espalhar caos, medo e desespero. Justo ele que havia ligado o motor da criação e se apaixonado por aquele universo de estrelas, planetas e nebulosas desde então.
As coisas nunca saíam como ele queria, na verdade. Mas... Aziraphale tinha razão em certo ponto. Em toda a sua existência, não havia visto nada mais complexo do que as relações humanas, ou nada mais bonito que o ciclo da vida. Óbvio que ele não queria ver inocentes sofrerem pelos caprichos dos celestiais e infernais. Nunca quis. Foi por isso que salvou as cabras e os filhos de Jó no passado, ou tantas outras ações que não eram necessariamente boas, eram apenas... a coisa certa.
Conforme chegavam perto de Tadfield, os campos verdejantes tomavam conta da paisagem. Cada milímetro da vista que enchia os olhos do ex-anjo pulsava em vida – Aziraphale respirou fundo, sentiu o ar encher seus pulmões humanos, nunca apreciara tanto a sensação. Observou o sereno que se transformava em minúsculas gotículas sobre os vidros do Bentley, imaginou os animais se abrigando, a cadeia alimentar fluindo, as plantas sendo regadas, a fotossíntese sendo feita quando o sol saísse…. vida. Havia vida por toda a parte. Aquele planeta, as pessoas, as criaturas que ali habitavam, não mereciam que suas vidas fossem roubadas de si no Grande Arrebatamento. Eles mereciam ser donos da própria vida. Livre arbítrio.
- Chegamos – o demônio disse, sem animação, parecia entediado.
- Oh, parece que ela está nos esperando.
- Uma previsão, será? – Crowley se fingiu surpreso, havia ligado para ela mais cedo, pois achava que seria uma perda de tempo e não queria gastar ainda mais tempo procurando-a pela cidade.
- Isso só pode ser um bom sinal – o anjo deu um risinho animado, algo de celestial parecia haver nele ainda que não tivesse mais os seus poderes, um brilho único de inocência.
Crowley revirou os olhos.
- Ah, vocês chegaram – ela disse – Newton está trabalhando. Vocês podem entrar.
Anathema olhava para os lados, parecendo ansiosa.
- Quem é Newton? – Crowley perguntou para o anjo, enquanto Anathema não ouvia.
- Crowley!! – Aziraphale parecia chocado de não lembrar do doce rapaz que os ajudara a vencer o apocalipse da última vez.
Crowley riu para si mesmo. Ainda era divertido irritar o loiro.
Anathema preparou um chá para eles, suas mãos tremiam. Estava nervosa, não precisava de Agnes para saber que algo não iria bem. Sabia que tinha a ver com aquela encomenda que recebera anos atrás…
- Então... Anathema, querida – Aziraphale começou, cordial como sempre – é... não tem como falar isso de forma cordata – ele olhou para o ruivo procurando apoio – é só que...
- O mundo vai acabar – Crowley interrompeu – de novo. Se você souber de algo, desembucha logo. Se não souber, já avisa que estamos com pressa.
- Crowley! – o anjo exclamou, chocado como sempre.
Anathema respirou fundo.
- Acho que fiz algo muito errado – ela disse, quase a ponto de chorar.
- Não acho que você tenha desencadeado o fim do mundo – Aziraphale disse, com carinho, buscando consolá-la.
- Mas posso ter impedido de ser salvo mais uma vez.
Crowley levantou uma sobrancelha, interessado.
- Bom... depois do quase armagedon – ela começou – eu recebi uma cópia de outro livro da Agnes só que eu... bem... eu.... queimei.
- VOCÊ O QUÊ? – Crowley levantou o tom de voz, claramente irritado.
- Calma – Aziraphale fez um gesto para que o demônio parasse.
Crowley começou a andar de um lado para o outro, impaciente, bufava nervoso.
- Você chegou a ler algo? – o anjo perguntou tranquilamente enquanto bebericava seu chá – ah, como senti falta de um chazinho quente.
- Não – ela disse, nervosa.
- Vamos embora! – Crowley se irritou mais ainda – a vinda aqui foi simplesmente inútil como eu disse que seria.
Aziraphale sentiu-se magoado, mas não poderia demonstrar sua mágoa. Não se sentia no direito. Ele merecia aquilo. Tudo era sua culpa.
- Querida Anathema, obrigado pelo seu tempo – Aziraphale sorriu com o canto dos lábios desapontado e relou a mão no ombro da moça.
Tudo foi muito rápido. Em um momento, Anathema estava em frente a eles e no outro, como se reagisse ao toque do ex-anjo, flutuava no meio da sala de jantar com os olhos revirados.
- Por satã! – Crowley praguejou – O que está acontecendo?
As luzes piscavam.
De repente, a voz de Anathema tornou-se diferente, como se possuída por algo ou alguém.
‘O fim do mundo, mais uma vez, próximo está
A chave para impedi-lo na Terra repousará
Céu, inferno, mundo terreno
Tudo será curado com um amor sereno
Cuidado, satã é o pai da mentira
No céu, porém, há quem a proferira
Planos inefáveis estão por vir?
Não confiem apenas em quem lhes convir
Luz e trevas deverão se conciliar
Um sacrifício e um milagre bastarão para o armagedon cessar”
Anathema caiu no chão. Inconsciente.
- Isso foi – Aziraphale disse, contente e assustado ao mesmo tempo – uma profecia legítima.
- Sacrifício? Milagre? – Crowley indagou, cético – acho que esse não é mais o nosso departamento.
- Eu posso interpretar a profecia – Aziraphale proferiu, confiante – vamos à minha livraria. Se ao menos eu tivesse um papel e uma caneta aqui...
Crowley conjurou os objetos solicitados e entregou ao loiro, que sorriu em resposta docemente. O demônio virou os olhos em outra direção, sabia que o anjo continuaria sendo adorável com aquele seu jeitinho, por isso preferiria não olhar para ele. Rapidamente, o loiro anotou as palavras, antes que sua memória agora humana o fizesse perder os detalhes.
- Anathema, querida? – ele a acordou, após deitá-la no sofá – está tudo bem?
- Minha cabeça... – ela começou, ia falar algo. Antes que terminasse, a mesma energia que sentiram no momento da profecia voltou, logo sua cabeça se virou para trás como se fosse puxada por uma mão invisível com força, os olhos reviraram-se novamente a voz tornou-se rouca, grossa, desprovida de emoção – COMEÇOU.
E de fato havia começado.
Um terremoto fez com que perdessem o equilíbrio, barulhos de gritos encheram o ar. Um dia normal em Tadfield? Acho que não. Adam não era mais o anticristo há anos.
Aziraphale gemeu baixo.
- Está acontecendo, Crowley – não temos muito tempo – eu só quero voltar para casa.
- Anjo – o demônio respondeu – você não tem mais casa.
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