Não demorou para que o ano letivo finalmente tivesse seu fim, o meu primeiro em Never More, mas não o último. Todos faziam suas malas em meio ao clima de inverno, soterrados sob roupas de frio e um espírito natalino acalorado. Enid não era diferente. Ela havia ajudado a enfeitar toda a escola para aqueles que ficariam ali mesmo no fim do ano, como os funcionários ou alunos que moravam distante demais. O nosso quarto, claro, não poderia escapar.
– Vamos, Wandinha, deixa eu botar alguma coisa do seu lado! Você precisa estar na temática. – ela já insistia a um bom tempo. – Eu até fiz um gorro preto pra você...
Suas orelhas caíram e vi aquele biquinho conhecido se formar em seus lábios. Droga, eu não poderia deixá-la triste.
– Enid, não vamos ficar aqui. Removeremos isso assim que voltarmos no próximo ano. – ajudando-me a fechar as malas, até mesmo Mãozinha usava um pequeno gorro.
– Ainda assim, nosso quarto deve estar bonito mesmo sem a gente aqui. – ela veio até mim, oferecendo a peça com aquela súplica irrecusável no olhar. – Toma.
– Obrigada. – tentei pegar o objeto, mas ela o desviou no ar.
– Calma, deixa eu colocar! – céus, ela não podia se conter parada mesmo com algo tão simples. A felicidade de Enid podia ser facilmente comprada, aceitar as únicas e preciosas roupas que ela me fazia era apenas o mínimo que eu poderia lhe fazer. Com cuidado, ela se pôs próxima a mim, os olhos verdes concentrados em seus movimentos. Quando senti o objeto encaixado em minha cabeça, seu sorriso se tornou tão iluminado quanto um raio de sol. – Você tá tão linda! Eu preciso tirar uma foto!
– Enid, espera-
Sem me escutar, ela puxou uma polaroid de onde quer que seja e se virou, disparando aquele flash capaz de cegar qualquer um.
– Own, isso ficou tão bonitinho, vou fazer cópias, botar uma no meu mural, dar uma pra você, guardar uma em casa e outra na minha carteira.
Uma coisa que eu deveria ter previsto sobre Enid era sua empolgação quanto a um relacionamento. Subestimei as capacidades da lobisomem enquanto a uma maior intimidade, achei que já sofria o bastante quando éramos apenas colegas de quarto ou amigas, mas o pouco tempo em que estávamos juntas já havia exigido de mim um nível elevado de paciência e compreensão do qual eu não imaginava ser capaz. Ainda assim, aquela tortura melosa era meu prazer diário.
Sorrindo pequeno, vi ela encarar aquela fotografia como se fosse a coisa mais especial do mundo. Ela a minha frente com um sorriso gigante e eu com a felicidade de um prisioneiro com aquele bendito gorro preto de papai Noel na cabeça.
– Está boa. – elogiei.
– Vou olhar pra ela todos os dias enquanto estivermos longe. – ela se virou para mim e me surpreendi ao ver lágrimas se formando em seus olhos. – Isso tá sendo incrível, mas passar nosso primeiro inverno como namoradas longe vai ser a pior coisa da vida.
– Nos veremos no próximo mês, Sinclair. – sem saber direito como fazer aquilo, usei os polegares para enxugar suas lágrimas. – Me ligue quando quiser, eu não me importo.
– Promete que não vai esquecer de mim?! – ela já soluçava em meio ao choro. Céus, como alguém podia ser tão sentimental?
– Não seja boba, Enid. Nem mesmo uma vida seria o bastante para apagar a marca que você fez em mim.
– Eu posso...? – a vi encarar minha boca e, entendendo seu pedido, apenas assenti com a cabeça. Trocar afeto com Enid havia se tornado algo mais recorrente do que eu podia imaginar, descobri que beijos não eram tão superestimados assim. Era bom e sempre aquecia meu interior. E mesmo que eu nunca tivesse tomado a iniciativa até então, jamais havia lhe recusado.
Senti Mãozinha puxar minha calça e separei nossas bocas.
– O que foi, Mãozinha? – perguntei entredentes.
Ele me sinalizou que o carro já havia chegado. Era hora da despedida.
– Acho que é a hora. – a loira segurou minhas mãos, a tristeza em sua expressão era clara e não me agradava. – Eu acompanho você até o carro.
– Tudo bem, vamos.
Enid só iria pra casa daqui a dois dias, era o tempo até seus pais virem buscá-la, por tanto ela ficaria sozinha ali por um tempo.
Não soltamos as mãos por um segundo sequer, não era o que nenhuma das duas queria. Depois dos últimos acontecimentos, era claro que já não podíamos mais ficar muito tempo longe, era apenas terrível. Cruzamos o pátio e, no hall da escola, avistamos nossos amigos já se despedindo ao lado de seus pais.
– O que caralhos é isso? – Bianca parou adiante, o rosto um tanto espantado.
– Ela é minha namorada, sua intolerante de merda. – respondi e escutei Enid me repreender em um sussurro.
– Ei, calma aí! Eu só tô surpresa por você estar namorando a Pink Pie do My Little Poney. – de braços cruzados, ela sorriu. – Ao mesmo tempo que é irônico, parece plausível.
Eu não tinha tido mais problemas com Bianca. Sobre seu barco, não era nada que eu não pudesse repor. Depois de um cheque para comprar um novo, sua gentileza ao meu redor parecia ter aumentado.
– Eu deveria conhecer isso?
– VOCÊ NÃO CONHECE MY LITTLE PONEY?! – Enid gritou de repente, soltando nossas mãos. Confusa, tentei entender o porquê de aquilo parecer tão ruim.
– Quem não conhece My Little Poney?! – Eugene se aproximou, tão assustado quanto.
– Acho que tô reconsiderando o nosso namoro. – ela murmurou e franzi o cenho. O que diabos era My Little Poney?
– Para com isso, sua idiota, tá deixando ela com medo de ficar solteira. – Bianca botou a mão em meu ombro. – Algum dia você vai mostrar a ela, sob uma coberta, pipoca na mão e uma TV ligada. Melhor assim?
Ela encarou Enid e a lobisomem pareceu ponderar.
– Hmm, eu posso aceitar isso. – sua empolgação retornou e com ela veio meu alívio.
– O que é essa gritaria? – Xavier surgiu, atrás dele Ajax.
A presença do garoto não me incomodava, eu não tinha motivos para me sentir ameaçada por alguém como ele, ainda mais tendo alguém como Enid – que implora para saber se eu ainda gosto dela todo santo dia – ao meu lado. Porém, isso não me impedia de admitir que ainda há certa curiosidade em mim sobre como as coisas estavam entre aqueles dois.
– Acredita que a-
– Meu Deus, não comecem de novo! – Bianca interviu antes que Eugene terminasse de falar. Eu era grata.
– Oi, pessoal. – o projeto de medusa ergueu a mão tímidamente.
– Olha, tá todo mundo reunido. – Divina e Yoko também se aproximaram do círculo que havia se formado.
– Vocês também já estão indo? – Enid parecia calma, porém senti seus dedos se entrelaçarem aos meus.
– Sim, Ajax vai passar o Natal lá em casa. – o mais baixo sorriu sem graça.
– Olha... – senti que a Tanaka queria comentar algo, mas conteve-se. – Que bom, é sempre ótimo ter uma companhia!
– Feliz natal pra vocês, galera. A gente veio só cumprimentar antes de ir mesmo. Vejo vocês próximo ano! – acenando de forma simpática, eles logo se despediram. O Thorpe pôs a mão no ombro do Petropolus e o levou embora.
– Foi só eu ou mais alguém sentiu uma vibe gay? – todos se encararam e tentei adivinhar o que aquilo significava.
– Se for, bom pra eles. Rejeitados se consolando. – a Barclay riu, erguendo a bolsa até o ombro.
– Isso seria incrível! – até Enid pareceu se animar. Notando que eu não me manifestava, ela foi aquela a me explicar. – Talvez esses dois estejam juntos, sacou? A Yoko tem um ótimo gaydar, ela disse que já sabia da gente a mais tempo do que nós!
Não pude evitar de erguer as sobrancelhas, realmente surpresa. É algum tipo de poder vampírico sobre prever o futuro?
– Interessante. Mas acho que também é nossa hora de ir. – olhei para aqueles a nossa volta, um grupo estranho mas agradável, eu não poderia negar. – Adeus.
– Bom fim de ano, Addams.
– Tchau, Wandinha!
– Bye, bye, casal. – Yoko e sua namorada falaram sincronizadas. Eu temia que Enid e eu ficássemos assim se convivêssemos demais. Dava-me calafrios só de pensar.
Quando saímos para fora, eu pude vê-los todos ali. Tropeço e seu eterno silêncio, Feioso e sua constante inquietação, papai e mamãe como sempre inseparáveis. Eles nos encararam e pude percebê-los analisando nossas mãos unidas. Logo em seguida, sorrisos diversos cresceram nos rostos de cada um. Eu teria de lidar com o que vinha por aí.
– Querida nuvenzinha, estávamos esperando você! – disse meu pai primeiro.
– Ela parece estar muito bem acompanhada, querido. – mais maliciosa, minha mãe encarou Enid.
– O-Oi senhor e senhora Addams, e-eu sou Enid Sinclair, a colega de quarto da filha de vocês. – o nervosismo de Enid transbordava por suas palavras. Apertei sua mão, tentando passar a ela confiança. Não havia o que temer em meus pais, eles eram dois bobos tão apaixonados quanto ela. Na verdade, acho que eles se entenderiam bem.
– É a namorada dela, não é?! Papai me contou! – Feioso e sua falta de discrição.
– Ele disse? – ela me encarou. – Eles sabem?
Sussurrou em meu ouvido.
– Sim, eles sabem, Enid. Não há porquê esconder.
– Seja bem-vinda a família. Você parece ser uma garota incrível, confiamos nas escolhas da nossa morceguinha. – sem cerimônias, meu pai a abraçou com força. Feioso logo veio em minha direção, e de longe observei mamãe me enviar um beijo pelo ar.
– Obrigado, isso é uma honra! – aos poucos, ela pareceu menos amedrontada com situação. – Sua família é incrível, Wandinha!
Ela se agitou alegremente e revirei os olhos. Isso foi rápido.
– Espere até conhecer o resto. – meu pai piscou para ela.
– Seu cabelo é incrível! Como você fez isso?!
– Feioso, controle-se. – o repreendi.
– Tá tudo bem, algum dia teremos mais tempo pra conversar, né? – ela voltou a me encarar. Aquele maldito clima de despedida estava se arrastando ao nosso redor. Eu não queria deixá-la ali. – Você precisa ir.
– Você está chorando de novo. – observei a cachoeira deslizando por seu rosto. – Apenas um mês, Enid. Um mês.
– Ora, que triste, ver duas jovens amantes se separando. – de canto, vi meu pai tirar o lenço do bolso e me oferecer. Com ele enxuguei as lágrimas de Enid.
– Isso é terrível. – Mortícia concordou. – Porquê ela não vem passar o Natal com a gente, Wandinha?
A encarei, surpresa com a sugestão.
– Sério?! – ela não me deu tempo de resposta. – Seria incrível!
– Seria? – tudo estava acontecendo rápido demais. – E seus pais?
– Eu aviso a eles. – não sei se aquela seria uma boa ideia, mas em visto a sua animação e meu alívio pela ideia de não tê-la tão distante, apenas me dei por vencida. – Minhas malas também já estão prontas, então isso facilita.
– Perfeito. Tropeço, vá buscá-las. – ordenou minha mãe.
Com um grunhido gutural de afirmação em resposta, ele arrastou seus pés gigantes para dentro de Never More.
Por muito tempo, durante a viagem, não precisei me ocupar com as conversas fiadas de meus pais. Enid era a pessoa perfeita para mantê-los ocupados, dava as respostas que desejavam, e me conhecia o suficiente para não tentar me incluir na conversa. Ironicamente, talvez eu tivesse encontrado a pessoa perfeita, não importasse o quão o casaco rosa pink e as meias altas anos oitenta me dissessem o contrário.
– Essa menina lobo é minha nova amiga. – meu pai falou em minha direção com um sorriso satisfeito.
– Aprendi muitas coisas, que eu sou um bichinho e feia. – ela riu.
– Você não é feia. Pai. – o repreendi.
– Que isso, olha pra ela-
– Tranquilize-se, querida. Apesar de ser uma criatura tão brilhante e cor de rosa, não é do feio ruim que estamos falando. – intercalei o olhar entre eles, e vi meu pai e minha namorada sorrirem um para o outro. – Enid sabe disso. Parece já ter aprendido bastante sobre os costumes dos Addams, isso graças a você.
– Depois de meio ano convivendo com alguém que curte fotos de corpos estripados eu notei que pra vocês os códigos penais parecem funcionar ao contrário. – ajeitando a postura, ela explicou de forma didática. Mais comportada que o normal, eu sabia que ela estava se esforçando para não passar a eles uma má impressão. A verdade era que apenas por estar ao meu lado, eles já a adoravam.
Quando a neblina se tornou densa, o bater das asas dos corvos frequente e o ranger monstruoso dos portões do casarão se abrindo cortou o ar em um eco ensurdecedor, soube que estava em casa. Em um pulo assustado, Enid agarrou o meu braço, encarando os arredores através das janelas.
– O-O que é isso?!
O carro adentrou a propriedade, revelando a vasta extensão de grama morta, árvores sem folhas e jardins de cemitérios com flores sem cabeça. O casarão se ergueu monumental e sombrio sobre nossas cabeças, e de dentro daquelas paredes pude ouvir ecoar do som de boas vindas do meu lar.
– Bem vinda ao nosso lar, querida nora! – meu pai exclamou de forma empolgada. Ele de longe parecia o mais excitado com a ideia de a filha finalmente ter uma namorada, uma nova e jovem pessoa a quem ele poderia ter o desprazer de ensinar nossas tradições.
– Me-Meu Deus, que lindo... – ela disse com a voz trêmula e sussurrada. – Isso são vozes gritando?
– Vovó provavelmente está cozinhando. – eu teria uma refeição apropriada novamente.
– Wandinha, eu sou um lobo vegetariano.
Gomez soltou uma gargalhada enquanto cada um de nós saíamos do carro.
– Deixe de coisa, vamos caçar o jantar e você vai pescar comigo e com Feioso! Wandinha, leve-a para conhecer a casa e os familiares, eu prepararei tudo. – oh, aquilo seria interessante.
Um maquinador astuto, mas também alegre a seu próprio modo, papai sempre se esforçou para ser, além de pai, um professor para nós até certa idade, embora as vezes se equivocasse – contávamos com nossa mãe para botá-lo na linha. Sentimental e as vezes travesso, ele sempre foi o mais otimista da família e repleto de entusiasmo por seus planos agourentos. Eu tinha certeza de que ele se daria bem com Enid antes mesmo de presenciar a combinação energética que eles faziam, sabia também que a lobisomem estaria em boas mãos.
– Tô ansiosa pra conhecer todo mundo! – tentando fingir que não tremia até as pontas dos dedos, ela respirou o ar de morte e sorriu. – Mas pulo a tour.
– Você quem perde.
[...]
Enid Sinclair –
Gigantesca e assombrosa, cada degrau de madeira daquele casarão me dava arrepios. Rangendo a cada passo e exclamando perigo, minha espinha estremecia de calafrios. Entretanto, quando as portas altas e pesadas se abriram diante da gente, não foi nenhum dos cenários mais aterrorizantes me minha cabeça o que se passou a minha frente.
– Seja bem vinda! – eles falaram em uníssono, pessoas esquisitas e calorosas reunidas no salão dos Addams. No alto, uma faixa escrita em... sangue? Dizia “bem vindas Wandinha e namorada!”, e balões pretos aos montes voaram sobre nossas cabeças e até mesmo para fora.
Pessoas de todo o tipo, até mesmo um Leão gigante e um tufo de cabelos ambulante de chapéu e óculos, aquela era a família de Wandinha.
– Oh, querida sobrinha, essa é sua colega de quarto?! – o primeiro a se aproximar fora um homem banguela, careca e de olhar preto circundado, ele tinha a pele pálida de forma cadavérica como a de Wandinha ou Mortícia. – Sabia que eu já dormi na sua cama?
Arregalei os olhos apavorada.
– Posso explicar isso. – Wandinha logo falou. Eu não sei se queria mesmo saber. – Tio Chico é incorrigível, e se não fosse a boa vontade da família ou a ignorância da polícia, já estaria atrás das grades. Eu apenas fiz o favor de escondê-lo na época em que você se mudou para o quarto de Yoko.
Oh, claro, quando tivemos nossa primeira briga. Uma memória terrível, eu senti sua falta a cada segundo.
– Prazer, eu sou o tio favorito dela! – ele me estendeu a mão com aquele sorriso estranho e gigante. Mesmo hesitante, eu a agarrei de forma corajosa, e menos de um segundo foi o bastante para me arrepender disso. Uma descarga elétrica explodiu de sua palma e senti tudo em mim trocar de lugar.
– A-AAHH!
– Nunca passa batido. – ele riu da minha cara e senti cada fio de cabelo meu se tornar rebelde e áspero como os de meus irmãos.
– O-O que você é?! – quase gritei, assustada.
– Apenas um amante de piadas. – o tio de Wandinha se afastou enquanto fazia ondas com as mãos no ar. – Fique atenta, lobinha.
– Tio Chico, acho bom você abrir bem os olhos. – Wandinha o alertou, e senti um tom diferente em sua voz, mais mórbido que o normal.
– Ora, deixem de coisa! Onde está o abraço da vovó?! – uma senhora baixa, de nariz gigante e com uma ruga o acompanhando, falou. Ela tinha longos cabelos brancos e um sorriso digno de uma bruxa das mais clássicas. Ela agarrou Wandinha em um abraço apertado e carinhoso, e pela primeira vez vi Wandinha ao menos aconchegar a cabeça no ombro de alguém – que não fosse eu –, o aceitando. Não sei se Tio Chico era mesmo seu favorito da família, mas saber que alguém poderia deixá-la tão a vontade naquele tipo de contato me deixava surpresa e derretida por aquela cena.
– Todos os Addams costumam ser resolutos, com exceção da vovó, que se deixa levar com facilidade. – afastando-se da senhora, ela se aproximou para apresentá-la a mim. – Vários dos percalços que afligem a vida familiar se devem a sua personalidade atrapalhada e fraca, mas todos a amam do mesmo jeito.
Vi um repuxar de sorriso no canto de seus lábios.
– E sei que você também. – respondi.
– Vamos, menina lobo, onde está meu abraço? – tão calorosa quanto, ela me acolheu em seus braços. Doce e aconchegante, ela havia sido a mais gentil deles que conheci até então. Não sei de qual lado, mas ela havia ajudado a criar uma família incrível. – Finalmente teremos mais um lugar a mesa, nossa bonequinha vudu está passando a família pra frente!
– Vovó.
– Não sei quanto a passar pra frente, mas é uma honra namorar a Wandinha. – falei com dificuldade, enquanto ela apertava minha bochecha.
– Está magrinha, um lobisomem não deveria ser assim. Comerá bastante nesse Natal! Gomez, cace a nossa ceia. – ela ordenou ao patriarca da família.
– É o que estaremos fazendo daqui a pouco. – ele surgiu já vestido com roupa de pesca e uma cesta na mão. Quando ele havia se trocado?!
– Bom, – pegando minha mão, Wandinha me arrastou até mais dois membros da família. – Esse é tio Itt. Atencioso, calmo, vaidoso e simpático, apesar de ser de poucas palavras. Ele é prestativo, como os outros.
Em silêncio ele apenas assentiu, todo aquele cabelo cobria o que quer que estivesse ali debaixo, humano ou criatura.
– Ele disse que espera que se tornem bons amigos peludos. – disse uma mulher elegante e otimista, a mais normal da família até então. – Sou Ophelia, irmã de Mortícia e esposa de Itt! Oh, você é como um raio de luz adentrando esta casa.
– É um prazer conhecê-la! – aliviada com uma presença mais sã, me senti menos nervosa.
– Ótimo, agora que já conhece todos, podemos subir para o quarto. – Tropeço começou a andar atrás de nós, enquanto Wandinha me arrastava pelos escadarões acima. Tudo parecia escuro demais, empoeirado e antigo. Mesmo com janelas abertas, o clima era cinzento e fechado.
– Para “o” quarto? – indaguei curiosa.
– É preferível que você continue a dormir no mesmo espaço que eu.
– E os seus pais? – surpresa, tentei não surtar com aquilo. Ela provavelmente tinha apenas uma cama, então dormiríamos realmente juntas?!
– Há coisas mais importantes para eles se preocuparem do que com quem divido a cama, Enid.
Sim, meu Deus, dormiríamos juntas! No entanto, aquela não foi a única coisa a me impressionar.
Quando adentramos o cômodo em específico, Wandinha ergueu uma alavanca pesada, iluminando as faíscas ao redor do teto e revelando o verdadeiro mausoléu do qual ela chama de quarto. Gigantesco, elegante e rústico, era como se tivessem tornado o quarto de um princesa vitoriana num salão gótico de tortura medieval. Objetos que eu não queria pensar para que serviam, morcegos em plena soneca e outros bichos rastejando pelos cantos mais escuros do quarto, a ideia de dormir ali de repente já não parecia mais tão animadora.
– Wa-Wandinha... O que é... – de repente, patas minúsculas tocaram minha mão e uma aranha enorme começou a circular o meu corpo. – O QUE É ISSO- TIRA DE MIM, WANDINHA, TIRA AGORA!
– Não seja rude, Enid. O senhor Pernas Finas está lhe dando as boas vindas. – se aproximando de mim, pela segunda vez desde que chegamos ali a vi esboçar um sorriso ao capturá-lo em suas mãos. – Ele é um ser sensível, seja mais delicada com ele, por favor.
Ela comentou enquanto o levava de volta a sua grande casa de vidro sobre um de seus cômodos.
– Si-Sinto muito, é só q-que se ele aparece assim do nada eu tenho medo de machucá-lo sem querer! – ainda podia sentir a sensação aterrorizante de suas patinhas em minha pele, não era nada agradável. Talvez eu tivesse me precipitado em conhecer o lar de alguém como Wandinha Addams, agora teria que lidar com os perigos obscuros deste lugar.
– Arrume suas coisas e vista algo quente, a neve está grossa e fria. – de sua parede, ela pegou uma besta com metade de seu tamanho. – E papai te espera pra pesca.
Tudo estava indo rápido demais. Não que aprender a caçar não tivesse na lista do básico que um lobisomem deveria fazer, mas eu não esperava ver minha namorada empunhando uma besta àquela hora da manhã. Suspirando fundo, tentei me animar. Vamos lá, você vai passar um tempo com seu sogro e todos da família te aceitaram! Isso não parece um sonho?
Apesar da esquisitice assustadora, ironicamente os Addams pareciam a familia mais feliz e acolhedora que eu já tive o prazer de conhecer. Eu tinha medo de que Wandinha não tivesse a mesma sensação quando chegasse sua hora de conhecer a minha.
– Eu vou ser rápida.
[...]
A beira de um lago escuro e gigantesco, eu me perguntava como quebraríamos aquele gelo espesso. Eu não duvidava de monstros habitando aquele lugar, também. A propriedade Addams era um poço cheio deles.
– Eu não vejo as varas de pescar. – cerrei os olhos ao redor, havia apenas aquela cesta, provavelmente a de iscas.
– Oh, querida, você aprenderá o jeito dos Addams de pescar. Mais fácil e divertido, tome, é só jogar.
– Sabe achei o seu cabelo maneiro, como você fez isso? Conseguiria fazer com o meu? – enquanto Feioso falava de forma energética ao meu lado, o senhor Addams pegou algo de dentro da cesta, logo pondo aquela coisa redonda e metálica em minha palma. Uma granada, já sem o pino, prestes a explor.
– O que é is- MEU DEUS, A GENTE VAI MORRER!
Antes que eu terminasse, consegui lançar aquela máquina de morte em massa o mais longe que pude. Ela afundou no lago e um segundo depois explodiu tudo ao redor. Tampei os ouvidos, gritando em pavor, e quando consegui recuperar o fôlego e olhar adiante, vi peixes de todos os tipos começarem a boiar. Em menos de segundos eu havia ganhado mais um novo trauma.
– Estupendo! Você foi ótima, menina lobo. – senhor Addams me elogiou, acendendo um charuto. Ele ofereceu um a Feioso, que ainda parecia estar no fundamental. – Desculpe a animação dele, esse moleque é um encrenqueiro dedicado. Um gênio a sua própria maneira, sabia que ele cria guilhotinas de brinquedo, rodas de tortura, vive tentando envenenar a Wandinha e se torna um Mr. Hyde com um quite de pequeno químico nas mãos? É um orgulho, mas está na rédea curta de Mortícia. Sempre estou de olho nele, ainda mais agora que ele e Wandinha não estudam mais juntos.
Ele bagunçou os cabelos do garoto, que sorriu sem graça em minha direção.
– Para, papa!
– Está tudo bem. Se quiser, uma hora posso te ajudar a pintar o cabelo, Feioso. – sorri simpática para ele.
– Sério?! – o rosto daquele mini torturador se iluminou e por um momento ignorei sua dinâmica perturbadora com Wandinha.
– Isso parece incrível! Quer um? – o senhor Addams me ofereceu um charuto também.
– Ela não gosta desse tipo de coisa, pai. – ouvi Wandinha ao longe, olhei para ela, segurando aquela besta e apontando para algo em meio a floresta.
Quando a flecha disparou, tentei acompanhá-la até seu alvo.
Inesperadamente... Tio Chico?
– Está chovendo? – com uma flecha no abdômen, ele olhou para os céus.
– Wa-Wandinha, o-o que você fez?! – eu corri em direção a ele, olhando para aquele machucado terrível, qualquer outro estaria urrando de dor e no mínimo morrendo caído ao chão. No entanto, ele apenas removeu aquilo como se não fosse nada. – Você não deveria caçar seu tio!
– Infelizmente ele não pode servir como nossa refeição. – ela recarregava a besta. – Mas nada o impede de servir como um aquecimento.
Pelos Deuses, eu com certeza ficaria louca até o fim do natal. Aquela família estava além da minha compreensão!
– Wandinha é a filha da desgraça, descorada e delicada, tem os cabelos e a tez da mãe. – ele começou a sussurrar para mim com aquele sorriso banguela. – Sempre foi uma criança cerimoniosa, de trajes formais e, de forma geral, um tanto perdida. É a menina dos olhos de Gomez, sua herdeira, por isso, mil vezes tão feliz por dentro quanto demonstra por fora, para ele vê-la seguindo seus passos enquanto um servo da paixão é realizar o sonho de todo bom pai: ver sua menina feliz. Então, espero que entenda caso ele exagerar as vezes, ou até mesmo sua querida e insensível namorada por querer descontar em mim o pequeno infortúnio que lhe causei hoje mais cedo. Era apenas uma piada, sabe. – ele riu. – Mas Wandinha não gosta de piadas, sempre tão sem graça.
Mais uma vez, quebrando minhas expectativas, pude ver através do espectro da estranheza a forma como eles realmente se amavam. Como eram uma família de fraternidade genuína – mesmo na hora de incentivar uma criança a fumar, mas eu relevaria isso. Aprender como os Addams se expressavam significava aprender como Wandinha se sentia, como ela agia. Seu jeito impiedoso de atirar contra o próprio tio, era apenas um gesto de sua proteção comigo que eu nem mesmo sabia existir. Se ela podia fazer isso com a própria família, eu temia o que faria com meus piores inimigos. Calada, brutalmente criativa e poética, sua forma infame de amar era um fruto de sua criação, e era bonita ao seu jeito.
Não tão atraente a primeira vista, mas únicamente bela se você pudesse entendê-la. Sorri, abobada, a vendo apontar a besta em direção ao seu tio de novo. Ela era linda.
– Tudo faz um pouco mais de sentido agora, obrigada, tio Chico. – o agradeci amavelmente, esquecendo-me que as vezes ainda piscava um dos olhos sem querer por conta do choque de mais cedo. – Mas herdeira? Isso parece algo importante, eu não sabia que vocês eram tão ricos assim.
Claro, eles andavam sempre elegantes, bem portados e silenciosos a primeira vista. O carro da família era antigo, enorme e provavelmente bastante caro. O casarão, estava mais para uma mansão caindo aos pedaços com uma imensidão de terra e florestas ao redor para chamar de seu quintal. Wandinha me mataria se eu dissesse aquilo, mas ela também é a perfeita patricinha Old School, nunca vi suas roupas fora de lugar, e sei que cada gravata ou suéter deve custar metade do meu rim.
– É que os Addams são descendentes da família real espanhola, também temos negócios com produções de lápides e caixões. Gomez é um advogado, sabia? E ele jamais ganhou nenhum de seus casos! – ele falou o último fato como se fosse um baita motivo de orgulho. – Mas há algo mais interessante sobre Wandinha do que ela ser uma herdeira. – ele falou em tom normal, para que a própria também pudesse ouvi dessa vez, enquanto ria de forma mais escandalosa. – Wandinha tem seis dedos em um dos pés, é uma aberraçãozinha!
Dessa vez, a flecha acertou sua cabeça, e ele caiu duro no chão.
– Você fala demais, tio Chico. – de olhos arregalados, eu não sabia como reagir áquela cena.
– Ele... morreu?
– Oh, não, ele já foi dissecado o suficiente pelo papai para ser mais morto do que vivo há muito tempo. – ela apoiou a besta enorme no ombro, e droga, como ela parecia atraente.
Acalme-se, Enid!
– Você não é uma aberração. É adorável aos meus olhos. – eu tentei consolá-la. – Com seis ou sete dedos, não me importa.
– Me chame de adorável de novo e recarrego a besta. – foi tudo o que ela disse, meramente afetada.
Então o ruim era ser chamada de adorável e não de aberração?! Argh, as eu ainda esquecia que usar os conceitos normais não funcionaria com aquela família.
– Ugh, tá certo. – emburrada, suspirei em frustração.
– Vou voltar à caçada, e você deve ajudar o papai. Vai ser rápido – me pegando de surpresa, ela levou a mão gelada até meu rosto – tipo, gelada pra catapimbas, já estávamos cobertas de neve e ela não usava nada além de uma jaqueta e um cachecol bonitinho com estampa de aranhas –, passando um tempo em silêncio o analisando. – eu prometo.
– Certo. – aquele era seu jeito sútil de demonstrar carinho após uma ameaça de morte, e eu o amava. Eu queria beijá-la, mas ao invés disso tirei minhas luvas e pondo a besta entre minhas pernas pus uma a uma em suas mãos. Ela não protestou, mesmo elas sendo de um rosa pastel. – Você pode morrer de hipotermia, e não quero ser viúva aos dezesseis.
– Obrigada. – foi tudo o que disse.
– Vamos, crianças, precisamos da comida para a vovó preparar a ceia! – senhor Addams gritou nos apressando.
– Estou indo! – o respondi, devolvendo a besta para a menor e correndo em direção ao seu pai. Teríamos um dia longo.
[...]
Era noite de véspera de Natal, eu observava todos os Addams e seus funcionários trabalharem em conjunto para organizarem a mesa da ceia. Comida não parava de chegar, desde as mais nojentas as mais fartas. A mesa era extensa e as cadeiras inúmeras. Sentindo-me admirada e mal por não fazer nada, puxei o tecido da camisa listrada de Wandinha.
– Tem algo que eu possa fazer? Me sinto inútil sem poder ajudar. – choraminguei.
– Você já ajuda bastante não atrapalhando. – ela não parecia se importar muito com aquilo, mas onde estava a novidade? – Olhe para minha mãe, cuidando das flores como se nada mais importasse. – seu olhar se direcionou a senhora Addams, que cortava a cabeça das rosas fora. – Ela o faz porquê papai é alérgico, então todas as flores da casa são apenas o caule.
Algo que a primeira vista pode soar terrível, mas que na verdade era um ato de cuidado e amor. Eu poderia definir todos os Addams dessa forma.
– Quando nos conhecemos, ela me disse que você era alérgica a cores. Eu falhei em te proteger disso. – me lembrei da cena de mais cedo, minhas luvas rosas em suas mãos, e peguei suas palmas nas minhas para conferi-las.
– Não é uma alergia literal, Enid. Odeio cores, mas posso aturá-las por você. – olhei para seu bolso, as luvas guardadas. Quis tanto beijá-la, mas não parecia apropriado. – Apenas faça. – Wandinha disse, de repente. – Eles estão ocupados demais para nos importunar.
– Tem certeza...?
Ela apenas assentiu, pegando-me de surpresa. Senti meu coração palpitar e minhas mãos formigarem contra as suas, eu mal podia conter meu sorriso enquanto me aproximava de seu rosto. Então, tímidamente, lhe dei um selinho demorado.
– Me ajude a enfeitar a árvore de Natal com Mãozinha, Tropeço e Feioso. Aqui. – ela me entregou um rolo de arame farpado. – Quando terminarmos tio Chico vai fazer faíscas saltarem. Vamos esperar pra ver quem vai ser o primeiro ansioso a receber uma descarga na hora de pegar os presentes amanhã.
Eu vi um pequeno sorriso sádico brotar em seu rosto, e um amarelo cresceu em meus lábios. Aquela parecia ser sua diversão de Natal.
– Uau, parece ótimo. – falei, seguindo-a em direção a gigantesca árvore no centro do salão.
Quando terminamos, todos apreciaram o bom trabalho de organização, logo indo se arrumarem para o jantar. Comparados a mim e a tia Ophelia de Wandinha, eles pareciam vestir cópias de suas roupas usuais – com exceção do senhor Addams, que de forma mais despojada esbanjava um roupão de cetim e seda cara cor vinho. Com um charuto entre os dedos, ele se sentou ao pé da mesa, e todos nós nos sentamos ao redor. Ao meu lado, claro, estava Wandinha.
– Você está bonita, cara mia. – a ouvi falar. O que era aquilo, italiano?
– Do que me chamou? – vi sua pele pálida ganhar cor pela primeira vez.
– Não importa. – claro que importava, ela havia me elogiado, me feito sentir que não estava de fato fora de eixo, e o jeito que falou...
– Seus pais vivem falando algo assim, o que significa?
Ela abriu a boca, e quando pretendia me responder, um barulho estrondoso se fez sobre a mesa, nos assustando.
– Olhe, querida, Wandinha caçou algo grande o suficiente para você e o leão fofinho poderem dividir! – abrindo uma bandeja maior do que eu, vovó Addams revelou uma pilha de bife mal passado de origem desconhecida. Eu sinceramente não sabia de que animal era aquilo, mas não podia negar, parecia incrível! Ao meu lado, aquele leão enorme se apoiou na mesa, agarrando o maior dos pedaços.
– Eu tava de olho nesse! – rosnei em sua direção e ele rugiu em resposta.
– Além da carne, espero que prove do prato especial da vovó. – Wandinha sugeriu em seu tom monótono novamente, ignorando nossa conversa anterior e já degustando de algo em seu prato. – Miolo de morcego frito.
Tentei disfarçar minha careta de nojo e enfiei carne na boca.
– Afo que ‘vo pafar essa!
– Não fale de boca cheia, é falta de educação.
– Oh, família desafortunada, não sabem o quão me agrada vê-los todos unidos e bem alimentados em uma data tão especial. – o pai de Wandinha ergueu sua taça e aos pouco os ruídos eufóricos foram se acalmando. – Esse foi um ano e tanto, principalmente para Wandinha, que finalmente parece ter encontrado seu lugar em Never More. Lá, ela teve sua primeira quase morte, o que me é um orgulho! Mas mais importante ainda, foi lá onde ela e nossa querida convidada, Enid Sinclair, se conheceram. – ele olhou em minha direção e logo todos também, eu engoli a seco o que mastigava. De repente me senti um tanto acuada. No entanto, por deixo da mesa, pude sentir um pequeno dedo se entrelaçar ao meu mindinho. – Portanto, queria dedicar este brinde a namorada da minha nuvenzinha, aquela que a defendeu, a primeira e fiel amiga de toda sua vida, e a pessoa que derreteu esse coraçãozinho de gelo.
Todos bateram com os copos e taças, forte o bastante para respingarem bebida. Eles não pareciam se importar, só queriam comemorar a felicidade da filha mais velha.
– A princípio, estranhamos tal ser tão iluminado e vibrante, algo tão distante de nosso habitual. Tão cheia de... cores. – a mãe de Wandinha era silenciosa, sarcástica, deixava claro a quem a filha puxava, e eu tinha certeza que poderia ser tão letal quanto. Sua presença era uma das mais intimidantes da casa, mesmo que sua fala fosse mansa. Havia ficado claro que era ela quem aplicava ordem naquele lugar. – Porém, superando nossas expectativas, entendemos que você é o tipo estranho e agradável insistente o suficiente para conseguir capturar a atenção de nossa filha.
– Toda lua deve ser adorada por alguém, querida. – senhor Gomez beijou a mão da esposa. – Wandinha encontrou alguém para uivar para ela como faço por você.
Envergonhada, senti meu rosto esquentar e enxerguei nos talheres lustrados o rosa de meu rosto combinar com a minha roupa. A mão de Wandinha se encaixou na minha.
– Um brinde ao amor juvenil, então! – tia Ophelia exclamou alegremente.
– Eles são exagerados. – olhei em direção a Wandinha enquanto as taças se chocavam, dessa vez se partindo completamente no ar. No entanto, não me importei com o cenário barulhento quando enxerguei um pequeno sorriso ali. Tão retraída quanto eu, ainda assim ela não parecia se desagradar das palavras dos pais, pela primeira vez. Bom, eu não a desagradava, talvez fosse a causa. Afinal, o que eles disseram é a mais pura verdade.
– Oh, não, nenhum pouco. – sussurrei ao seu ouvido. – Seu pai está certo, você é como a lua para mim, Wandinha.
Ela nada disse, mas senti através do carinho de seus dedos o seu afeto.
Mais do que uivar para ela, eu a amava. E depois deste Natal, eu a amaria ainda mais.
[...]
Nos reunimos na sala de estar para digerir a ceia ao som de histórias e relatos, coisas horrendas que eles contavam com doces sorrisos, uma sensação perturbadora e acolhedora ao mesmo tempo. A madeira queimava sob a chaminé e a neve caía acima do teto, tinham presentes amontoados que brincamos de adivinhar. Muitos óbvios, outros que eu preferia que não fossem.
Observei o desenrolar único daquelas discussões, tão além da minha compressão, impossíveis de se levar ao pé da letra, com ela ao meu lado – as vezes tentando explicar para mim o sentido mórbido daquilo. Eles preferiam coisas frias, pesadas, mas a vovó Addams ofereceu aos irmãos Addams e a mim canecas de chocolate quente. Eram feitos de chocolates roubados da casa de um recente falecido vizinho – talvez por isso o gosto estranho –, e me perguntei a que distância se podia considerar um vizinho, já que eu não podia enxergar outras casas onde quer que olhasse.
Me perguntei como estariam os outros, em suas próprias casas, ou compartilhando do Natal no refeitório de Never More e até mesmo em seus dormitórios. Por alguns instantes, nos arriscamos na neve, descendo altas colinas com trenós que poderiam nos matar a qualquer rumo mal tomado, uma adrenalina digna de um infarto. E por alguns outros momentos, enquanto gargalhava de algo, me pegava olhando para o lado e vendo-a sorrir pequeno em minha direção.
Não sei se era sobre sua casa ou se eu de alguma forma também podia ser a causa, mas eu podia vê-la ser mais sincera sobre as pequenas felicidades que lhe atormentavam.
Quando o cansaço começou a me tomar e eu bocejava a ponto de grunhir, nos despedimos de sua família e subimos em direção ao seu quarto. Por sorte, daquela vez senhor Pernas Finas estava em seu devido hábitat.
– Você parece ter se adequado aos Addams. – ela falou retirando o gorro preto da cabeça. – Admito que duvidei se conseguiria passar mais de meia hora aqui antes que me implorasse para ir embora. – Wandinha se virou para mim e uni minhas mãos atrás das costas. – Estou orgulhosa.
Mesmo sem expressão alguma em seu rosto, suas palavras me atingiram com força. Alegre feito besta, saltitei em meus pés.
– Eu tenho que me acostumar. Algum dia eu também terei o sobrenome Addams, afinal. – satisfeita, me virei para retirar o casaco e as botas, indo me sentar a beira de sua cama que mais parecia os aposentos de uma realeza.
– O que disse? – ela parou do outro lado, e sorri curiosa.
– Bom, não querendo me adiantar, mas tenho planos de que ponha um anel no meu dedo algum dia. Não tão cedo! Apenas quando ambas estivermos de acordo. – receosa, me embolei tentando justificar meu desejo de me tornar sua esposa em um futuro mais próximo do que ela podia imaginar.
– Enid, não pretendo me casar. Não serei uma dona de casa e muito menos quero ter uma família.
Aquilo foi como um soco em meu estômago, certeiro e doloroso. Tentei falar algo, mas simplesmente não saiu. Olhei para o lado, envergonhada, e quis sumir dali.
– Cl-Claro, porquê alguém como você poderia querer isso? – deslizando a mão por seu edredom, tentei raciocinar por um momento, falando depois de um constrangedor tempo de silêncio. – Está tudo bem, não quero obrigá-la a ter uma ninhada e ser algo que não quer. Ser uma esposa não significa ter que cozinhar para mim todos os dias, Wandinha. É apenas um passo adiante na relação, um título acima do namoro. – como eu poderia explicar a ela o significado romântico de um contrato matrimonial? – Apenas significa cerimônias simbólicas sobre o quanto gostamos e confiamos uma na outra.
– Um ritual de passagem?
– Olha, não sei como vê o casamento dos seus pais, mas não foi isso o que fez eles terem você ou o Feioso, ou o que fez sua mãe ficar em casa. Casamentos são sobre pessoas que querem, de algum forma, mostrar o quão a relação que têm importa e é especial. Crianças podem ser feitas dentro ou fora de um, pessoas podem decidir seguir uma carreira específica ou não sem que um parceiro a diga isso, são decisões de cada um. E se você quiser viajar o mundo ou apenas matar pessoas até se enfiar em uma cadeia e me deixar aqui fora, vai estar tudo bem se carregar esse pequeno objeto de ouro ou metal no seu dedo, porque significa que você está avisando aos outros que me escolheu para estar ao seu lado para o resto da vida. – a observei se sentar no seu lado da cama, escutando-me atentamente, e suspirei tentando recobrar o fôlego. – Por isso eu digo que não é algo pra agora, e talvez não seja pra nunca. Não posso obrigar você a estar comigo pra sempre, ou ditar o quão duradouro será o que temos. Apenas estou dizendo que... é o meu desejo que sim, que seja algo especial.
A ideia de que aquilo fosse temporário, de que aquela felicidade duraria por tempo indeterminado, mas não para sempre, fez meus olhos arderem. Era idiota, eu não queria chorar por isso, era apenas parte da vida. Wandinha não era um lobisomem, ela não sentia a marca, mesmo que ela doesse em mim, e caso aquilo deixasse de ser suficiente para ela a qualquer momento eu teria de estar pronta para dar adeus.
Mas nunca conseguiria, era o que eu era, não era algo que eu podia mudar. Eu iria querê-la até o fim de meus dias, mesmo se aquilo o que ela sente acabasse.
– Interessante. – ela finalmente comentou. – Parece mais uma coisa para a minha lista de reconsideração, desde que você entrou no meu caminho ela vem se tornando extensa.
– Então... – olhei em sua direção, tentando me recompor.
– Acho que eu poderia casar com você, Sinclair. – aos poucos, engatinhei em sua direção. A cama era grande o bastante para nos permitir um espaço individual, mas tudo o que eu queria era abraça-la até que aquele pequeno furacão se acalmasse em meu peito. Havia sido apenas uma breve e boba conversa, mas tinha causado em mim um efeito ridículo.
– Você deve me achar ridícula por sugerir algo assim pra você. – cara a cara, a notei analisar meu rosto, seu olhar vidrado em meus olhos. Erguendo a mão, ela enxugou uma gota solitária que escapou sem que eu percebesse.
– Você não é ridícula, Enid. Há muito o que ainda tem para me ensinar. – pegando-me de surpresa, ela me beijou. Lenta e suave, fora um encaixe singelo. – Me desculpe por fazê-la se sentir assim.
Então eu a abracei, meu rosto enterrado contra ela e meus braços ao redor de sua cintura. Me deitei ali, sobre suas pernas. Meu peito não havia desacelerado, mas não havia mais angústia nele.
– Não, você não faz. Eu apenas penso demais. – senti sua mão descansar sobre meus cabelos. – Podemos dormir assim?
– Assim?
– Não exatamente desse jeito eu... – bocejei mais uma vez, sentindo o conforto de seu abraço trazer de volta meu sono. – Posso abraçar você essa noite?
Sua resposta demorou um pouco.
– Tudo bem.
Dessa forma, nos ajeitamos sobre sua cama, nos enfiamos sob seu edredom preto e a abracei, encaixando meu rosto na curva de seu pescoço – surpreendentemente quente. Ela apagou o abajur, me rodeando em seus braços e fechei meus olhos, sentindo o cheiro de terra molhada e perfume de defunto.
Aquele havia sido meu Natal com os Addams, o primeiro de muitos. O primeiro junto a minha namorada tão peculiar, e logo o mais inesquecível até então. E quando estava adormecendo, lembro-me de tê-la escutado sussurrar um “boa noite”.
Me lembro também de ter sonhado conosco na sala de sua casa, ela parecia um pouco mais velha e tocava violoncelo, mais linda do que achei ser possível. Em seu dedo anelar, havia um anel de metal preto, assim como no meu, e por um momento pensei que já estivéssemos no futuro. Seria um futuro bonito, se fosse ao menos parecido com aquilo.
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