“Parquinho, hoje, 13h30?
Apareça se quiser ir.
Aurora.”
Harry não sabia se estava feliz ou assustado com o fato de que Aurora descobrira que Edwiges sabia como transportar e entregar bilhetes. Ao acordar naquela manhã ele encontrou a coruja empoleirada na cadeira da escrivaninha, piando para ele e estendendo a perninha como se estivesse ansiosa para concluir uma tarefa depois de tanto tempo sem nenhuma correspondência.
— Você andou estendendo a perna para ela, não foi? – ele perguntou, sem conseguir parecer zangado.
A coruja apenas deu um pio baixo como se dissesse “foi isso mesmo, e não me arrependo”, e Harry riu baixinho, segurando o bilhete entre os dedos. A caligrafia dela era redonda e pequena, sem falhas da caneta no papel, como se tivesse usado uma pena e tinta. O sorriso de Harry foi diminuindo a medida que se lembrava de um fato complicado: ela era trouxa.
Com isso a corroer seu cérebro e uma excitação gelada percorrendo suas tripas, ele se enfiou na cama de novo e cobriu a cabeça com o travesseiro, como se isso impedisse seus pensamentos de pipocarem em sua mente sonolenta. Decidindo ignorar todos eles, concluiu que definitivamente apareceria as 13h30, talvez até antes.
Aconteceu como ele previu, porquê quando ainda era 13h00 ele estava sentado na calçada aproveitando para ler um jornal trouxa longe dos olhos abelhudos dos tios. Mas, de novo, não havia novidade ou anormalidade nas ocorrências diárias.
Foi com uma surpresa agradável que ele ouviu a porta da casa da frente abrir e os passos estalados de chinelos pequenos o alcançarem. Ela logo estava de pé tampando o sol dele de novo, os cabelos presos num rabo de cavalo, mas a franja ainda teimava em escapar do elástico.
— Também não aguentou esperar? - ele negou com a cabeça.
Ela se sentou ao seu lado como uma pena pousando no chão, e juntou os joelhos e as mãos como se rezasse.
— Sua coruja é esperta. - Aurora comentou, sorrindo - Se ofereceu para levar o bilhete antes que eu pensasse em escrev-lo.
Harry soltou uma risada baixa ao lembrar de como a coruja parecia culpada naquela manhã.
— Se chama Edwiges, e ela é bem oferecida, mesmo. - a garota o acompanhou na risada - Mas não é de todo mundo que ela gosta.
— Ah, eu me dou bem com animais pequenos e bebês, normalmente. - ela deu de ombros.
— Deve ser por causa do seu tamanho. - ele respondeu antes de pensar no que ia dizer, depois riu ao ver a expressão dela.
— Era para ser um elogio? – ela arqueou uma sobrancelha.
— Uma observação. - os ombros dele se encolheram, mas continuou sorrindo - Não estou mentindo.
Ela revirou os olhos e se colocou de pé, uma mão estava na cintura e a outra foi estendida para ele.
— Vem, não vamos perder tempo. - Harry aceitou a mão dela e não quis solta-la quando já tinha se levantado, era pequena e fofa comparada a sua - Já estamos aqui, mesmo.
Ele deixou que ela o guiasse, mesmo que conhecesse o caminho para todos os lugares, e assim que ficaram lado a lado eles soltaram as mãos juntos, como se concordassem que já era proximidade suficiente por enquanto.
Harry percebeu que ela se desviava do caminho do parque, e imaginou que estavam indo para sorveteria. Ao chegarem na frente do estabelecimento ela o pediu para aguardar num banco ali do lado, voltando de lá de dentro dez minutos depois com duas casquinhas de sorvetes esverdeados com o quê parecia ser chocolate envolta.
— Harry, isso é um sorvete de Chocomenta, e é um prazer apresentar vocês dois. - Aurora se sentou no banco também e entregou o sorvete com um gesto solene.
— Não precisava. - ele começou a dizer, mas ela já estava muito absorta em seu próprio sorvete para ligar.
O sorvete de chocomenta era delicioso e congelou o cérebro de Harry primeiro, até ele se recuperar da sensação e aproveitar por completo.
— É bom, não? - a garota perguntou com a boca um pouco suja dos lados. Ele assentiu e fez um gesto que indicava a sujeira em seu rosto, e ela limpou e riu como uma criança - Isso me lembra porquê prefiro de tomar sorvete em casa.
— Em casa você coloca um babador? - ela poderia ter tentado estapea-lo com a mão livre, mas simplesmente se virou para o lado oposto do banco e Harry conteve o sorriso travesso – É brincadeira.
Ela se voltou para ele, virando rápido demais e ficando bem perto do rosto dele, praticamente encostando os narizes.
— Eu sei. - então sorriu, e ele quase não resistiu ao impulso de se aproximar um pouco mais - Vamos andando.
Eles se encaminharam para o parquinho preguiçosamente, e já haviam acabado de tomar o sorvete quando se sentaram nos balanços para jogar conversa fora.
— Seus tios não ligam de você sair comigo? - Harry perguntou.
— Eles não sabem que é com você. - ela deu de ombros e fez força para os lados para o balanço sair do lugar - Não quero que fiquem falando bobagens.
— Hum. - ele chutou a terra vermelha sob seus pés e ouviu o balanço ranger.
— A escola para onde te mandam é ruim mesmo?
— Não. - respondeu com sinceridade - Eles falam isso para parecerem pulso firme. Adoro a escola para onde vou, é meu lar. Esse lugar aqui, não.
— Eles sabem que você gosta?
— Eles não se importam, contanto que eu fique fora o ano todo e não dê problemas no verão. - sentiu uma pontada de saudade aguda ao pensar em Hogwarts.
— Espero que você não tenha que atura-los por muito tempo. - ela disse com empatia.
— Eu também. - Harry lembrava-se da proposta de morar com o padrinho um dia, e subitamente parecia tão distante.
Ele assistiu quando Aurora saltou do balanço harmoniosamente e andou até uma árvore alta e frondosa a alguns metros dali. Ao longe era possível ouvir crianças brincando aos berros e as mães correndo atrás delas com medo que caíssem em seu entusiasmo.
— Você sabe subir em árvores? - ela perguntou enquanto analisava o tronco e arrancava algumas cascas.
— Sei. - ele se lembrou de quando precisou aprender, a força, quando o cachorro de tia Guida, Estripador, o perseguiu no jardim.
Sem dizer mais nada, ela trepou na árvore como um macaquinho, se apoiando nas saliências e nos galhos mais baixos até alcançar os mais altos e grossos.
— Vem cá. - Harry não sabia muito bem o quê pensar, só se levantou do balanço e a imitou.
Ela havia sentado num tronco grosso, as pernas balançavam para fora e os chinelos pendiam dos dedos, ela limpava a sujeira das mãos. Harry se acomodou num tronco do lado, de frente para a garota, que tinha extensão suficiente para lhe permitir deitar e jogar as mãos para fora. Uma de suas mãos pousou de costas no joelho dela, pois não houve distância suficiente entre eles para que ele fizesse o movimento amplo até o final.
Antes que pensasse em se desculpar e recolher a mão, Aurora a tomou entre as suas próprias, como um animal ferido, e começou a acariciar sua palma com seus polegares..
— Está fria. - ela informou, ao prensa-la entre as mãozinhas, como um sanduíche de mãos – Sua mão.
— As suas não. – então a pergunta saiu dele antes que pudesse se refrear - Você quer ficar com o seu pai ou sua mãe?
Ele notou a surpresa dela quando parou de sentir os carinhos na palma, mas ela se recuperou rápido e continuou.
— É uma boa pergunta. - respondeu olhando para baixo - Não existe jeito de escolher sem magoar um dos dois.
— Mas é você quem não tem escolha! - exclamou inconformado.
— Eu sei. - ela deu um sorriso amarelo - Sempre escolho a alternativa mais gentil, mas desta vez não há uma.
Harry se endireitou no tronco para encara-la, desejando que a alternativa mais gentil existisse, e realizou que Aurora com certeza iria para Lufa-Lufa se fosse uma aluna em Hogwarts.
— Espero que você consiga fazer a escolha certa. - com um movimento ágil ele segurou a mão dela fechada em punho dentro da sua, e ela sorriu com encanto.
— Eu vou. - havia um ar mais esperançoso em sua afirmação - Olha, uma borboleta, Harry.
Ele olhou para baixo, na direção em que ela olhava, e viu uma borboleta laranja e preta pousada na pele da mão dela, entre os dedos frios dele.
— Parece que estamos fazendo um juramento abençoado pela mãe natureza. - Harry riu gostosamente com essa teoria lançada tão seriamente.
— Eu, Harry Potter, juro nunca confiar em juramentos selados por borboletas. - foi a vez de Aurora rir.
— Amém. - ela disse solenemente, então soltou sua mão da dele e eles observaram a borboleta caminhar até a ponta de seu dedo e sair voando para o alto.
Harry abaixou sua cabeça antes dela, e viu quando o sol a atingiu por entre os galhos, iluminando seu rosto sorridente.
“Você é linda”, ele teria dito se sua coragem tivesse chegado até a língua. Ela baixou os olhos e viu que estava sendo observada atentamente.
— Você é tão bonito. - ele engasgou na mesma hora.
— Quê? - nunca se sentira tão surpreso na vida - Você quer meus óculos emprestados?
Ela riu, mas ele falava sério. Da ultima vez que tinha checado, ele era um garoto magricela que havia crescido muito de uma vez só nas ultimas semanas, o cabelo não era penteado há dias, os óculos redondos eram estranhos, e as únicas coisas que mudavam o quadro meio doentil eram os olhos verdes vivos herdados da mãe, o sorriso que não tinha nenhuma falha aparente e a cicatriz em forma de raio.
— Seu bobo. – ela revirou os olhos, e sua mão alcançou o lado esquerdo do rosto de Harry, deixando ali um rastro morno onde o polegar dela tocou afetuosamente.
Um dos chinelos escapou de seu pé e caiu na grama embaixo deles, fazendo um som abafado.
— Ah, que ótimo. – então ela balançou o outro pé e fez o chinelo que restava voar e pousar não muito longe de seu par.
Eles desceram da árvore depois disso e caminharam pelo parque, observando as crianças correrem entre eles quando se aproximaram dos brinquedos. O céu estava azul, de ponta a ponta não se via uma nuvem sequer, e o sol castigava a pele e tornava a tarefa de andar até outro lugar mais cansativa.
Depois de alguns minutos, eles se largaram num espaço aberto e mais reservado, encima de moitas baixas onde brotavam trevos de quatro folhas. Aurora se aconchegava ao chão como se ele fosse engoli-la.
— Está se sentindo mais sortudo? – perguntou de olhos fechados.
— Sem dúvida. - ele não se referia aos trevos de quatro folhas, mas simplesmente ao fato de estar na presença dela, tendo um dia de verão completamente fora do normal.
Harry sentia um tipo de alegria diferente no peito, mas não queria realmente pensar sobre ela, apenas senti-la com a maior intensidade possível, pelo tempo em que ela durasse.
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