[Intentions – Justin Bieber.mp3]
Perspectiva de Moon Aeri.
Selcouth (adj.): raro, não familiar, incomum,
inusitado; e ainda assim, incrível.
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Aguardo do lado de fora do meu dormitório à espera de Jungkook, já com minha pequena mala para passar o fim de semana em Ulsan em mãos e fitando ansiosamente o fim da rua, me perguntando por quê raios aceitei a proposta do garoto de me levar basicamente para outro estado no carro dele.
Ah, claro. Porque sou uma universitária que não tem carro nem dinheiro.
Bufo e reviro os olhos, enquanto praguejo para mim mesma, com meu humor defasado pela manhã. O “coelho de Satã” deve chegar a qualquer momento, ele mesmo disse que viria aqui logo após passar na empresa há alguns minutos atrás.
Na verdade, mal posso esperar para rever meus pais, dado o longo tempo desde a última vez que nos reencontramos, sendo aqui mesmo em Seul, quando eles cansaram de esperar que eu tivesse uma folga do trabalho e faculdade para finalmente ir até Ulsan. O que eu preciso agora é das palavras sábias deles e do acalento familiar sem igual que eles tanto me trazem. É isso.
Então fecho os olhos e me deleito no sentimento e no anseio de sua proximidade, me arrancando um sorriso e um calor que inflama em meu peito; quando ouço o ruído do carro que entra a rua à direita.
E lá está ele.
É claro que é ele quando uma Mercedes Benz de cor preta alcança a entrada do meu dormitório na rua das habitações universitárias.
Fazendo-se sempre inconfundível.
Pego a alça da minha mala de mão e vou em direção ao veículo, ao passo que ouço quando a porta se abre e o garoto sai, encostando-se na lataria do carro, me aguardando. Ele está recostado contra o carro como um abusado. E é exatamente isso que ele parece, um marrento atrevido. E eu me odeio um pouco mais essa manhã quando engulo seco ao sentir meu estômago revirar e um calafrio me acertar em cheio no momento em que ele me encara com suas orbes amendoadas e negras.
E a medida que me aproximo, registro seus detalhes; a calça jogger cinza ornando com os sapatos pesados, a camiseta preta grande demais a ponto de esconder seu corpo esculpido e metade das tatuagens, e o cabelo que ele havia jogado para trás, deixando sua testa à mostra. Ridiculamente gato.
– Jeon... – Ele foi assim para a empresa? O cumprimento sem jeito quando estamos perto suficiente um do outro. Seu cheiro frutado apossando-se de toda minha percepção e sendo responsável por sempre abaixar minha guarda, competindo apenas com os olhos de coelho.
– E aí, princesa? – Ele pega a mala da minha mão e a posiciona no bagageiro do carro luxuoso, logo se virando em minha direção e dando mais um de seus sorrisos que desenham-se no canto de sua boca. – Pronta?
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Duas horas de viagem se passaram e Jungkook está estranhamente calado essa manhã. Nada de suas implicâncias rotineiras ou do seu humor descarado e provocante, seus olhos permanecem fixados na estrada e seus dedos tamborilam o volante no ritmo da música que ecoa no veículo super organizado, limpo e cheiroso, típico do virginiano sisudo ao meu lado.
O painel adornado por luzes led na cor púrpura e todos os adereços eletrônicos de design arrojado atraíram meu olhar profissional quando primeiramente adentrei o veículo. Mas ao meu lado, a estrada passa pelos meus olhos, revestida em suas imediações por pinheiros e uma mata fechada que me lembra de bosques, imagem essa que apenas sou agraciada quando estou indo de volta para casa. Suspiro fundo depois de apreciar o cenário tão belo e volto a fitar o garoto que está atrás do volante.
– Guk? – Não me contenho mais.
– Hum? – Ele murmura, mas sem me olhar.
– Tá… Tudo bem? Aconteceu algo na faculdade ontem?
– Uhn? Oh, sim… Tá tudo bem sim. – E ele me dá uma olhadela rápida, em uma tentativa de validar e me convencer de suas palavras. – Tava aqui só pensando em alguns problemas que deixaram na minha mão e eu tenho que resolver na GD essa semana ainda. Por que?
Ele soa vago, parecendo até que isso é apenas parte da verdade sobre estar tão introspectivo. E mesmo assim, uma culpa me lavra internamente quando ele profere suas palavras em um tom tão miúdo e longe. Estou atrapalhando.
– Não sei, você está tão quieto. Quieto demais até mesmo para você… – Volto a observar a paisagem que percorre o meu lado da janela. – Você não devia estar me levando agora e perdendo seu tempo com isso, você tem claramente outras coisas importantes a fazer e está aqui no meio do nada, em uma estrada rumo à Ulsan, tsc. – A chateação na minha voz é evidente.
– Isso aqui é importante, não se preocupe, princesa. – Ele coloca a mão na minha coxa, o que a faz contrair rapidamente pelo afago quente da pele dele em contato com a minha, passando a fazer um carinho com o polegar. – Fui eu quem te sugeriu, não foi?
O garoto sorri de forma que destaca sua pintinha abaixo do lábio inferior e faz seus olhos estreitarem mais, me fazendo arranhar uma risada também, mas tão logo ele mordisca a boca, concentrado e voltando a ficar absorto em seu mundinho difícil de adentrar.
– Só prefiro me concentrar na estrada já que você é uma distração fácil. – Ele diz e meneio a cabeça, antes dele continuar a fala com um sorriso leve. – Prefiro manter a atenção em viagens de carro.
– Hummm, sei. Não gosta de viagens de carro, é?
Então Jungkook apenas me olha novamente e dá um aperto na coxa que ele continua acariciando. Esse garoto e seus mistérios. Seu cheiro imponente extasia meus sentidos e me coloca quase em transe enquanto ainda o observo, com sua mão espalmada e suas veias saltadas seguindo o movimento contínuo em minha coxa; antes de suspirar fundo e calcular meus próprios atos, inquieta em decidir se devo ceder às minhas vontades de acalentá-lo ou apenas virar-me novamente para minha apreciação da vista ao meu lado. Mas minha mão esquerda periga e instintivamente vai de encontro à nuca do garoto, em um carinho tímido, meus dedos embrenhando-se nos fios negros e sedosos.
"Touché", como diria ele.
Sinto Jeon relaxar com o toque e seus ombros descontraem, fazendo um sorriso pequeno e acanhado de coelho aparecer.
Ele desperta lados meus que até eu mesma achava que estavam adormecidos.
O resto da viagem consigo arrancar alguns de seus risos estridentes com piadas ruins e em momentos que ele tirava sarro de alguma coisa que eu só fingi me importar em não gostar, porque na verdade estava aliviada de vê-lo relaxado, até mesmo cantarolando com sua voz suave as músicas da playlist que entoava. Aí está Jungkook novamente.
Então adentramos uma rua familiar, alindada por casas da vizinhança que conheço bem, o céu aberto e ensolarado contrastando com os jardins de cada moradia e os gritos de algumas crianças do bairro que brincam na calçada do lado de Guk. Este, checava o GPS digital do painel do carro apreensivo com a proximidade do meu destino.
– Jungkook...
– Chegamos, não é?
– Você pode me deixar aqui, eu vou andando até o fim da rua, não tem problema.
– Aeri, eu dirigi de Seul até aqui, você acha mesmo que eu não vou te deixar na porta?
– Não é preciso... Sério. Eu já vou estar te devendo um imenso favor imensurável por ter vindo até aqui...
– Ah, para vai. – Ele solta um riso soprado. – Eu vou estacionar e pegar sua mala ainda.
Então rápido demais eu reconheço a casa de meus pais e Jungkook prontamente para o carro e puxa o freio de mão com um sorriso travesso, estacionando o carro rente ao meio fio. Por que ele fica tão atraente dirigindo? Não é hora de pensar nisso. Agora estou me arrependendo de ter trago de volta o Jungkook insolente e teimoso, disposto a me tirar do sério enquanto meu interior embrulha com a possibilidade de tornar essa situação doméstica demais. Mais uma para a conta.
– Jungkook, eu posso pegar minha mala sozinha, qual é. – Digo, tentando abrir a porta do carro, mas ele faz o mesmo e mais rapidamente, me deixando segundos para trás quando não destrava minha porta antes da dele.
– Princesa... – O garoto ria do meu nervosismo enquanto se dirigia para a parte traseira do carro, mas praticamente corro junto com ele, apanhando a pequena mala do porta-malas aberto. Porém, o descarado me pega de surpresa quando me gira contra a lataria do carro preto e espalma as duas mãos ao meu redor, contra os vidros do carro, me encurralando.
– Isso não é hora para as suas gracinhas, Jeon.
– Você disse que estava me devendo, não disse? Eu quero meu pagamento agora. – Ele profere devasso, arrastando o nariz contra o meu, e automaticamente meu coração parece aderir às suas ações, batendo mais rápido que o normal e me transformando em um amontoado de reações inquietas sob seu contato deleitável e hipnotizante.
Mas quando seus lábios ousam roçar os meus, ouço a porta da frente destrancar e o empurro para longe e nos dispomos um ao lado do outro.
– Moon Aeri! Que demora, já estava preocupada! Você…. Oh.
Eu conheço essa voz preocupada e incisiva de longe. Omma. Quando ela nos vê, para no meio de suas palavras e puxa um pouco o suéter azul escuro que usava para perto de si, arrumando-se e sorrindo.
– Quando você disse que viria com alguém eu imaginei que fosse Taehyung. – Ela continua sua fala, um pouco embaraçada.
Sinto olhar de Jungkook pairar sobre mim, então lhe dou uma olhadela de volta e o garoto levanta uma sobrancelha.
– Ah, omma… Não, esse é o---
– Jeon Jungkook, prazer, Sra… – Ele apressa-se em apresentar-se, curvando-se quase que exageradamente e então me fita esperando que eu diga o sobrenome a qual ele deve referir-se à ela.
– Moon, minha mãe usa o sobrenome do meu pai¹. – Explico em um ciciar para que ele ouça.
– Prazer, Sra. Moon!
– Hum? Jungkook?! Oh, claro, eu lembro de você! Meu Deus, como você cresceu… Sim, me lembro bem, vocês estudaram a vida toda juntos! – Ela diz unindo as mãos e o observando cuidadosamente depois de ter feito uma breve saudação à Jeon também. Mas que animação é essa?!
– Pelo amor, omma, a vida toda é muito tempo, não é pra tanto.
– E agora estão na mesma faculdade?! Aeri nunca me disse. – Sua voz parece cada vez mais empolgada.
– Mais ou menos, estamos na mesma universidade apenas, para falar a verdade. – Ele diz, de repente soando tímido. Jeon leva as mãos até suas orelhas, ainda sorrindo. Ele está com vergonha e eu sei disso. Ele sempre faz isso quando está envergonhado ou animado demais, e nesse caso, posso dizer que é a primeira opção.
– Oh, mas que feliz coincidência! Toda a trupe da época de escola ainda unida! Jungkook, por favor entre, nos acompanhe para o almoço!
– Omma! – O modo pânico foi instaurado em mim. – O… O Jungkook tem um outro compromisso aqui em Ulsan, ele não veio apenas me trazer, né... Só peguei uma carona, então não vai poder ficar, certo? – Mentira, ele realmente só veio até aqui para me trazer, mas jamais falarei isso. Quando o encaro, minhas orbes quase saltam, querendo que ele entenda a deixa.
– Err… É, é, tenho sim, Sra. Moon, me desculpe. Mas agradeço o convite, foi muito gentil.
Olho novamente para Jungkook com o cenho franzido e uma careta, que porra é essa?
– Ah, vamos! Você vai ter que parar para almoçar de qualquer forma, não vai? Imagina, ficaram horas na estrada, não deixarei que vá sem ao menos comer conosco. Venham, venham, entrem.
Ao ouvir a fala de minha mãe, volto para Jungkook com uma cara braba e negando com a cabeça o suficiente para que ele perceba. Mas o coelho apenas me observa com os olhos arregalados e encolhe os ombros, em derrota, quando a mãe Moon o puxa graciosamente pelo braço. Puta merda.
Ele para apenas para pegar minha mala e minha mãe o deixa andar a nossa frente, vindo até meu lado me acompanhar em meu caminho debandado a passos curtos, tentando evitar o inevitável e fingir que nada disso estava acontecendo.
Que armadilha do destino.
– Olha… Apesar das tatuagens e dos vários brincos, ele se tornou um belíssimo rapaz, tão educado e prestativo… – Ela sussurra o observando de costas.
– O Jungkook?! Mãe, por favor…
– Ué, vocês não estão…? – Não deixo que ela termine a indagação.
– Aigoo! Não?!
Minha pressão abaixa quando ela sugere que estejamos juntos, apesar de não estar completamente errada, e abaixa um pouco mais quando o vejo adentrando minha casa e se fazendo de repente parte do cenário familiar, introduzindo-se quase que sem querer por essa situação imprevisível.
– Querido, nossa pestinha chegou! – Minha mãe me abraça de lado e seu riso alegre preenche todo o cômodo, o cheiro doce de seu perfume me fazendo lembrar como estou em casa.
– Pestinha, é? Nada disso, nosso pequeno milagre, isso sim! Mas cadê essa garota? – Ouço meu pai vindo do jardim e seu olhar brilha quando me encontra, vindo direto me abraçar juntamente com minha mãe.
– Um milagre que ela não tenha me matado ainda, isso sim! – Minha mãe profere. – Quantos meses sem ver sua mãe mesmo, Moon Aeri?!
– Desde junho, não é? Tempo demais, filha... – Ouço meu pai expor e então seu olhar para em Jungkook. – Opa, e você trouxe consigo alguém para nos apresentar? Esse seria…?
– Esse é Jeon Jungkook, querido, você deve lembrar dele de quando moramos em Seul! – Minha mãe o introduz e então vejo meu pai se aproximar, apertando a mão de Jungkook depois dele saudá-lo, mais uma vez quase que exageradamente. Toda essa interação faz meu estômago revirar novamente, mas não da forma que aconteceu essa manhã.
Eu só queria desaparecer.
Ainda mais ao imaginar o que Jungkook está pensando disso.
– Ah, Aeri-ah, estamos terminando de assar a carne de porco no jardim... Estávamos tão animados com sua chegada, sabia? Já deixei quase tudo pronto pensando que você estaria com fome quando chegasse, conhecendo minha filha como conheço. – Ela ri. – Vou pedir para o seu pai colocar mais para nosso convidado! – Ela diz próxima a mim, esperando a minha reação, ao passo que apenas eu a escuto, mesmo que na verdade eu esteja ainda envolvida em observar meu pai conversando qualquer coisa que seja com Jungkook, enquanto o garoto fita alguns retratos de família na cômoda ao seu lado. – Me dêem mais alguns minutos para finalizar o molho e estará tudo pronto para comermos juntos!
– Mas nós podemos terminar de fazer isso para a senhora. Não é, Moon? – Jungkook se vira, escutando a fala de omma e se dispondo a ajudar. Melhor dizendo, me dispondo.
– Quê?
– Podemos ajudar sua mãe a terminar o almoço... Não quero incomodar, ao menos nos deixe fazer isso.
– Oh, nossa... Que gracioso de sua parte, Jungkook. – Minha mãe diz em tom de aprovação, o observando novamente. – Então tudo bem, eu e seu pai iremos cuidar das carnes e vocês se encarregam do molho do samgyupsal, perfeito! Minha lua, vou deixar sua mala no seu quarto, tá? E não deixe Jungkook acanhado, sinta-se em casa.
E sem dar a mínima para a minha cara estática, ela apenas sai para pegar minha pequena mala e adentra a casa, me deixando com o coelho de Satã ao meu lado parado como uma estátua esculpida em puro cinismo.
Viro-me para ele e semicerro os olhos, expirando, então aceno com a cabeça para que ele me siga até a cozinha, e quando finalmente estamos os dois nela, a fecho atrás de mim e cruzo os braços de frente para o garoto.
– Sinceramente! Devia ter insistido em não ficar, olha onde você se meteu.
– Eu tentei. – Ele fala, encostando-se na parede atrás dele. – Mas eu que não ia negar um convite incontestável nem comida.
– Aish, Jeon! – Passo a mão pelo meu rosto, inspirando e expirando o ar de meus pulmões cansados de perder o fôlego com o que está se principiando.
– Aeri, se vo---
– Já que estamos aqui vamos terminar de fazer esse samgyupsal, ok? Não tem como voltar atrás agora mesmo. Acho que só falta o molho pelo que minha mãe falou, então... – Me apresso em pegar os recipientes e procurar os ingredientes da receita que tenho em mente, mais ou menos, de como seja.
– Tá... – Jungkook profere ciciado, puxando os fios de cabelo da testa para trás. – Hah, esse é o meu prato favorito.
– Eu sei.
– Ah, sabe é? – E ele faz aquela cara de desgraçado levantando uma sobrancelha e pra completar, o sorriso de canto atrevido.
– Me poupa, vai. Eu lembro de você comendo de uma forma traumatizante, isso que eu lembro. A cena ficou entranhada na minha cabeça, ainda tenho pesadelos.
– Ah, mas é claro, chatinha, hah… – E ele observa os ingredientes que disponho na bancada com o cenho franzido, provavelmente arrependendo-se da decisão ou duvidando do meu conhecimento gastronômico. Como se a culpa não fosse dele mesmo.
– Vamos, você se encarrega de picar o alho e a cebola, ouviu? E não me tire do sério, eu estou com uma faca na minha mão. – Ameaço enquanto abro o pote vermelho da pasta de pimenta.
– E eu achando que o perigo são os caras hostis com que eu brigo, hah... Você é o verdadeiro perigo.
– Você vai descobrir isso bem rápido.
– Tô descobrindo que o perigo é realmente bem mais gostoso. – O idiota me faz rir, mas não deixo de dar um soco de leve no tórax dele, que logo gargalha de um jeito que faz um arrepio percorrer minha nuca. – Beleza, beleza... Mas, eu vou ignorar completamente essa receita da sua cabeça e vou fazer o que meus ancestrais querem que eu faça. E eles estão sussurrando no meu ouvido que só isso de alho não vai rolar, precisamos de mais.
– Seus ancestrais? Você é tão irritante. – Digo e paro de misturar o gochujang, pegando impulso e sentando-me na bancada da cozinha, olhando ao redor para encontrar um pano para limpar meus dedos que ainda estavam sujos com a pasta.
– O que você acha que está fazendo?
– Eu tive uma viagem muito longa, sabe como é. Vou descansar e te deixar fazer toda função de expert, pode cozinhar, vou ficar observando seu belo trabalho.
– Ah, não, não, não mesmo. – E ele pega firme na minha cintura, querendo que eu desça novamente. – Essa ideia foi sua, então iremos fazer juntos.
– Essa foi sua ideia, Jungkook.
– Oh... Essa? Realmente. Não foi uma das minhas melhores.
– Você geralmente tem ideias boas desde quando?
– Só as melhores. – Ele diz, um riso pretensioso aparecendo em seu rosto estupidamente bonito. – Mas foi ideia sua vir para Ulsan.
– Eu tinha que vir, mas foi ideia sua me trazer! Aigoo. – Então sacudo a mão em um gesto para dispensá-lo, mas então o movimento faz voar em seu rosto o gochujang que ainda restava de meus dedos sujos. – Oh, ops...
– Você acabou de jogar gochujang na minha cara?
– Jungkook... – Tento dizer, mas não consigo parar de rir de nervoso.
– Aeri, isso tem pimenta, tira da minha cara, vai. – Jungkook diz com os olhos fechados e mordendo os lábios pra não rir enquanto controlava sua indignação. – Se isso cair no meu olho...
– Não vai, seu garoto chorão. – Desço do balcão e procuro agora um pano limpo para tirar o molho do rosto do garoto dramático na minha frente. – Tão valentão pra umas coisas, mas olha agora...
– Ah, cala a boca. A gente tá fazendo tudo menos o molho da sua mãe. – Ele reclama, abrindo um olho, e eu finalmente pego o tecido para tirar a iguaria que deixava sua tez avermelhada.
– Não estamos fazendo nada ainda... Shhhh, você fala demais. – Ignoro seu olhar matador e estendo a mão para limpar o rosto dele. Esse cara é uma bagunça e me transforma em uma bagunça três vezes maior. Mas tudo que faço é rir enquanto limpo o rosto de Jeon, e ele não consegue evitar seu riso também, a respiração dele se misturando com a minha enquanto nós dois entonamos as gargalhadas de frente para o outro.
Diminuo as batidinhas na pele dele e encaro seus olhos por um momento. Eles são escuros como ônix. Amendoados. Perigosos. Diria até que dominantes de tão expressivos. Me perco no momento e Jungkook limpa a garganta e abaixa minha mão que segurava o pano de perto de seu rosto.
– Pronto, sem rastros de gochujang. Satisfeito?
– Não ainda. Mas então, vamos terminar logo com isso? Juntos, sem gracinha, sua preguiçona. – Ele profere sorrindo com seus dentes proeminentes.
– Não sei... O que seus ancestrais estão te dizendo?
– Eles estão dizendo que você é uma espertinha marrenta. – Jungkook solta uma risada provocativa e passa o dorso da mão pela minha bochecha, aproximando-se e me causando uma faísca de eletricidade. Esse idiota mexe comigo. – O gato comeu sua língua, princesa? Ou foi um coelho que te deixou sem palavras?
– Argh! Você me fez lembrar de uma coisa, melhor não me chamar de “princesa” na frente dos meus pais… Eles definitivamente irão ter uma ideia errada disso.
– Ideia errada? E que ideia seria essa? – Ele pergunta e o olhar dele recai sobre os meus lábios, seus dedos agora descendo da minha bochecha e enroscando em uma mecha do meu cabelo, que ele se entretém em ficar enrolando entre o polegar e o médio.
– Argh... Olha, você fica ali e eu fico aqui, assim não corre o risco de nos... De nos agarrarmos quando não devemos.
– É tão difícil assim não me agarrar, Moon?
– Jungkook... – O encaro séria, ao passo que ele larga a mecha que enrolava nos dedos e ergue ambas as mãos para cima, rendido.
– Eu já entendi que sou irresistível.
– Fala como se não estivesse me fitando como se pudesse me comer com os olhos.
– Ah, pode apostar que eu queria estar te---
– Não ouse terminar a frase.
Ele ri satisfeito e esbarra em mim de propósito, encostando seu torso enquanto passa por trás de minhas cotas e encostando nossos corpos propositalmente.
Minutos se passam enquanto nos concentramos em apenas terminar nossa missão de fazer o molho de acompanhamento do almoço e percebo que Jungkook vai relaxando mais com o passar do tempo, bem mais apaziguado do que estava quando o encontrei hoje cedo.
O cheiro das especiarias e condimentos preenche a cozinha, junto com um silêncio confortável e o som metálico dos utensílios que usamos, misturando-se às gargalhadas que escuto de minha mãe na área livre da casa.
– Uhn. – Jungkook faz um som para chamar minha atenção. – Taehyung já veio aqui? – Ele pergunta concentrado em cortar o alho em tamanhos perfeitamente iguais.
– Hum? Tae? Ah, não… Omma o mencionou porque nas ocasiões que eles foram me visitar em Seul, Taehyung fez questão de os encontrar.
– Humm… – Ele resume sua resposta em um murmurar afirmativo. O encaro, mas ele apenas continua concentrado em cortar o alho com um bico nos lábios.
Solto um riso soprado curto para que ele não ouça. Olho ao redor, pelo ambiente acolhedor da casa de meus pais, e eu não sabia que voltar para casa depois de meses seria tão bom. Falar ao telefone não é suficiente ou a mesma coisa que passar um tempo sob seus cuidados afáveis.
Terminamos o acompanhamento e rumamos para a sala para arrumar a mesa enquanto meus pais traziam a carne de porco e arranjavam nos receptáculos específicos do prato, minhas mãos comichando para beliscar as outras guarnições que emanavam um cheiro tão gostoso.
– Com fome? – Jungkook me provoca.
– Faminta!
♆
A comida está deliciosa. Deliciosa o suficiente para me fazer grunhir de prazer e deslizar contra o estofado atrás de minhas costas; realmente estava sentindo falta dos pratos de omma, o que me fez comer até me sentir empanturrada de tanta coisa gostosa. “Sempre tão receptivos e carinhosos...”, penso quando olho para seus rostos brilhantes e aconchegantes. Percebo pelo canto de olho que Jungkook também come com deleite, fazendo sua costumeira expressão que seria facilmente confundida com “braveza”, mas sei que é porque ele está apreciando muito o que come, então sorrio sozinha inevitavelmente.
Escutamos histórias minhas de infância constrangedoras demais, que minha mãe conta, para que eu possa manter uma faceta austera; ainda mais vendo Jungkook gargalhar junto com meus pais, e sou pega de surpresa quando ele até compartilha algumas de suas.
Mesmo que ainda um pouco tímido, Jeon fala sobre seu, nosso, grupo de amigos e como isso se tornou o sistema de apoio uns dos outros. Pode ser apenas impressão, mas sinto que Jungkook fala bem de Seul e da faculdade de uma forma para atiçar os Moon a pensarem em me deixar ficar lá, prenunciando indiretamente bons argumentos para a conversa que terei com eles à sós esse fim de semana. Então, sinto seus dedos longos apertarem minha perna por debaixo da mesa e imediatamente um calafrio de sobressalto quase faz meu rosto me entregar.
– Sabe, nos disseram que não conseguiríamos ter filhos… – Minha mãe começa a dizer, cessando o riso aos poucos e o olhar perdido em seus jeotgaraks. – Sempre falamos brincando, mas ela realmente foi nosso pequeno milagre. O milagre de um desejo do ano novo lunar que nos foi dado. – Omma diz quase em um murmúrio, ainda sorrindo.
– Jagyia, não a embarace na frente da visita... – Meu pai sorri gentil e continua após um suspiro e ri. – Mas sim... O que podemos dizer? Aeri é nosso orgulho.
– Então fico realmente feliz que ela não esteja sozinha. À medida que ela foi crescendo, ficamos preocupados que ela se tornasse uma filha única solitária, ainda mais sem muitos primos ao redor, porém ela sempre teve facilidade em fazer amigos. – Ela estende a mão sobre a mesa, que delicadamente recebo com a minha. – Tanto em Seul quanto aqui em Ulsan, Sora mesmo se tornou praticamente da família, assim como o Kim, que foi um grande apoio quando ela foi transferida de volta para Seul e sou grata por isso. E agora você! – Ela dirige o olhar à Jungkook, e ele aperta mais seu contato em minha pele. – Olha só como ela está envolta de pessoas queridas... Mesmo sendo birrenta!
– Ela é especial, não é? – Appa se dirige à minha mãe, meneando a cabeça enquanto ri.
– Sim... – Jungkook desliza a mão pela minha coxa discretamente e seu olhar amendoado busca o meu. – Ela é.
Um choque gélido percorre meu estômago até minha garganta e não consigo olhá-lo. Que situação. Que situação para mim. Que situação para Jungkook. E ele ainda tem que aparentar ser o "bom moço". Noto meus pais levantando-se da mesa e começando a recolher as louças dispostas, mas não consigo me mover ainda. Fico embebida pelo embaraço e furor que eu alimento desde que chegamos; sabia que quase que certamente Jungkook não escolheria estar ali, que isso era uma situação doméstica e particular demais, que ultrapassava as linhas preestabelecidas silenciosamente. E imaginar que ele estava vivendo isso entre meus familiares sem querer estar aqui, encurralado em uma situação irremediável, me deixa ainda mais irritada, apreensiva, agoniada.
Ao mesmo tempo em que o observo ajudar ambos a retirar a mesa e interagir com meu pai, que costuma ser mais fechado, escutando atentamente todas as histórias dele com aparente interesse sobre carros e aventuras joviais de appa, ao passo que tentava dividir a atenção com minha mãe, me fazem sentir estranha. Estranhamente apreciando ver isso, parecendo quase... Natural. Quase.
Levanto e movo-me para ajudá-los também, mesmo lembrando de nós dois na casa dele, do cenário privado, dele usando seus óculos de aro prateado e o cheiro de Jungkook emanando quente de seus poros e entranhado nos lençóis de sua cama; o cheiro frutado com menta misturado com suas loções e aroma de banho tomado embebedando minha memória.
– Aliás, vocês fizeram um ótimo trabalho com o molho! Masisseosseoyo! Mas você não precisava ter feito nossa visita ajudar, Aeri-ah! – Minha mãe me tira de meus pensamentos vacilantes.
Eu rio de seu comentário, mesmo lembrando que, novamente, foi ele quem se ofereceu.
– Ah, Jungkook, você não precisa ir embora ainda, pode esperar um pouco mais aqui se quiser... Até porque nós acabamos de comer, a não ser que você precise ir logo para o seu compromisso. Fique à vontade. – Ela continua, mas eu conheço esse sorriso espirituoso.
Parece que estamos presos nesse cenário caseiro demais, paralelo ao que estamos habituados e ao que nos é conveniente.
Jeon perde as palavras quando abre a boca como um peixe e não emite som algum.
– É, acho que posso apresentar o resto da casa para Jungkook antes dele ir então. – Suspiro e respondo, tendo em vista que o garoto fica sem reação, mas é também uma desculpa para conversar com Jungkook. – Vem comigo até meu quarto. Uhn? Jeon… Você não vem?
– Hum?!
– Vem logo. – Rio, os olhos amendoados dele se arregalaram de forma quase inocente, quase acredito nessa feição dele, tímido pelos meus pais.
♆
– Quase acreditei que você era aquele coelhinho inocente de novo. – Digo, encostando a porta atrás de mim, do meu quarto antigo na casa deles.
– Quê?
– Você. Sendo bom moço na frente deles. – Aponto com a cabeça em direção à porta.
– Hah… – Ele levanta uma sobrancelha rapidamente e dá mais um de seus sorrisos encabulados e charmosos. – Fiquei sem reação quando me chamou para o seu quarto, sei lá. Pais.
– Primeira vez que uma garota te chama para o quarto dela Jeon? Está nervoso? – Sua resposta escabreada e nada habitual gira uma chavinha em minha mente, quando respondo zombeteira, mas de forma sensual, me aproximando dele.
– Muito nervoso... Não sou de fazer isso, sabe? Mal beijei na boca na vida… É você quem vai me ensinar, Moon?
– Idiota. – Mas nós dois rimos no mesmo instante.
– Então quer dizer que você é um milagre, é princesa? Milagrosamente chata.
– Ah, cala a boca, Jungkook. E nunca mencione isso para ninguém! Aigoo.
– Eu? Eu não vou ficar falando de você por aí, você nem contou pra sua mãe que estávamos estudando na mesma universidade.
– Eu ia dizer o quê?!
– Que o seu amigo de infância, ou melhor, seu crush de infância estava te agraciando com a presença dele no campus.
– O pedaço de porco que você comeu estava estragado? Hah, você se acha, não é? Estava mais para o meu inimigo de infância.
– Se você diz… – Ele solta um riso, convencido. – Você vai ter que admitir em algum momento, princesa.
– Admite você, garoto. Ficava suspirando por mim pelos corredores da escola e pelas arquibancadas do ginásio. – Entro na brincadeira.
Mas ele me olha por alguns segundos e então revira os olhos, murmurando algum xingamento em japonês antes de sorrir e observar agora o quarto, andando devagar, arrastando os dedos pela mesa encostada no lado esquerdo do cômodo e em todas as coisas que ocupam meu espaço, até parar em frente à uma ilustração na parede.
– E essa ilustra de tigre? Você quem fez?
– Uhum, foi em um trabalho da faculdade... Tínhamos que fazer uma representação animal, e o tigre é meu favorito.
– É? Eu tenho um tatuado, um grande símbolo da nação, né? Meu lado coreano intrínseco. – Ele ri abafado.
– Acho que é sua tatuagem favorita pra mim. Gosto dela e também é em um lugar que gosto...
– Ah, é? Agora você gosta das minhas tatuagens? – Jungkook ergue uma sobrancelha. – Eu sou mais o dragão.
– Não me diga, eu sei. – Respondo, passando minhas digitais levemente pelo desenho no pescoço dele. – Mas eu sei mesmo, você vivia dizendo quando éramos crianças e mesmo anos depois, na escola, você continuava dizendo o quanto gostava.
– Hah, era porque meu pai tem uma tatu---. Ah, tsc, nada.
– Sempre misterioso. Somos não estranhos que fingem ser estranhos.
– Ah, a gente mudou.
– A gente se tornou adulto, você quer dizer.
– É. Eles dizem. – Ele profere, então coloco alguns fios do cabelo cor de ébano dele atrás de sua orelha, como ele gosta de fazer. E Jeon toca a pontinha quadrada de seu nariz no meu rapidamente, em um carinho, e se afasta. – Vou continuar explorando o seu quarto pra descobrir mais da Moon Aeri que morava em Ulsan.
– Sai fora, pode parar por aí! Jungkook... Jungkook-ah! – Ele já está novamente perambulando, procurando em algo para mexer e futricar, apenas para me provocar.
– Quê? Tem algo que eu não posso ver, é? – Jeon finge que vai abrir uma gaveta com desenhos antigos.
– JEON! Só tem desenho feio aí!
– Duvido.
– Preciso manter minha reputação profissional intacta!
– Pois se fosse eu, te contrataria de toda forma, você é um talento ambulante, chatinha. Eu gosto de ver seus desenhos, vai, deixa eu dar uma bisbilhotada...
– Jungkook! – Tento falar em meio aos risos de nervoso.
– Óóó... – Ele finge que vai abrir mais, com a mão no puxador. Mas pulo em suas costas, meus braços entrelaçando-se com os de Jungkook, que a essa altura não consegue parar de gargalhar, enquanto eu ainda protesto alto, meu corpo esbarrando no dele e nossos braços continuando a lutar um contra o outro, em nossa brincadeira.
Nossos risos ecoam alto pelo quarto, e ele me gira, até que meus pés se emaranham nos de Jungkook e ele acaba esbarrando na cama de solteiro atrás de nós, me derrubando junto com ele.
Caio por cima de seu corpo agitado, me acomodando entre suas pernas e nossas risadas e gritos cessam completamente quando noto que nos encontramos nessa posição. O rosto de Jungkook mantém-se a suscetíveis centímetros do meu, nossas respirações tórridas e vertiginosas entremeando-se uma na outra; ele me olha nos olhos com um vislumbre desnorteado. Minha língua se move para lamber inconscientemente meu lábio inferior languidamente e as orbes do garoto não conseguem deixar de seguir meu movimento, mesmo ainda sem fôlego pelo nosso jogo infante.
Quando volto a mirar suas írises, elas estão completamente obscuras pelas pupilas que explodem dilatadas e o fôlego cortante.
– Guk… – Digo baixinho.
A onda elétrica invisível e perigosa demais para fingir ser inexistente passando do corpo dele para o meu e do meu corpo para o dele.
Eu deveria começar o assunto que incendeia cada palavra que é marcada em minha garganta e agora mora agoniante em minha mente. Poderia até mesmo simplesmente “liberá-lo” para finalmente fazer sua viagem de volta para casa, mas…
– Vou tomar um banho. – Pigarreio, levantando-me. – Você pode ficar aí, liga a TV se quiser, tá? Mas ó... Quietinho.
– Não posso me juntar a você?
– Jeon...
– Não é como se já não tivéssemos tomado banho juntos…
– Nunca mais fale isso em voz alta. – Respondo, mas o resfolegar do meu riso me acompanha soprado logo em seguida, dando a entender que eu não falo sério, mesmo enquanto o garoto no meu quarto finge estar emburrado e então deita toda sua birra na minha cama.
Marrentinho.
Quando saio do quarto, fecho a porta branca do banheiro silenciosamente, encostando a tez, agora adornada de pequenas gotículas salgadas, de minha testa nela e respirando devagar, profundamente, tentando acalmar as batidas do meu coração estúpido.
Dispo-me de cada peça de minhas roupas de hoje cedo no modo automático antes de abrir o registro da ducha, minha consciência vagando longe entre pensamentos entorpecidos e desconexos... Atordoados pelos sentimentos dúbios que fazem morada em alguma parte confusa de minha mente; onde um coelho agora tem abrigo sem ao menos ter sido requisitado, onde brinca entre a confiança e o correr para longe, desaparecer e se esconder, entre o medo de orgulho ferido e a vontade de entregar-se de olhos fechados à beira da queda livre rumo ao desconhecido, onde ele periga seus dedos insaciáveis por um tesouro em forma de coração de uma lua de rocha que não cede por nada e muito menos em nome da incerteza disso ser apenas um grande desafio, apenas um jogo de presa e predador fascinante demais para não se viver.
♆
Deixo o banheiro já sentindo-me um tanto mais renovada e leve, rumando direto para meu antigo quarto, atenta às frestas de raios solares alaranjados que invadem largos e cálidos a casa pelas janelas em um prelúdio da passagem para o entardecer; minhas solas pisando firme contra o piso amadeirado com meus pés gélidos e ainda em parte molhados, trazendo uma sensação gostosa em meio ao contraste com as últimas centelhas do mormaço. Cruzo a porta, ainda passando a toalha macia pelos fios dos meus cabelos úmidos.
– Guk, pra sua sorte acabei de ver que minha mãe preparou alguns dosir---
Paro meus passos quando percebo então que Jeon está dormindo.
Ele deve ter pego no sono enquanto me esperava sair do banho, e percebo que ele havia ainda tentado assistir um pouco de TV já que ela estava ligada e sintonizada em um canal de luta.
A boca aveludada e acentuada no arco do cupido está entreaberta, ressonando baixinho, o rosto suave e gracioso contrastando com o resto do físico, parecendo apenas um garotinho preso em um corpo já másculo e viril, coberto por vestes escuras de cima a baixo, tatuagens e algumas cicatrizes conquistadas por meio de histórias ainda não contadas.
Engulo seco.
Sinto as pontas dos dedos frias, mas não mais pelo frescor do banho, e uma percepção igualmente gélida invadir e revirar meu interior, beirando a sensação de náuseas a me acometerem; eu parecia estar voando em ar rarefeito ou entrando em outra dimensão enquanto me perdia na imagem que se desdobrava em minha frente em cima dos meus lençóis.
Uma sensação que… Argh.
Meneio a cabeça, vou até a porta e a tranco com cuidado, preocupando-me em fazer o mínimo de barulho possível quando a chave girou na engrenagem.
Dou mais uma olhadela pela janela e o anúncio da noite que se aproxima já é dado, ataco meu lábio inferior com uma mordiscada e contemplo a possibilidade e o anseio em juntar-me a ele depois de já algum tempo desde a última vez que estivemos aninhados.
Quando meu joelho pousa no colchão, reclino-me o suficiente para deitar ao lado do garoto, devagar, com receio de acordá-lo. Ele deve estar cansado pela viagem de carro e pelos acontecimentos que se desenrolaram, então lembro que mais cedo Jungkook realmente parecia mesmo combalido, fisicamente, mentalmente, simplesmente fora de órbita.
Jungkook se remexe, grunhindo com o vinco aprofundado entre suas sobrancelhas, e quando percebe que estou ao seu lado na estreita cama de solteiro, me puxa pela cintura, ainda de olhos fechados. Ficamos assim por minutos que parecem durar por tempo infindável, as pálpebras ainda cerradas, sentindo o calor que emana do corpo junto com o estresse do dia, que se esvai para uma gaveta temporária, uma trégua mental momentânea; permitindo um instante de calmaria graças a dois estômagos cheios de comida deliciosa e uma mão enroscada no cabelo macio de Jungkook. Desprendendo no ar um pouco mais do cheiro de seu shampoo e de sua pele, deixando a encargo da roupa de cama a incumbência de confinar o aroma doce para reminiscência.
Intoxicantemente doce.
– Você tem que ir embora.
– Você é a minha maior hater. – Sua voz ressoa como um grunhido grave, rouco, e se eu estivesse com as palmas das mãos em seu torso certamente o teria sentido vibrar.
– Sorte sua que sou eu.
– Por que você não fica aqui mais um pouco comigo? Aish, você já tá de roupa? – Ele fala a última frase mais manhoso e o bico se forma na boca dele, o cenho franzido quando acorda o suficiente para finalmente reconhecer o tecido da minha blusa.
– Jungkook… – Solto um riso soprado pela sua reação. – Não… Não estamos nos dorms, minha mãe pode entrar aqui e entender tudo de um jeito... Equivocado. É perigoso.
– Hah, não te falei? Tudo que é perigoso é mais gostoso. – Ele puxa o ar entre os dentes.
– Garoto…
– Eu achei que tinha ouvido você trancando a porta.
– Você não estava dormindo, engraçadinho? – Caçoo, mas logo expiro rendida. – Eu fico mais um pouco… Mas só se você se comportar, ouviu? – Posso sentir o cheiro do amaciante em suas roupas, o aroma do shampoo dos cabelos cor de ébano, o inalando e registrando os detalhes por inteiro.
– Ouvi, mandona… – A rouquidão ainda presente no timbre do garoto tatuado.
– Hah… Como se não gostasse quando eu estou no comando… Vai ser um bom garoto?
– Princesa… Essa conversa não tá sendo nada inocente na minha cabeça. – Sua tez franze e eu rio da sua expressão sôfrega. – E eu não costumo ser um bom garoto. – Jungkook continua agora sussurrado; enrugando as laterais do nariz, travesso, e passa a pontinha pela minha bochecha, vagarosamente.
– É, você é sempre… Um garoto mau, você é problema, Jeon. – E ele desloca alguns beijos inaudíveis de cima a baixo, do meu maxilar à minha garganta. – Assim como foi no almoço, mesmo com meus pais ali, idiota.
– Uhum… Eu sei. Eu nunca fui muito obediente. – E Jeon enterra o nariz no vale entre meu pescoço e meu ombro esquerdo. – Que cheiro gostoso…
Passo o dedo indicador pelo cós da calça dele, juntamente com a boxer, sentindo a pele sensível dali à medida que ele me encara; seus olhos turvos em apenas dois feixes horizontais e ferinos, observando cada reação minha e eu as dele.
A respiração de Jungkook se torna laboriosa e levo a mão livre até seu maxilar definido, o vendo virar um pouco o rosto e exibir o pescoço tatuado.
– Aqui… Não é? A tatuagem que eu gosto? – Indago em um ciciar, retórica, quando desço um pouco mais meus dedos ocupados no cós de suas vestes, próximos do desenho de tigre que ele encobre.
– Moon… – Jeon levanta um pouco o quadril e sua mão tatuada serpenteia em direção ao meu seio, mas então um barulho lá fora rapidamente nos chama atenção e corta nosso clima, nos fazendo desviar e desentranharmo-nos.
Jungkook suspira fundo, sentando-se novamente na cama e então me encara por cima do ombro.
– Sabe, você realmente é a primeira garota que não me quer na cama dela.
– Tem uma primeira vez pra tudo, não é? Até mesmo para você, não me pediu para te ensinar?
– Bem que parece que estamos na época de escola de novo… Eu, na casa de uma garota, me comportando o máximo que posso enquanto não podemos deixar que os pais dela percebam nada.
– Percebam o quê? Hah… – Dou um sorriso pretensioso. – Você nem tentou me convencer.
– Quer que eu te convença? Eu sei como.
Nossos risos entonam novamente reverberando pelo quarto enquanto olhamos um para o outro, quase que cumplicimente. Toco a palma de minha mão direita no rosto dele, e esperava vê-lo esquentar sob o contato, mas ao invés disso, sou recebida pelo par de olhos amendoados que me observam como se detessem todas as estrelas do cosmos neles.
E depressa, retiro minha mão. Não sei o que anda dando em minha cabeça, já que não sou de fazer esse tipo de demonstração afetuosa de forma tão ímpeta, ainda mais hoje que as fiz com tanta frequência, como se não conseguisse evitar.
– Tá, eu preciso mesmo ir embora. – Jungkook anuncia.
Um estalo de realidade me tira da fantasia que nosso envolvimento sempre me coloca.
“Errado”.
– É, eu te acompanho.
Saímos do cômodo e vejo que Jungkook olha pelos arredores da casa, procurando os outros moradores para se despedir, e quando percebo, volto à porta de vidro que dá para os fundos da casa.
– Eles ainda estão no jardim, e pelo visto algum vizinho deles está lá... – Tento observá-los de longe em uma conversa animada com outro casal e uma criança pequena correndo no pequeno jardim. – Eu os aviso que você já foi.
– Tá, não esquece, não quero passar por mal educado.
Omma deixou alguns dosiraks com o almoço de hoje prontos para que ele levasse, os potinhos com comida perfeitamente arranjados e empilhados. Jungkook fica um tempo olhando para as marmitas arrumadas e sorri, perdido em um momento. Mas ele logo se apressa novamente, o que me coloca em modo de alerta e embaraço de novo.
♆
Sigo na frente, vou praticamente trotando até a saída da casa, atravessando a rua vazia em direção ao carro estacionado no meio fio; impaciente, apreensiva.
Sinto Jungkook logo atrás de mim, ainda mais quando ele me alcança e entrelaça nossos mindinhos brevemente.
Em silêncio, ele destrava as trancas do automóvel e deixa os dosiraks no banco de trás, se virando para mim logo depois, que a essa altura já sou um emaranhado de hesitação, passando minha mão no braço esquerdo devagar, desviando o olhar do dele e voltando a andar inquieta.
– Marrentinha, o que foi?
– Hoje. – Paro meus passos, ainda de costas para ele, e volvo o corpo para que ele me ouça. – Isso foi praticamente um desastre anunciado. Hoje foi muito além dos nossos limites. Eu sei que você não queria estar aqui e era só para me trazer e até isso já foi demais e---
Jungkook me pega de súbito quando pousa as duas mãos em meu rosto.
– Princesa… Eu sou um desastre anunciado. – Ele tenta amenizar o clima e solta o ar pela boca, estalando a língua. – Sei que essa situação foi na verdade bem inesperada e, sei lá, incomum… Mas calma, eu não odiei também. Eu gostei de conhecer seus pais… Na verdade, acho até que eu estava precisando disso hoje.
– Precisando disso?
– Uhum. Mas… Olha, puts, eu entendo se isso foi um pouco demais pra você, eu realmente devia ter recusado na primeira oportunidade… Também não quero que sinta que foi algo que te incomodou por eu estar aqui, sabe? No seu espaço. Não sou exatamente a pessoa que você quer apresentar aos seus pais.
– Jungkook… Não é bem isso. Você não tá entendendo. É que… Não é pra ser assim, eu sei que não é. Isso que tá acontecendo aqui… A verdade é que a gente está numa situação confortável pra nós dois, a gente se encontra quando é conveniente pra gente.
– Falando assim soa horrível.
– Não acho horrível, mas é a verdade. – Minha voz soa mais branda e baixa. – Não devíamos envolver familiares nisso, essa intimidade… Não é a que... Deveríamos ter.
– Isso é uma pergunta ou uma afirmação?
– Nem eu sei.
Ele concorda vagamente com a cabeça.
– Mas... Eu já te levei pra minha casa também, lembra?
– Sim e seus pais não estavam lá! Ninguém nos viu.
– Como assim? Você quer conhecê-los?
Reviro os olhos.
– Hah… É, isso vai ser um pouco difícil. – Ele continua.
Então levanto o olhar e o fito, um nó se forma no alto da minha garganta. Não era esse o ponto, mas claro que vai ser difícil, isso aqui é apenas físico, é só sexo. Não podemos misturar as coisas. O orgulho, os limites, as sensações que estão emergindo mais rápido do que posso controlar. Argh. Não devia estar me sentindo tão mal assim.
– Você já não os conheceu quando éramos crianças? – Ele tenta fazer piada, sorrindo mostrando seus dentes sobressalentes e se aproxima. – Sabe, eu te observei interagindo com seus pais hoje, como eles olham pra você e você pra eles, não só nas palavras mas com as preocupações e ações. Eu gostaria de ter esse tipo de relacionamento mais uma vez, mas... Eu fico feliz, de verdade, que você tenha.
Pisco algumas vezes atônita, entendendo suas palavras e tentando captar o que ele também deixa de dizer, então pigarreio.
– É… E eu acho que os Moon gostaram de você, da sua versão adulta, já que faz tanto tempo desde que te viram pela última vez. Mal sabem eles. – Estreito os olhos para ele.
– E eu gostei deles também. Me senti muito... Em casa. – Ele admite, mordendo o lábio inferior e eu respiro pesadamente. – Eles são muito legais. – Jungkook ri. – E ainda descobri que você é um milagre, olha só.
– Sim, eles são verdadeiramente diferenciados. – Rio e reviro os olhos de brincadeira, ainda sorrindo. – E PARA de falar isso, já não basta meus pais tirando sarro!
Jungkook partilha do riso e se aproxima um pouco mais, sua respiração suave me deixando ansiosa.
– Acho que eles querem que você traga para casa um namorado.
– Uma pena que tudo que eles conseguiram hoje foi você.
– Uma pena… Não sou adequado para tamanho cargo de honra?
– Você é tudo menos adequado.
– Gostei de saber. Não sou mesmo. – Ele coloca uma mecha atrás da minha orelha e o polegar dele faz um caminho que percorre meu lábio inferior.
– O que tá fazendo?
– O que eu passei o dia todo querendo fazer.
E ele me beija.
De imediato é só um selar firme dos nossos lábios se reencontrando e nos sentindo depois de um dia desprovido do contato que ansiávamos. Seu gosto vem depois disso, como a fruta mais proibida, intensificando cada vez mais entre lascívia ardente e um calor afetuoso, quase nos perdendo na sensação intensa.
– Guk…
Mas me dissipo nos lábios dele, no gosto que a boca inchadinha desse idiota tem. É viciante. Deslizo a língua ágil contra a dele, travando uma batalha delirante para memorizar e desfrutar do gosto que temos juntos, e então sorrimos em meio à troca abrasadora, antes das minhas palmas alcançarem seu peitoral e empurrá-lo para nos afastarmos.
– Hah… – Jungkook dá aquele sorriso de canto, cafajeste, e passa o dedão na quina da própria boca, dando passos para trás.
– Tá ficando tarde, vai logo! – Digo e o vejo se aproximando em direção ao carro estacionado. – Espera! Quando chegar me avisa? Eu… Eu tenho receio dessas rodovias quando vai ficando mais tarde e você ainda vai voltar sozinho…
– É, eu também, vou ser cauteloso. Uhn… Mas aviso, aviso sim… Você vai voltar como pra Seul?
Meneio a cabeça.
– Até parece, você corre naquela moto muito mais perigosa. – Solto um riso soprado e mudo o peso de uma perna para a outra. – Sora vai chegar amanhã e a gente volta de ônibus juntas, vou chegar a tempo pra entrar no turno lá na cafeteria ainda, hah, sabe como é…
– Sei… Tá certo, princesa. Boa sorte na conversa que terá com seus pais... Eles vão entender e te apoiar. – Jeon sorri, exibindo a pintinha abaixo do lábio inferior, e faz um aceno com os dedos indicador e médio unidos próximo à testa e se vira abrindo a porta de sua Mercedes em meio a rua vazia.
Ele entra no carro e ouço o ruído abafado do motor ser ligado e aquecido. Olho para trás para ver se alguém se aproxima e para os lados, mas a rua continua inóspita. Jeon manobra o carro e dá ré, parando perto de mim e abaixando a janela.
Esse coelho de Satã.
Dou passadas largas e rapidamente cesso a distância entre nós novamente, apoiando-me na janela e o beijando mais uma vez.
O anseio pelos nossos toques é inerente e me consome quando abro a porta do veículo e me sento no colo de Jungkook. Ele ri novamente em meio ao beijo, e mesmo estando nada confortável com a direção acertando minhas costas, nos beijamos com vontade. Seguro a blusa dele com força, na altura do peitoral e ele mantem sua mão em minha nuca, o polegar traçando até aonde consegue tocar de meu maxilar em meio ao contato necessitado.
Ele se afasta de meus lábios para começar a beliscar e beijar descuidadamente seu caminho ao redor de minha mandíbula e pescoço.
– Você me deixa... Desnorteado. – Ele praticamente rosna, sua voz abafada pela pele da minha garganta, como se ele não pudesse se separar de minha derme por tempo suficiente para falar. Ele pressiona um beijo entre as clavículas, parando quando nossos corpos febris se afastam minimamente para ele me olhar.
– Tô tendo um déjà vu.
– Não, esse déjà vu seria no banco de trás do carro…
– Caralho, o que eu não faria pra rasgar outra blusa sua agora e sentir cada centímetro dessa sua pele cheirosa que me deixa doido… Me deixa fascinado… Me deixa…
Eu rio e mordisco o lábio inferior dele, o sentindo puxar o ar entre os dentes.
– Eu tô com saudade disso. – Jungkook me conta murmurado em meu ouvido e aperta um pouco mais em minha cintura, me trazendo ainda mais contra o peito dele. – Escapa comigo, prometo que te trago de volta rápido. Ou quase isso.
Balanço a cabeça em negativa, tirando alguns fios que teimosamente caiam por cima de seus olhos.
– Eu ainda tenho que te agradecer por ter dirigido até aqui só para me trazer… Hah, mas agora sim, você pode ir embora. – Então passo a mão lascivamente pela elevação que se formava em sua calça, dando um leve aperto e sussurro. – Pensa em mim mais tarde.
– Argh, princesa…
E me despeço finalmente com mais um selar nos lábios dele e um sorriso diabril, mas grato.
• ━────── ☾ ──────━ •
Horas depois.
Deito-me na cama de solteiro do quarto depois de passar o resto da noite com meus pais e me preparando para dormir já que o dia de amanhã será corrido com a preparação da comemoração surpresa para a avó de Sora. Quando passo a regata do pijama pela cabeça, ouço o celular vibrar e anunciar inquietante uma ligação.
Ouço mais algumas vezes o aparelho requisitar que eu aceite a chamada, mas miro o display com o nome de quem está do outro lado.
– Oi, tô ligando só pra avisar que eu cheguei… – Jungkook fala imediatamente.
– Ah, sim… Ok… E de novo, obrigada por ter me trago aqui hoje. Eu ne---
– Hah, não precisa agradecer, não foi nada… Você me disse para conquistar sua confiança de novo, não disse?
– É, eu... Disse mesmo. – Solto um riso soprado por ele estar levando isso a sério e então engulo seco e franzo o cenho, me ocupando em ansiosamente mexer em um fio solto do pijama que uso. – Guk…
– Hum?
Um momento de silêncio paira enquanto ele espera que eu profira o que flutua em minha mente.
– Nada.
O cheiro frutado com menta dele ainda ocupa toda minha acomodação, impregnado no travesseiro, na manta da cama e preenchendo assim minha mente mesmo quando quero apenas descansar sem sua presença pujante. Então noto que seguro apertado o pingente de flor do colar que ele me deu.
Dentre todos os contratempos que minha vida anda tendo, minhas complicações e resoluções começam e terminam em Jeon Jungkook.
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“Shout out to your mom and dad for makin' you;
Standin' ovation, they did a great job raisin' you;
When I create you're my muse;
That kind of smile that makes the news”
¹ Os cônjuges não costumam adotar o sobrenome dos maridos após o casamento na Coréia.
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