Ella encostou-se no tronco da árvore frondosa e, embora pudesse controlar a respiração, teve medo que as batidas erráticas do seu coração a denunciasse. Eles estavam perto demais, tão perto que um passo em falso, um mísero estalo de um graveto qualquer partindo-se sob seus pés seria o suficiente para chamar sua atenção e então seriam três contra uma; apertou o novo arco com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos, tentou imaginar como poderia sair daquela enrascada em que se metera... Se ao menos Bela pudesse ouvi-la! Bastaria gritar se precisasse de ajuda, mas não tinha certeza de onde ela estava e talvez não chegasse a tempo.
Por enquanto estava segura, escondida pela árvore, mas bastava tentar se afastar para ser vista e perseguida até o castelo. Nunca desejou tanto ter Alcina ao seu lado mesmo que em um jogo de perseguição, se fosse a vampira a perseguindo aqueles homens não teriam a mínima chance. Mas Alcina estava longe, segura dentro das paredes grossas do seu castelo, e a Ella restava virar-se sozinha.
Eu consigo. Pensou consigo mesma. Já saí de situações muito piores.
Devia ter ouvido Alcina, mas era tarde demais para isso e também poderia depender sempre da proteção da Condessa.
Maldita hora em que se metera naquela confusão! Embora a manhã tenha sido completamente calma...
Ella despertou preguiçosamente àquela manhã, aos poucos, ao sentir as mãos de Alcina vagar por seu corpo nu após todas as atividades da noite anterior; o sono a assaltou após a exaustão causada pelo sexo e sabia, ao fechar os olhos, que a condessa permanecia acordada e que a admirava. Alcina sempre a embalava ternamente enquanto murmurava palavras carinhosas junto ao seu ouvido, não importava se o sexo havia sido calmo e carinhoso ou selvagem; era fácil adormecer desse jeito, pressionada contra o corpo da condessa, protegida e, acima de tudo, desejada. Talvez fossem nesses momentos de entrega em que Ella sentia-se mais desejada, amada até, porque era muito fácil fechar os olhos e apreciar o prazer que o toque de Alcina espalhava por todo seu corpo.
Deste modo, não foi incomum ser acordada pelos toques de Alcina, que começaram carinhosos e inocentes ao percorrerem seus braços e barriga, mas ao notar que despertava lentamente – a condessa sempre parecia saber – o contato tornou-se mais ousado e exploratório; a mão gentil da condessa percorreu o caminho até suas coxas, então subiu lentamente até seus seios, contornou o mamilo com o dedo e Ella sentiu seu hálito quente na altura do pescoço.
- Alci, não... – reclamou em um resmungo.
Embora os toques não fossem malvistos, pelo contrário, e Ella adorasse que Alcina a desejasse daquela forma, ao que retribuía completamente, o sono já vencia a batalha e a jovem mal podia manter os olhos abertos.
Seu resmungo semiconsciente foi o bastante para Alcina parar o que estava fazendo, a mão da condessa pousou novamente em sua barriga e um beijo foi pressionado em seu pescoço.
- Como quiser, draga mea – a voz de Alcina não passou de um sussurro rouco a penetrar os sonhos de Ella, e embora se encontrasse cada vez mais entregue aos braços de Morfeu, ainda pode escutar as próximas palavras: – Nunca sem sua permissão.
Ella não conseguiu responder, o único som capaz de produzir foi um gemido débil, e se virou para apoiar a cabeça nos seios de Alcina. Voltou ao sono rapidamente, sem sonhos ou qualquer coisa que pudesse atrapalhar seu descanso merecido; se estivesse consciente o suficiente para pensar, Ella se daria conta de que os pesadelos diminuíam com frequência, principalmente desde a conversa franca que tivera com Alcina, e embora a condessa a apoiasse e incentivasse suas saídas do castelo, ainda não o havia feito; sempre parecia haver algo mais importante, urgente, ou simplesmente o tempo não colaborava, as chuvas de primavera, ao contrário das de verão, poderiam durar horas e às vezes o dia todo, nessas ocasiões acabava em companhia das garotas e Judith fazendo qualquer coisa para passar o tempo, as brincadeiras perigosas haviam sido momentaneamente suspensas devido à chegada da criança ao castelo, mas as coisas começavam a se agitar novamente e podia sentir isso.
Seu próximo despertar foi lento, gradual, conforme a luz do dia se infiltrava através das cortinas; a primeira coisa que notou, antes mesmo de abrir os olhos, foi que os braços de Alcina não estavam mais ao seu redor e sentiu falta do contato. Tateou a cama em busca da condessa, mas tudo o que encontrou foram os lençóis, a risadinha a fez se esforçar para abrir os olhos e precisou piscar algumas vezes para que sua imagem entrasse em foco; Alcina estava deitada a alguma distância e a encarava enquanto um sorriso pequeno, porém carinhoso, brincando em seus lábios, os olhos dourados brilhavam como ouro líquido e não era difícil perder-se em suas íris. Alcina não se moveu, não fez qualquer movimento para alcançá-la e Ella permaneceu da mesma forma, completamente entregue e tomada por aquela mulher; como alguém podia parecer tão linda, delicada e letal ao mesmo tempo? Alcina era um misto de mulher e deidade, bela e perigosa, uma criatura inigualável e Ella teve vontade de dizer-lhe exatamente isso, mas descobriu que palavras não fariam jus ao seu estado de reverência.
Naquele exato momento sentiu-se a pessoa mais sortuda do mundo por ter a chance de ver Alcina daquela forma, tão serena e pacífica, bela como uma deidade, e aquela visão lhe pertencia, reservada apenas para Ella.
O sorriso de Alcina aumentou aos poucos, fazendo o coração de Ella dar uma guinada no peito.
- Dormiu bem, draga mea?
- Muito bem.
Ella arrastou-se para cama em direção ao corpo de Alcina e permitiu-se ser embalada contra seu peito mais uma vez, porquanto adorava observá-la e ser tomada por sua beleza, não cansava-se jamais de estar em seus braços.
- Você esquivou-se para longe de mim durante a noite e não quis acordá-la novamente.
- Sempre me acorde para me trazer de volta a você – Ella bocejou – Preciso mesmo me levantar agora?
Embora a sonolência se esvaísse rapidamente, desejava permanecer nos braços de Alcina por mais algum tempo.
- Tenho mais algum tempo para você, draga mea.
Passar algum tempo nos braços de Alcina era sinônimo de beijos, carícias leves e ousadas, promessas não ditas de algo mais, algo a ser aguardado e ansiado conforme os lábios da condessa trilhavam um caminho por seu ombro até beliscar o ponto de pulso na altura do pescoço.
Infelizmente, após um prazo que pareceu curto demais, tiveram que levantar-se da cama confortável e preparar-se para o dia que estava por vir. Ella pretendia levar Judith até à vila para visitar a Sra. Constantin conforme o pretendido, sabendo bem que depois de tanto tempo a matriarca já devia pensar que a menina estava morta, ainda que Alcina não gostasse nada da ideia, e isso era notório em sua expressão, não disse uma palavra sequer, o que era bom já que a jovem sabia que sua irmãzinha se recusaria a ir se soubesse da recusa da condessa.
Judith adorava Alcina, e isso era incontestável, na mesma proporção em que era adorada de volta e isso deixou-a feliz; finalmente sua família estava completa ao lado da sua amante, a irmã e as três enteadas a quem considerava suas melhores amigas.
Normalmente Ella tirava algum tempo da manhã para escrever no caderno que Bela lhe presenteara no aniversário, passara a usá-lo como diário, mas aquela manhã, devido a sua demora ao levantar-se e insistir em trabalhar com Alcina até a hora do almoço, não houve tempo para seu pequeno ritual matinal, em vez disso o diário permaneceu intocado sobre a mesa.
Ainda que Alcina insistisse não ser necessário, Ella a acompanhou até o escritório após o café da manhã e passou algumas horas ajudando a preencher alguns papéis importantes sobre o vinhedo; aos poucos aprendeu como tudo funcionava, o preço de cada garrafa de Sanguis Virginis e como a exportação era feita através do intermédio do Duke, a quem Ella ainda não conhecia pessoalmente, mas do qual ouvia falar com frequência. Não demoraria muito para o vinho ser levado, e impressionou-a pensar que algo produzido bem ali, em um vilarejo isolado, poderia alcançar o mundo todo mesmo que não soubesse a dimensão do que estava vendo.
Almoçou na companhia de Judith e, enquanto Daniela e Cassandra estavam longe de serem vistas, Bela lhes fez companhia; desde a visita a seu tio, e consequentemente à Velaska, a filha mais velha de Alcina parecia ter ainda mais no que pensar, então sua presença à mesa foi uma surpresa muito bem-vinda. Ella preocupou-se quanto à natureza da conversa que as duas tiveram a sós e como isso poderia ter afetado Bela, mas decidiu não se intrometer, pelo menos por enquanto, e aguardar o novo desenvolvimento desse relacionamento.
Judith terminou de comer e saltou da cadeira após pedir licença, Ella esperou que a irmãzinha saísse do alcance das suas vozes para falar.
- Como você está, Bela? Tem parecido um pouco... Distante – falou com cuidado – Quer falar sobre isso?
Bela coçou o pescoço e desviou o olhar.
- Acho que não.
- Tudo bem, respeito sua decisão, mas quando precisar pode sempre vir falar comigo, não posso prometer resolver seu problema, mas sou uma boa ouvinte.
- Obrigada – Bela sorriu. Não foi um grande sorriso, mas já era alguma coisa – É só... Não tenho certeza do que estou sentindo.
Oh, Ella sabia muito bem o que Bela estava sentindo, era a mesma coisa que sentia quando Alcina sorria e se inclinava para um beijo; a diferença era que sabia identificar esses sentimentos, mas aparentemente Bela estava encontrando dificuldades nesse quesito, e foi meio fofo para falar a verdade.
- Sabe de uma coisa? – Ella perguntou ao pousar os talheres sobre o prato e sorriu para Bela – Acho que devia fazer o que tem vontade. Dois segundos de coragem insana podem mudar tudo.
- E se mudar pra pior?
- E se mudar pra melhor? – devolveu a pergunta e, ao não receber uma resposta, Ella levantou-se e apertou a o ombro de Bela – Vai dar tudo certo, eu sinto isso.
Bela pareceu considerar e, aparentemente, até demonstrou certa confiança ao acenar positivamente.
- Vocês vão sair, não é?
- Vou deixar Judith com a família do Klaus, ela vai passar a tarde lá, e vou dar uma volta na floresta, nunca tive a oportunidade de andar muito pelo lado de cá.
- Posso ir com vocês? – Bela mordeu o lábio – Preciso ir a um lugar.
- Claro, só vou buscar meu arco! Sua mãe prefere que eu leve ele caso algo aconteça – Ella revirou os olhos – Tão protetora.
- Devia chamar a Daniela.
- Talvez na próxima vez. De qualquer forma, vou ficar bem.
- Te espero na porta.
- Volto já.
Ella correu rapidamente até seus aposentos, o arco estava guardado na parte do armário reservada para suas coisas, assim como a aljava cheia das flechas especiais de Heisenberg; não acreditava que precisaria usar o arco, mas Alcina expressou sua preocupação e se isso fosse o suficiente para deixá-la tranquila, então que fosse.
Ao voltar para o saguão, deu-se conta de que apesar de Bela estar ali esperando por ela, Judith estava longe de ser vista. Como se pudesse ler sua mente, Bela sorriu e apontou para o corredor adjacente.
- Judith disse que ia à biblioteca.
Aquela menina ainda iria deixa-la louca, provavelmente estava perseguindo Alcina ou Daniela por aí quando deviam estar de saída para que pudessem aproveitar melhor o tempo, além de que Ella tinha receio de que Bela desistisse de sair para encontrar Velaska, porque tinha certeza que era isso que ela pretendia fazer.
Ao se aproximar das portas da biblioteca, Ella ouviu Alcina rugir como uma leoa preparada para atacar, sua voz reverberou pelas paredes do castelo e pareceu ainda mais alta e ameaçadora.
- Como ousa me desafiar?! – Alcina rosnou – Vou fatiá-la em pedacinhos pela insolência!
Imaginando que alguma criada havia cometido um erro, talvez derrubando o vinho de Alcina, e estava prestes a ser punida por isso, Ella apressou o passo e invadiu o cômodo para, pelo menos, tirar a irmã dali. Mas a cena que encontrou foi completamente diferente daquela que imaginou a princípio, Judith estava encolhida na poltrona de Alcina enquanto esta elevava-se sobre a criança, seu rosto contorcido em uma carranca ameaçadora enquanto um rosnado vibrava em seu peito. Ella piscou algumas vezes, levou alguns segundos para processar o que estava acontecendo e entender que Alcina estava rosnando para Judith que gargalhou como se tivesse ouvido a piada mais engraçada de toda a sua vida.
- De novo, Alci! De novo!
Alcina riu baixinho e rosnou novamente.
- Você será punida por isso!
Judith jogou a cabeça para trás e gargalhou de novo, suas bochechas já estavam rosadas pelo esforço.
- De novo!
Ella pigarreou para chamar a atenção das duas e sorriu quando ambas se viraram ao mesmo tempo.
- Sinto muito por interromper vocês duas, mas precisamos ir.
A expressão de desgosto de Alcina não passou despercebida, não que ela estivesse fazendo qualquer esforço para escondê-la, e a jovem fingiu não saber do que se tratava; essa era uma discussão que haviam tido pelo menos três vezes na última semana, porquanto Ella queria cumprir sua promessa e levar Judith para visitar a Sra. Constantin, Alcina não gostava nada da ideia da menina ficar com os moradores do vilarejo sem sua permissão.
- Judy, espere por mim no saguão, por favor. Bela está a nossa espera.
Judith saltou da poltrona e agarrou as pernas de Alcina em um abraço forte.
- Tchau, m... Alci!
Mais do que depressa, Judith correu para fora antes que qualquer uma delas pudesse dizer algo e sequer lançou um último olhar em sua direção; ainda que estivesse encantada com Alcina, as garotas e a vida no castelo, Judy estava ansiosa para rever seus amigos e brincar com outras crianças, um tempo com eles lhe faria bem.
- Não vamos demorar – prometeu – E ela vai ficar bem.
- Espero que sim... – Alcina se aproximou e tocou o rosto de Ella – Tome cuidado, draga mea.
- Tomarei.
Alcina se inclinou para um beijo de despedida, a mão jamais deixando o lugar em seu rosto, e Ella correspondeu com igual carinho. Estava se acostumando com o lado macio e fofo de Alcina, sempre pronta para agradá-la.
- Fique segura, draga mea – Alcina pediu ao se afastarem – Ficaria mais tranquila se uma das garotas a acompanhasse, minhas filhas podem protegê-la.
- Bela irá comigo, não precisa e preocupar tanto, Alci.
- Desta forma fico mais tranquila.
Trocaram outro beijo rápido e Ella avisou que precisava ir ou ficara muito tarde para realmente aproveitarem algo, ao que Alcina concordou mesmo a contragosto.
A princípio, deixar o castelo foi mais difícil do que imaginou, chegou a perguntar-se se seria mesmo uma boa ideia deixar Judith aos cuidados da família de Klaus, e se um deles pensasse em fugir com ela? Improvável, dado que Alcina os encontraria rapidamente, além de punir a todos de forma sádica. Mas conforma as três faziam o caminho até o vilarejo, Judith entre as duas e segurando suas mãos, tornou-se apenas um dia comum, um passeio inofensivo durante um dia agradável de primavera e nada poderia dar errado.
Aqui e ali era possível encontrar pequenas borboletas coloridas, pululando ao redor das flores que já desabrochavam, pássaros cantavam e todo tipo de inseto zumbia ao seu redor. Judith saltitava, às vezes parava para ver uma flor ou outra e logo voltava para seu lugar entre Ella e Bela, e ver o vilarejo a deixou animada com a possibilidade de ver seus amigos.
Algumas pessoas desviaram o olhar quando passaram, a maioria parecendo amedrontada pela presença de uma das filhas de Lady Dimitrescu, embora Bela olhasse em todas as direções como se procurasse alguma coisa ou alguém, pensou Ella.
Deixar Judith com a Sra. Constantin foi mais fácil do que imaginara, a mulher pareceu realmente feliz ao ver a garotinha com vida e correu gingando o corpo rechonchudo para abraçá-la.
- Você está aqui, Judith!
- Oi.
A Sra. Constantin se afastou um passo para dar uma olhada em Judith, que parecia adorável em uma das roupas que Donna lhe fizera como um presente de boas vindas, o vestido vermelho de gola branca combinava perfeitamente com suas botas novas e mais uma vez Judy se assemelhava a uma boneca.
- Está tão linda e grande.
- Eu disse que cuidaria dela – Ella se intrometeu – E agora sabe disso.
A expressão da mulher mais velha se fechou, mas ainda pareceu reconsiderar suas palavras.
- Não é mais do que sua obrigação após tirá-la de nós.
- Ela é minha irmã e está melhor ao meu lado, Judith gosta de viver no castelo.
Essa foi a deixa para Judith começar a tagarelar sobre sua nova vida, Alcina e o piano, felizmente parecia alheia aos comentários da Sra. Constantin.
- Venho buscá-la em algumas horas – disse Ella – Espero que ela fique bem até lá.
- É claro que vai ficar, Judith vai brincar com os amigos que estão sentindo muita falta dela desde que você a levou.
- Se continuar falando assim comigo, Judith não virá aqui uma segunda vez.
- Isso é uma ameaça? – A mulher mais velha pareceu chocada – Mas eu só disse qu...
- Só estou avisando – sem tirar os olhos da mulher, Ella agachou-se diante de Judith e a abraçou – Volto logo.
- Tá bom – Judith sorriu – Eu te amo.
- Também te amo, Judy.
Judith abraçou Bela e despediu-se antes de seguir a Sra. Constantin até a porta, já estavam prestes a adentrar a casa quando a outra loira pigarreou alto para chamar a atenção para si; a mulher titubeou, mas pareceu ter achado melhor que a criança não presenciasse a cena e mandou que entrasse.
- Acho que não preciso lembrá-la para ter respeito, garanto que minha mãe não se importará nada se eu cortar a garganta de qualquer velha que desrespeitar sua companheira – Bela mexeu em sua capa e a luz do sol refletiu na lâmina da foice que trazia junto a si – Esteja avisada.
- É claro, milady. Sinto muito.
O pedido de desculpas foi direcionado a Ella, mas a expressão da Sra. Constantin deixava claro que preferia estar chupando o limão mais azedo a desculpar-se por qualquer insulto proferido a sua pessoa.
- Está tudo bem. Cuide da Judith, voltarei para buscá-la em algumas horas.
- Sim, ela ficará bem.
- Assim espero – Bela sorriu de forma maliciosa – Assim espero...
- Venha, Bela – Ella agarrou seu braço e a puxou – Vamos logo.
Afastaram-se juntas, de braços dados, como se fossem duas garotinhas em um passeio durante uma tarde de primavera e não como uma caçadora e uma vampira que se alimentava de carne e sangue humano; como uma dupla incomum, chamaram bastante atenção dos comerciantes e outras pessoas que estavam por ali, mesmo que seus olhares não se demorassem mais do que dois ou três segundos antes de focarem em seu trabalho e deixá-las em paz. Não havia sinal de Klaus em qualquer lugar e isso tranquilizou-a, não sabia o que faria caso o visse, seu coração ainda estava carregado de mágoa devido a traição e seria melhor não vê-lo por um tempo; duvidava que pudesse perdoá-lo, não sem receber um pedido de desculpas sincero, e conhecendo-o melhor do que ninguém sabia que isso não estava prestes a acontecer.
Ao alcançarem o limite do vilarejo, Bela a impediu de continuar.
- Te encontro aqui em algumas horas?
Ella tentou muito não sorrir com o que estava implícito na frase, aparentemente Bela pretendia ficar a sós para prosseguir em busca do seu encontro.
- Claro, só não vá embora sem mim ou sua mãe ficará bem chateada.
- Não vou – Bela prometeu – Você espera por mim se chegar antes, não é?
- Não vou a lugar algum sem você.
Sem pensar, Ella puxou-a para um abraço apertado.
- Lembre-se, você precisa apenas de alguns segundos de coragem insana.
- Vou tentar me lembrar disso.
Assistiu Bela se afastar na direção contrária sem olhar para trás uma última vez, se o fizesse talvez desistiria e isso era última coisa que Ella desejava; se havia uma pequena chance de Velaska ser seu encontro misterioso, então precisaria de toda a coragem insana que fosse possível reunir, e isso significava seguir adiante sem hesitar nem mesmo por um segundo.
- Boa sorte, Bela – Ella sussurrou e, mesmo esforçando-se para tal, não conseguiu impedir-se de sorrir – Você consegue.
Assim, completamente entusiasmada por Bela e por estar de volta ao seu elemento natural, assim, deu alguns passos à frente e foi engolfada pelas árvores sem saber o que lhe aguardava não muito longe dali.
[...]
Cassandra abriu as portas da biblioteca e deparou-se com Daniela jogada sobre um dos sofás com um livro em mãos, além dela o cômodo parecia vazio e silencioso, intocado, e isso a fez grunhir baixinho.
- Está procurando sua namoradinha? – Daniela perguntou sem tirar os olhos do livro que lia – Ela não está aqui.
- Não a encontro em lugar algum!
- Ela deve estar por aí com aquela outra, a Amélia.
- Quem?
Daniela fez uma careta e fechou o livro com força.
- Amélia, a empregada nova que fica rondando a Ella e mãe.
- A Ophélia? – Cassandra perguntou e Daniela assentiu – Você sabe o nome dela, porque insiste em falar errado?
- Assim é mais divertido.
Era preciso muita paciência, muito mais do que Cassandra dispunha para conviver entre uma irmã mais velha que parecia sofrer com algo o tempo todo e uma caçula irritante que adorava provocá-la com qualquer besteira que lhe passasse pela cabeça; e ela estava tentando, mais do que em qualquer outra época da sua vida, ser melhor com suas irmãs a pedido de Agatha.
- E por que Ophélia está com Agatha?
Daniela saltou no sofá, animada demais para se conter.
- Eu a peguei mexendo no que não devia, mas como não tenho permissão para castigá-la... – Daniela bufou impaciente – Tive que me contentar para não cortá-la, mas ela ficou morrendo de medo!
- Onde ela estava fazendo isso? No que estava mexendo?
- Aqui – Daniela ergueu os braços como se indicasse os arredores – Andando entre as estantes, mexendo em todos os livros, como se procurasse alguma coisa em específico.
- Daniela... – Cassandra suspirou e tampou o rosto com a mão – Eu sei que de vez em quando você é meio dodói da cabeça...
- Tão melodramática... – Daniela revirou os olhos.
- Mas você chegou a pensar que ela estava limpando? Ela não pode limpar sem tirar os livros do lugar – Cassandra apontou – Lembra-se disso?
Daniela bufou e se ergueu com um pulo, apertando o livro contra o peito e até os nós dos seus dedos estivessem brancos.
- Um dia todas vocês vão descobrir que eu estou certa sobre ela, mas aí vai ser tarde demais.
- E o que devemos esperar, ó grande profetiza?
Apesar da zombaria, Daniela não se intimidou.
- Eu não sei, mas se lembrarão de tudo o que eu disse sobre ela. Pelo menos Judith acredita em mim.
Revirando os olhos mais uma vez, Daniela virou-se para sair mas parou no último segundo e voltou-se para Agatha.
- Amélia deve estar chorando no colo de Agatha neste momento, eu procuraria em uma das varandas ou, quem sabe, no salão de jantar. Vai que você dá sorte e chega antes de ela tentar fazer alguma coisa.
E foi-se, saiu sem dizer outra palavra, e uma risada zombeteira pode ser ouvida mesmo com as portas fechadas; ok, talvez Cassandra realmente merecesse isso, mas às vezes Daniela não cooperava. De toda forma, resolveu seguir a dica da irmã e procurar por Agatha nas varandas, infelizmente sua namorada estava longe de ser vista, o que a estava fazendo perder a paciência dado que nunca tivera problemas assim antes; por vezes Cassandra simplesmente a caçara dentro do castelo, farejando até identificar seu cheiro e presença, mas Agatha a fez prometer que não ficaria farejando-a por aí e foi obrigada a procurá-la pelos meios normais.
Ocorre que Daniela estava parcialmente certa. Agatha de fato se encontrava no salão de jantar e em companhia da criada supracitada, e, apesar de Cassandra não compartilhar dos delírios conspiratórios da irmã, não gostou nada da proximidade das duas; Ophélia tinha uma das mãos em Agatha e ninguém – ninguém mesmo – devia tocar sua companheira daquele jeito, e, segundo, estava perto demais, praticamente invadindo seu espaço pessoal.
Aquilo sim a enfureceu a ponto de rosnar, o que fez as duas olharem em sua direção e Ophélia saltou para longe de Agatha. Esperta, muito esperta, ou Cassandra resolveria aquilo e diferente de Daniela ela não se importava nem um pouco com o que sua mãe ou Ella poderiam dizer.
- Perto demais não acha? – Cassandra cruzou os braços sobre o peito e se aproximou – Saia daqui agora antes que eu use seu corpo para decorar o porão!
Ophélia choramingou baixinho e praticamente correu para fora só salão de jantar, o medo refletido em seus olhos fez Cassandra sorrir satisfeita.
- Precisava disso?
Cassandra revirou os olhos para a pergunta da namorada.
- Claro, ela estava perto demais...
- Você é como sua mãe – Agatha balançou a cabeça em descrença – Lady Dimitrescu também achava que eu era muito próxima a Ella.
- E tinha alguma razão, mãe só não sabia que estava disputando com a Bela.
- Nunca houve uma disputa, Ella é louca pela sua mãe.
Cassandra sorriu com a oportunidade e puxou Agatha para cintura, agarrando-a impossivelmente próxima ao seu corpo.
- E eu sou louca por você.
Seu galanteio fez Agatha sorrir, por isso achou seguro avançar até pressioná-la contra a mesa e a encurralou ali.
- Mereço um beijo?
- Quantos você quiser.
Cassandra agarrou seu rosto e beijou-a com sofreguidão, ambas gemeram ao contato dos seus lábios e derreteram-se sob o toque uma da outra. Moviam-se em perfeita sincronia, completando-se e respondendo ao menor sinal como se tivessem sido feitas uma para a outra. Trancada no castelo por tempo suficiente para ler tantos livros de romance quanto possível deram a Cassandra alguma familiaridade no quesito relacionamento e sabia que Agatha e ela completavam-se como lados opostos da mesma moeda, tão diferentes entre si mas incapazes de funcionar sozinhas. Ademais, já havia mantido relações com mais criadas do que poderia contar, mas com Agatha cada toque era novo, necessário e urgente.
Separaram-se apenas ao precisar de oxigênio, suas respirações ofegantes e dedos trêmulos só demonstravam o quão intenso era entre as duas.
- Melhor agora – Cassandra ofegou e apoiou sua testa na de Agatha – Tenho uma coisa para você. Eu espero que goste, mas se não for do seu agrado espero que me diga.
Agatha riu baixinho e segurou a nuca de Cassandra, seus dedos longos fizeram cócegas em seu pescoço, e puxou-a para um selinho rápido.
- Eu vou amar qualquer coisa que você me der.
- Cuidado com suas palavras, meu amor – o sorriso de Cassandra só aumentou – Talvez eu queira lhe dar outra coisa mais tarde.
- É? Como o que?
- Talvez dois ou três orgasmos, quatro se você aguentar.
Agatha a beijou no novamente, desta vez mordiscando seus lábios.
- Mal posso esperar.
Cassandra esperava fazer aquilo de outro jeito, em outro lugar, mas ter Agatha em seus braços a fez pensar que não poderia ser mais perfeito do que daquela exata maneira. Assim, enfiou a mão no bolso oculto do seu vestido e tirou o que parecia uma delicada corrente de prata com um pingente que parecia muito com uma flor em formato de estrela no centro e ladeado por algumas folhas retorcida.
- Minha mãe me deu isso quando eu fiquei muito triste por não me lembrar da minha vida passada, ela diz que não importa porque somos uma família agora e estamos juntas para sempre. Como você também é minha família, quero que fique com isso.
- Tem certeza?
Não lhe deu chance de argumentar e passou a corrente em volta do pescoço de Agatha de forma que o pingente repousou contra seu peito.
- É uma flor chamada Lembrança Eterna, ela floresce o ano todo e geralmente sobre túmulos.
- Que romântico – Agatha sorriu.
- É mais sobre a lembrança, queria que soubesse que nunca paro de pensar em você – Cassandra sorriu ao sentir as bochechas queimarem de vergonha – Não importa se estarei longe ou perto, você vai sempre no meu coração.
O sorriso brilhante de Agatha fez valer a pena, principalmente quando esta se lançou em seus braços e pressionou um beijo em sua bochecha.
- Eu te amo.
Cassandra, que nunca imaginara ser amada por alguém que não fosse a mãe ou as irmãs, corou ainda mais; não importa quantas vezes aquelas palavras fossem pronunciadas, sempre seria emocionante como a primeira vez
- Também amo você.
E respondê-las era incrivelmente fácil.
[...]
A cada passo que dava ao seguir a trilha contrária, Bela pensava em voltar e se juntar à Ella para sua empreitada, duvidava que sua companhia fosse repudiada e assim poderia evitar que sua mãe ficasse desapontada caso descobrisse que haviam mentido. Se alguma coisa acontecesse à Ella e Bela não estivesse por perto para evitar, sua mãe ficaria chateada e, pior ainda, decepcionada.
Como filha mais velha e responsável pelas irmãs, Bela sentia extrema necessidade de agradar a mãe e ser reconhecida por ela, sabia que fazia isso sem nem mesmo perceber, tornara-se automático, e por vezes Daniela a lembrava disso; Cassandra era menos gentil do que a caçula, sempre reclamando e a chamando de “filhinha da mamãe”, como se Bela pudesse evitar algo que parecia enraizado em seu ser. Sua lembrança mais antiga era o rosto da mãe, sua expressão calma e olhar gentil, para qualquer outra pessoa ela poderia parecer ameaçadora, mas Bela só desejou jogar-se em seus braços em busca de proteção e tal desejo foi prontamente atendido; e então a voz profunda “olá, Bela” e esse passou a ser seu nome, definiu quem ela se tornou.
Afastar-se da mãe foi difícil no começo, Bela sentia um medo profundo de ser abandonada, a possibilidade de Alcina passar por uma porta e não voltar mais a aterrorizava completamente. Para sua sorte, uma completa benção, sua mãe entendeu e permitiu que Bela permanecesse ao seu lado.
Ainda nos dias de hoje, sua mãe sempre aparecia para um beijo de boa noite ou dispensava-lhe carinho e atenção. Alcina escolheu ser sua mãe e nunca, em hipótese alguma, Bela ficou sozinha novamente.
Por todos esses motivos, a possibilidade de desapontar a mãe a fazia sentir-se mal.
Por outro lado, se voltasse agora perderia a coragem e Ella questionaria o motivo da mudança de planos; apesar de saber que sua decisão seria respeitada, a possibilidade de ser questionada a fez seguir em frente.
Valeu a pena ao vê-la a alguns metros adiante. Velaska estava absorta em seu bloco de notas, ignorando completamente os arredores, e mesmo assim era a criatura mais linda em que Bela já havia colocado os olhos. Respirou fundo algumas vezes para criar coragem e para fazer com que as mãos parassem de tremer, o segundo foi parcialmente bem sucedido, e aproximou-se a passos lentos; a pequena queda d’água logo atrás Velaska abafou os sons da sua aproximação, o que evitou que levantasse os olhos do papel e olhasse em sua direção e isso deu mais confiança a Bela, mas quando sua sombra a alcançou não houve tempo ou escapatória.
- Oi! – Velaska sorriu e levou a mão ao olho bom para evitar os raios de sol – Você por aqui.
- Estava passando por perto e te vi trabalhando.
Uma grande mentira. Velaska havia contado a ela que vinha ali quando recebia uma folga de seu tio, foi uma aposta procurá-la mas não uma coincidência.
- Estou feliz.
Velaska se afastou para abrir algum espaço no banco de madeira no qual estava sentada e fez um gesto para que Bela tomasse o lugar ao seu lado.
- Não sabia que tinha um banco aqui.
- Não tinha – Velaska sorriu – Seu tio colocou aqui quando descobriu que era pra cá que eu fugia sempre, ele é muito gentil.
- Claro, muito gentil.
Bela tentou ignorar a sensação desagradável e sentou-se ao lado de Velaska. De perto ela era ainda mais impressionante, a dualidade entre seus olhos só a tornava única e meio selvagem, ainda mais bonita em sua opinião, e contrastavam violentamente com os cabelos escuros; perguntou-se se sua mãe sentia-se daquele jeito ao olhar para Ella, ou se Cassandra sentia tais coisas por Agatha, gostaria de poder perguntar e assim conseguir entender melhor seus próprios sentimentos, mas a irmã provavelmente riria dela. Talvez Ella fosse uma escolha melhor.
- O que está fazendo por aqui? Nunca te vi antes.
É claro que ela perguntaria.
- Eu estava com a Ella – o que não era lá uma mentira – Mas ela queria um tempo sozinha, e se mãe achar que estamos juntas fica mais fácil pra todo mundo.
- Você gosta muito dela, não é?
- Muito.
Tal qual Daniela, Bela esperava que Ella e sua mãe acabassem casadas em algum momento, e mesmo que ainda tivessem dificuldade em verbalizar seus sentimentos, sabia que estavam felizes juntas.
- E no que você está trabalhando?
- Oh, isso é ótimo!
Na verdade só o sorriso de Velaska fez valer a pena, e se precisasse ouvir sobre seus projetos de construção de sabe-se-lá-o-que durante horas apenas para que continuasse a sorrir daquela forma então que assim fosse.
- Convenci seu tio a construir alguns trabalhadores para a fábrica, usar o que temos a nosso favor, assim poderemos dobrar a energia e a produção sem que ele precise brigar com a sua mãe por mão de obra.
- Entendi, eu acho...
- Olha só, sua mãe precisa de mãos humanas para o vinhedo, qualquer coisa mecânica construída por Lorde Heisenberg poderia atrapalhar a produção e o resultado do vinho, mas nós podemos usar esse tipo de mão de obra na fábrica e assim todos ficam felizes.
Dessa vez bela ignorou o “nós podemos” lindamente.
- Mãe e tio Karl felizes? Impossível.
- Talvez... – Velaska insistiu – Mas se der certo já é uma pequena vitória.
Com isso Bela precisava concordar e então Velaska passou as próximas horas contando sobre todos os seus projetos, a vida que levava antes de ser levada por Mãe Miranda e servir como experimento - não se demoraram muito neste tópico, ela mesma sabia como era ser um dos ratinhos de laboratório da mulher e teve sorte por sua mãe ser tão boa e amorosa, o que Velaska não tinha – e logo passaram a falar sobre seus gostos para livros, passatempos, jogos de tabuleiro. Cada assunto parecia trazer um novo sem que nunca cansassem de falar, parecia um tipo de conexão imediata e Bela sentiu-se completamente compreendida, acolhida até, como se já se conhecessem há anos e todo o nervosismo simplesmente desapareceu. Estar ao lado de Velaska se tornou natural e de certa forma parecia certo.
Bela não sabia o que estava acontecendo em sua cabeça, em um momento Velaska falava sobre o projeto no qual estava trabalhando, algo a ver com explosões e poder de fogo, e no outro todo o volume do mundo pareceu ter sido colocado no mudo e tudo o que pode ver foram os lábios rosados se movendo quase como se a desfia-se a tomá-los. Pareciam esperar que se atrevesse, que a beijasse e experimentasse finalmente a sensação de ter seus lábios unidos, e então a mente de Bela ficou em branco e ela se aproximou para um beijo.
- Bela? – Velaska se afastou e riu nervosamente – O que está fazendo? Não...
- Me desculpe!
O rosto de Bela queimou de vergonha e precisou desviar o olhar para não ver a expressão chocada de Velaska, mas o pior foi o coração partido, completamente despedaçado, dentro do peito. Achou que tinha lido todos os sinais corretamente, os toques demorados e sorrisos largos, que Velaska sentia a mesma atração por ela, mas pelo jeito estava completamente enganada.
- Bela...
- Não, está tudo bem.
Não estava tudo bem. Parecia que alguém enfiara a mão em sua garganta e puxara seu coração com toda a força até que ele se soltou da caixa torácica e a dor da rejeição foi ainda pior. Seus olhos queimaram com as lágrimas e precisava sair dali imediatamente se quisesse manter alguma dignidade, não desejava ser vista chorando ao ter seus avanços rejeitados.
- Escute...
- Não, eu preciso ir.
Velaska segurou sua mão e a impediu de se afastar, ainda assim Bela recusou-se a olhar em sua direção.
- Me escuta, por favor – o pedido soou verdadeiro o bastante para fazer Bela parar de lutar, ainda que não conseguisse olhar em seus olhos – Eu sinto o mesmo por você, acredite em mim.
Bela ergueu os olhos.
- Mas?
- Mas não podemos.
Encararam-se como se travassem uma batalha de olhares, uma esperando que a outra fizesse o primeiro movimento, até que Bela cansou-se de toda aquela brincadeira de mau gosto e a afastou com um safanão.
- Eu preciso ir.
- Bela, eu gosto de você, mas entre nós não vai dar certo... – Velaska tornou a aproxima-se, mas desta vez não a tocou – Eu fui dada ao seu tio pela própria Mãe Miranda, não se engane por me ver aqui ou andando livremente pela fábrica, ainda sou propriedade dele.
- Mas...
- Não temos nada desse jeito – enfatizou as palavras para se fazer entender – Mas ele gosta de fazer sua mãe pensar que sim, algo para competir com a “loirinha” dela. Lorde Heisenberg nunca permitirá que isso aconteça e suspeito que sua mãe não será das mais felizes ao descobrir que está comigo.
Bela quis negar, mas a verdade é que não tinha ideia de como sua mãe reagiria e talvez realmente não fosse de uma forma boa. Se Ella interferiu por Cassandra e Agatha, talvez pudesse fazer o mesmo por Bela, não? Infelizmente, ao propor a ideia, Velaska não pareceu tão certa quanto ela. Restou-lhe tentar enxugar as lágrimas que nem reparou ao deixar cair, e tentar manter alguma dignidade.
- É melhor eu ir.
- Espera...
Puxando-a gentilmente, Velaska deu-lhe tempo de impedir o que estava por vir, mas Bela encontrava-se completa e totalmente entregue quando as mãos da outra jovem seguraram seu rosto e selou seus lábios. O contato foi carinhoso, com gosto de lágrimas e um toque de saudade, ausência e despedida que beijo nenhum devia ter.
Foi breve, assim como o início do seu romance, e ao afastarem-se, Bela apoiou sua testa na de Velaska.
- Acho que isso é um adeus.
- Acho que sim.
No entanto, nenhuma delas desejava partir. Como se mais um segundo nos braços uma da outra fizesse toda a diferença, mas amores infinitos não cabem em espaços pequenos que os impedem de florescer.
Por fim separaram-se e nenhuma outra palavra foi dita, nada seria suficiente para aplacar aquele sentimento e verbalizar um adeus só tornaria mais dolorido. Cada uma tomou seu caminho sem olhar para trás, ainda que ambos os corações estivessem partidos.
[...]
Oh, Deus. Ella só queria um dia de paz sem quase ser morta ou perseguida por alguém. Qualquer que fosse a deidade responsável por manter a ordem naquele fim de mundo, e ela recusava-se a acreditar que era Mãe Miranda, parecia divertir-se com seu desespero e vez após outra a colocava nessas situações.
Tudo correu bem ao separar-se de Bela, a caminhada pela floresta foi refrescante, libertadora, e Ella sentiu-se em seu elemento natural como se pertencesse àquele lugar tanto quanto pertencia à Alcina, talvez um pouco menos. Foi fácil lembrar-se de como mover-se de forma silenciosa, com uma graça que jamais teria usando vestidos ou saltos, Ella fora moldada daquele jeito e talvez Alcina estivesse certa ao afirmar que era meio selvagem por natureza.
Tudo ainda parecia meio úmido, mas as árvores frondosas já exalavam vida em suas copas cheias de folhas verdes, os animais corriam por todos os lados, por entre raízes, túneis e tocas, em uma cacofonia que ouvidos bem treinados como os dela sabiam reconhecer muito bem.
Ainda não havia frutos, mas em breve haveria e seria fácil encontrar. A primavera após um inverno rigoroso sempre parecia capaz de restaurar sua esperança na vida, como se tudo desabrochasse junto às cores magníficas produzidas pela natureza. Para Klaus e Ella a primavera era um recomeço, a chance de sobreviver a mais um ano da maneira que podiam e no fim das contas divertiam-se muito fazendo isso; apesar de todos os pesares, Ella sentia falta dele e como trabalhavam bem em conjunto, sempre se completando e se ajudando, mas Klaus tinha que estragar tudo... Não era culpa dela se ele não sabia como manter seus sentimentos sob controle. A única promessa que Ella poderia fazer, era que o ouviria assim que estivesse pronto para se desculpar, quando acontecesse ela descobrira se estava ou não pronta para retomar a amizade.
Apesar das lembranças agridoces, Ella estava feliz em estar ali. Fez-lhe bem abrir o coração e ser sincera com Alcina, fazer aquilo que tinha vontade a tanto tempo mas que vinha reprimindo dolorosamente, como um pássaro que permanece na gaiola mesmo que a portinhola esteja aberta; no fim esse era seu maior medo, acomodar-se onde estava e esquecer-se da sensação de liberdade bruta que sempre apreciara ao correr pela floresta. Ella não seria o passarinho, não mesmo, se fosse pra ser alguém que fosse a loba feroz e destemida.
Um som chamou sua atenção, pela vibração do solo não poderia ser maior do que um javali correndo em sua direção ao ser perseguido por caçadores inexperientes, Ella pode ouvir os sons pesados das suas botas contra o solo mesmo à longa distância, fosse quem fosse não sabia o que estava fazendo e provavelmente era guiado pelo desespero e a fome; não pretendia caçar, ainda que tivesse o arco consigo, por não precisar mais disso, mas decidiu ajudar de qualquer forma.
Ella tomou cuidado ao escolher uma flecha com ponta de prata e a posicionou no arco, respirou fundo pelo nariz e deixou que o ar escapasse pela boca ao concentrar-se; de fato, um javali aproximou-se correndo e saltou uma moita de espinhos, ao que Ella rapidamente o enquadrou na mira e soltou a corda. A flecha fez todo o percurso e, como sempre acontecia nessas ocasiões, a caçadora observou-a em câmera lenta até que atingiu seu alvo; o javali caiu ao chão, guinchando de medo e surpresa, ao que Ella lançou outra flecha para acabar com o sofrimento do pobre animal.
- Quem é você?
- Ella!
As duas vozes masculinas soaram ao mesmo tempo e Ella se virou, completamente confusa por ser reconhecida por um deles, e sorriu ao notar que tratava-se de Elijah.
- Bom te ver – Elijah sorriu simpático e Ella devolveu o gesto – Esse é Andrei, meu amigo, e nós estávamos...
- Caçando – Andrei o interrompeu – Pelo menos até ela se intrometer.
- Se eu não tivesse me intrometido vocês não teriam uma caça – Ella retrucou ao se aproximar do javali morto e arrancou as flechas banhadas em sangue – Podem ficar com ele, eu só queria ajudar.
- Obrigada! – Elijah agradeceu animado e meneou a cabeça ao notar o olhar desconfiado do amigo – Ella não precisa disso.
- Não preciso mesmo, considere apenas uma gentileza.
O amigo de Elijah era ligeiramente mais alto, cabelos e olhos escuros, expressão carrancuda e estava clara a sua infelicidade por Ella ter interferido em sua grande caçada, ou talvez fosse por ser melhor do que ele em algo que considerava muito masculino.
- Ella caçava com o meu irmão, os dois eram ótimos juntos.
- E por que não caçam mais? – Andrei perguntou desconfiado.
- Eu não preciso – Ella repetiu – Moro no castelo.
A expressão de Andrei mudou no mesmo instante, os comentários que circulavam no vilarejo já deviam ter chegado até ele, mas ao contrário das outras pessoas não a olhou com medo ou repulsa, apenas sorriu meio de lado e deu de ombros.
- Então você é a responsável pelo mau humor do Klaus, fez um bom trabalho.
- Meu irmão é muito cabeça dura, mais uma vez peço perdão pelo que ele fez – Elijah pareceu ficar sem jeito – Se eu soubesse que estava viva, teria levado Judith para você.
E Ella acreditou em sua palavra, Elijah tinha os olhos mais sinceros e expressivos que já havia visto em sua vida e sempre com um brilho de bondade.
- Eu acredito em você, mas agora preciso ir. Boa sorte em sua caçada.
- Graças a você teremos carne hoje, obrigado, Ella.
- Não por isso, garoto.
Acenou um adeus e se afastou enquanto tentava limpar o sangue das flechas para devolvê-las à aljava, e mesmo à certa distância pode ouvir Andrei provocando Elijah por ter sido chamado de garoto por alguém não muito mais velho que ele.
Ella tomou seu caminho sem nenhum destino em mente, logo suas vozes se transforaram em sussurros e logo desapareceram por completo, deixando-a imersa na solidão. Havia algo de reconfortante em estar no meio da floresta, sem ninguém ao seu redor, como se pudesse simplesmente fechar os olhos e imaginar-se sendo a última no mundo; apesar de amar sua nova família, esses momentos de introspecção faziam-lhe bem, como se pudesse desligar-se de tudo por alguns minutos.
Florestas podiam ser assustadoras ou magníficas, dependendo de quem se aventurasse em seu interior. Para Ella sempre foi uma forma de sobrevivência, havia caça, pesca, frutos e ervas para chás e remédios, tudo ali para quem soubesse onde e como procurar; cogumelos podiam ser deliciosos se bem preparados, desde que fosse capaz de identificar quais eram comestíveis e quais os venenosos; madeira para fogueiras e abrigos, água boa e refrescante... Havia os predadores e as serpentes, era preciso respeitar a floresta e seus moradores, sem tirar mais do que o necessário para sua sobrevivência, e Ella sempre acreditou nessas coisas.
O som de passos chegou até ela, desta vez um pouco mais sutil, e o vento trouxe o cheiro de corpos suados e sem banho há alguns dias; não era raro que algumas pessoas passassem dias na floresta, havia até mesmo grupos que peregrinavam de vilarejo em vilarejo e quase sempre montavam seus acampamentos sob a segurança das árvores. Isso não significava que eram de confiança.
- Vamos por aqui – uma voz masculina soou bem perto dali – O vilarejo não fica longe.
- Nem morto entro naquele vilarejo – respondeu a segunda vez – Sabe o que dizem daquele castelo, a fábrica também não é muito melhor.
- O que é que dizem?
O instinto de Ella a fez esconder-se imediatamente atrás da árvore mais próxima, congelou ali sem conseguir se mexer ou mesmo pensar racionalmente enquanto se aproximavam. Aquela voz, imaginou que nunca mais a ouviria, seu pai devia estar em casa com a mulher dele ou mesmo queimando no fogo no inferno e não ali, não tão próximo que poderia ouvi-la a qualquer instante; ele não devia ser seu maior fã, não depois de ter enfiado uma flecha em sua perna, e em hipótese alguma deviam se encontrar logo agora.
Pensou em Bela que a estaria esperando em breve, se ela se cansasse de esperar poderia vir em seu socorro...
Ella odiava a sensação de impotência, do desespero, que tomava conta do seu ser. Precisava lutar as próprias batalhas, mas duvidava seriamente que conseguiria atingir o pai novamente, pelo menos a sangue frio; da última vez fora sua única saída, a única possibilidade de continuar viva, e era consumida pelo medo e a raiva provocados por suas atitudes. E agora era completamente diferente, embora tivesse certeza que ele a atacaria sem pestanejar caso a visse.
Os três aproximaram até que ficaram à apenas alguns metros de distância, com sorte seguiriam seu caminho e ela poderia voltar para casa. Infelizmente, a sorte não parecia ser uma boa amiga para Ella e os três começaram a discutir sobre fazer uma fogueira bem ali; não arriscou-se a espiar, poderiam vê-la, e mesmo que fosse mais rápida que os três, e não duvidava de que podia ser, corria o risco de ser reconhecida pelo pai.
- Vou pegar um pouco de lenha seca – disse seu pai – Vão arrumando tudo.
Ella endireitou o corpo contra a árvore, mas foi descuidada e um galho quebrou sob seu pé num estalido alto o bastante para ser ouvido pelos homens.
- Tem alguém ali – disse um deles.
- Bobagem, é só um animal.
Seu pai respondeu em seguida, perto demais para o gosto de Ella:
- Vou conferir...
Alguma coisa precisava ser feita. Ella tirou com cuidado uma flecha da aljava, notou com algum prazer que pegou uma explosiva, e a encaixou no arco; não teve tempo de mirar ou planejar nada, apenas puxou a corda, virou-se rapidamente na direção do pequeno grupo e atirou cegamente a flecha; o som da explosão abafou seus gritos de surpresa e raiva, tinha certeza que não havia atingido qualquer um deles ainda que não tivesse parado para conferir, seus pés a levaram para longe dali bem rápido e não olhou para trás uma única vez por mais que sentisse vontade. Que seu pai continuasse acreditando que estava morta, o corpo jogado em alguma vala por aí, e a esquecesse de vez.
Continuou correndo mesmo quando seus músculos protestaram por um descanso, que parasse de correr, mas não podia fazer isso até que estivesse bem longe; mal soube qual caminho tomou, suas pernas pareciam ter vontade própria ao guiá-la por entre as árvores, saltou raízes e alguns arbustos sem nunca diminuir o ritmo até que viu Bela logo adiante.
Derrapou um pouco ao parar, mas apenas o suficiente para segurar a mão de Bela e a levar consigo para que saíssem rapidamente dali.
- O que aconteceu? – Bela perguntou preocupada – Parece que viu um fantasma.
- De certa forma – Ella resmungou como pode, cada respiração parecia queimar – Encontrei algumas pessoas na floresta.
- Te fizeram mal?
- Não...
Olhou bem para Bela e notou-a abatida, com os olhos vermelhos e expressão desolada.
- Não importa. Você está bem, Bela? Precisa de algo? O que aconteceu? – Ella a puxou para um abraço – Quer falar sobre isso? Preciso quebrar o braço de alguém?
Bela riu baixinho e abraçou de volta.
- Não, está tudo bem. Quero dizer, não está totalmente bem, mas vai ficar...
Conforme caminhavam até o vilarejo, Bela contou toda a sua conversa com Velaska e o desenvolvimento desastroso de seu quase relacionamento; sendo movida pelos sentimentos carinhosos para com a outra loira, Ella teve realmente vontade de invadir a fábrica de Heisenberg e quebrar o braço da sua pupila. A seu ver, seria bastante fácil contornar o lorde e Alcina era um assunto completamente diferente, ela mesma poderia interferir e fazer a condessa ceder, mas se para Velaska parecia impossível então sua interferência de nada valeria.
Abraçou Bela pela cintura assim que entraram no vilarejo, a despeito de suas desventuras tudo por ali continuava normalmente, e só desejou pegar Judith e levá-la para casa. Já haviam tido emoções demais para um único dia.
Isto é, até colocar os olhos em Judith.
A menina estava frente a frente com um garoto que Ella não conhecia, os dois tinham mais ou menos a mesma altura e encaravam-se com raiva, outras crianças formavam um semicírculo ao seu redor e a tensão podia ser sentida de longe.
- O que está acontecendo? – Bela perguntou confusa.
- Nada de bom...
O garoto disse alguma coisa que não pode ouvir, mas que pareceu ter enviado Juidth para um estado além da fúria.
- Não fala assim da minha mãe!
Judith gritou a plenos pulmões antes de se lançar sobre o garoto e ambos caíram no chão, as outras crianças começaram a bater palmas e entoar um coro de “Briga! Briga! Briga!” e logo a cacofonia se espalhou enquanto torciam para um ou outro. Judith conseguiu se sentar sobre o garoto prendendo-o contra o chão, e seus punhos pequenos desceram sobre o rosto do menino que tentava se proteger como podia; à menor abertura entre um soco e outro, o garoto conseguiu puxar o longo cabelo de Judy e a menina gritou, a dor e a surpresa a fizeram parar e ele conseguiu empurrá-la para longe.
Ella soltou-se de Bela e correu em direção á irmã mais nova, conseguiu segurá-la antes que se lançasse sobre o garotinho mais uma vez e uma mulher desconhecida, provavelmente sua mãe, fez o mesmo ao impedi-lo. Todas as outras crianças dispersaram-se e correram, provavelmente com medo de levar uma bronca de seus pais.
- Escute aqui mocinha, como se atreve a bater no meu filho? Sua...
- Sua o que? – Ella interferiu – Continue.
A mulher, seja lá quem fosse, ergueu os olhos de Judith que, diga-se de passagem, ainda rosnava de raiva em direção ao garoto, e olhou para Ella e em seguida para algo além dela, provavelmente Bela, e engoliu em seco.
- Sinto muito, foi um engano.
- Tenho certeza que sim – Ella respondeu secamente – Vamos embora, Judy.
Precisou puxar a irmã dali, mas tampouco a fez se desculpar. A regra da infância, e talvez da vida, era clara: se alguém fala da sua mãe, você precisa brigar e defender sua honra. O que deixou Ella curiosa foi o fato de Judith se sentir tão ofendida por alguém falar de Dolores, ela não era lá uma boa mãe e raramente olhava pelos filhos, mas também não podia culpar a irmã mais nova por isso, provavelmente sequer sabia o que significava ter uma mãe negligente.
- Você está bem? – perguntou para a irmã assim que alcançaram o caminho do castelo – Se machucou?
- Não, mas eu queria machucar o Dimitre pra ele aprender uma coisa!
Ella e Bela riram da criança, o que só deixou Judy mais emburrada.
- Quem se ensinou a rosnar assim?
- Dani – Judy e Ella responderam juntas.
- É a cara dela – Bela sorriu e balançou a cabeça – É a cara dela fazer isso, mas se quiser aprender a lutar tem que pedir pra Cassadra, ela é muito boa nisso e você nunca vai perder uma briga.
Judy olhou em direção a irmã mais velha como se indagasse.
- Bela está certa.
- Será que ela me ensina?
- Tenho certeza que sim.
Bastou cruzarem as portas do castelo para que Judith saísse correndo, deixando as duas sozinhas, e Bela segurou seu braço para fazê-la parar, mas não disse nada de imediato e Ella entendeu logo o que estava acontecendo.
- Eu não vou contar – prometeu.
- Nem pra minha mãe, por favor.
- Nem pra sua mãe, mesmo que ela pergunte diretamente – Ella tentou sorrir de forma reconfortante – Mas estou sempre aqui se quiser conversar.
- Obrigada – Bela sorriu tristemente – Vou pro meu quarto, quero ficar um tempo sozinha agora.
Assistiu Bela subindo as escadas, sua postura curvada muito diferente do usual e isso partiu o coração de Ella. Um coração partido não se curava do dia para a noite, levaria dias, talvez semanas, até que aquele peso se esvaísse aos poucos e ela estivesse curada. Para o que contava, Ella ainda queria quebrar um braço da Velaska e talvez Cassandra a ajudasse caso pedisse.
Seguiu a direção na qual vira Judith desaparecer e encontrou-a na biblioteca, chorando baixinho no colo de Alcina.
- O que aconteceu?
- Eu devia perguntar isso – Alcina respondeu ao acariciar as costas de Judith – Ela entrou aqui chorando.
- Ela brigou com um garoto do vilarejo, mas disse que estava tudo bem quando eu perguntei – Ella ficou confusa – Na verdade, ela deu uma surra no garoto.
- Bom, ela está chorando agora – Alcina franziu o nariz – E fedendo como aquelas pessoas.
O comentário fez Judith rir baixinho.
- Disso você gostou, não é? Tão diferentes e tão parecidas ao mesmo tempo – Alcina provocou – Já passou, querida. Você venceu uma batalha, mas agora precisa de um banho.
Judith fungou algumas vezes e enxugou as lágrimas.
- Bela disse que Cass pode me ensinar a brigar.
- Podemos pensar nisso mais tarde.
- Promete?
Ver a interação das duas, o relacionamento que estavam construindo, fez Ella sorrir. Judith tinha um fraco por Alcina, e isso estava na cara, mas talvez o mais surpreendente foi assistir a condessa estar cada vez mais enrolada naqueles dedinhos.
- Como foi seu dia?
Alcina perguntou levou alguns segundos para perceber que estava falando com Ella, passou por sua cabeça contar tudo sobre o encontro com o pai, mas além de assustar Judith também a deixaria preocupada e provavelmente não poderiam sair do castelo sem supervisão, e não havia possibilidade de contar sobre Bela. Além do mais, não queria estragar o momento fofo que se desenrolava entre as duas.
- Foi tudo bem.
- Fico feliz, draga mea.
Alcina fez Judith tomar banho antes de lhe dar mais uma lição de piano, insistindo que o cheiro da menina não era nada agradável, e logo após Daniela a levou para mais uma investigação secreta, o que tirou a briga da cabeça de Judith. Bela continuou triste, amuada, o que deixou sua mãe preocupada porque é claro que Alcina notaria algo em sua filha mais velha, ela não era do tipo que deixava algo assim passar.
Por mais que não gostasse de mentir para Alcina, Ella o fez pela segunda vez no dia ao negar saber o que havia acontecido com Bela.
O início da noite passou de forma tranquila, Judith não trouxe a briga à tona e puderam jantar em paz.
Horas depois, ao sair do banheiro deparou-se com Alcina já na cama, recostada confortavelmente em dois travesseiros grandes e macios, um livro em mãos, e provavelmente à sua espera. Ella sentia-se esgotada emocionalmente e, ao lembrar-se de sua conversa de outro dia, considerou contar tudo a Alcina e tentar aliviar aqueles sentimentos; há meses não via o pai e sabia que não devia ser a pessoa preferida dele no mundo, mas sua maior preocupação era que ele visse Judith e tentasse levá-la ou fazer algo contra a garotinha. Após um breve momento de deliberação, acabou decidindo-se por não dizer nada, não desejava sobrecarregar Alcina com assuntos que diziam respeito a sua família disfuncional, nem passar seu tempo juntas falando sobre o pai.
- Perdida em pensamentos, draga mea?
Ella sobressaltou-se, a voz de Alcina a trouxe de volta e seu olhar escrutinoso parecia desvendar-lhe cada pensamento, o livro havia sido abandonado sobre a mesa de cabeceira.
- Apenas observando sua beleza, milady.
A insinuação fez Alcina sorrir, então Ella não se sentiu muito mal por mentir, afinal de contas, não podia ser considerada bajulação quando tratava-se de uma verdade absoluta. Alcina usava uma camisola vermelha, quase da cor exata do vinho que tanto gostava, e estava tão bela quanto sempre, o rosto limpo da maquiagem que usara durante o dia parecia ainda mais bonito ao natural, ou talvez fosse o coração completamente apaixonado de Ella saltando dentro do peito ao vê-la daquele jeito.
- Vem aqui – Alcina chamou ao estender a mão em sua direção – Algo que queira me contar?
Ella pensou novamente. Valeria a pena abalar a tranquilidade em que se encontravam?
- Não, nada.
Subiu na cama e Alcina a puxou para o seu colo. Ella jamais iria se cansar de estar em seus braços, Alcina era macia e carinhosa, algo dedicado exclusivamente a ela, e estar naquela posição demonstrava o quanto haviam evoluído desde a sua chegada ao castelo. A pele de Alcina não era perfeita, havia linhas do riso e pés de galinha em seu rosto, à essa altura Ella já sabia onde encontrar as estrias espalhadas por seu corpo, as marcas que restaram de uma vida humana e também as produzidas pelos experimentos de Mãe Miranda; Alcina usava a maquiagem para ficar linda, mas eram essas marcas, cruas e naturais, que a deixavam estonteante e Ella sentia um prazer egoísta em ser a única espectadora do espetáculo que era aquela mulher.
Ella sorriu e deitou a cabeça no peito de Alcina, um beijo carinhoso foi pressionado em sua testa e o cheiro de Alcina a tranquilizou imediatamente. Com um passado como seu, as pessoas significavam mais do que um simples lugar e em algum momento que não sabia precisar, Alcina passou a significar seu lar muito mais do que o próprio castelo; talvez a mulher não se sentisse da mesma forma a seu respeito, mas tudo bem, eram suas vivências mais do que qualquer outra coisa que os moldava como indivíduos únicos.
- Acho que não está me contando algo.
Alcina era boa demais em ler seus sentimentos e linguagem corporal para ser enganada tão facilmente.
- Nada demais, é que Judith ficou muito chateada com a briga – Ella resolveu apostar em algo seguro – O estranho é que ela me disse que estava tudo bem, mas correu para chorar no seu colo.
- Eu disse que não era boa ideia deixá-la com aquelas crianças – o tom de Aldina deixou clara a expressão de desgosto que devia estar em seu rosto e Ella nem mesmo precisou olhar para cima para saber disso – Ela vai ficar melhor longe deles.
Ella precisou se conter para não começar a rir, não queria que Alcina pensasse que estava rindo dela.
- Crianças brigam, Alci, e por vários motivos diferentes; disputa por um brinquedo, um empurrão, um apelido... Todas essas coisas levam a uma briga. Ah, e se alguém ofende sua mãe, você é obrigada a brigar para defender sua honra.
- Acho que posso afirmar que você era uma dessas crianças, dado como deixou o rosto de Olívia.
- Nunca fugi de uma briga – disse orgulhosamente – Eu sabia onde bater, era mais rápida que meus oponentes e Olívia mereceu.
Olívia parecia ter ficado para trás, uma mancha escura em sua trajetória, alguém que cruzou seu caminho e foi morta por isso; Ella não desejava sua morte, mas chegou a um ponto insustentável. Voltou a pousar a cabeça no peito de Alcina e traçou algumas das marcas em seu seio usando apenas as pontas dos dedos.
- Isso é tudo? – Alcina perguntou ao acariciar seus cabelos – Apensas preocupada com Judith?
Ella sequer pestanejou antes de responder.
- Sim, apenas isso.
Sua afirmação não foi contestada, Alcina pareceu mais interessada em mantê-la por perto de aquecer as próprias preocupações. Ella fechou os olhos e suspirou contente ao ser segurada de modo tão carinhoso por sua condessa, as mãos grandes acariciando suas costas e cabelos, fazendo com que relaxasse em seus braços; esses momentos eram preciosos, únicos, e desejou poder imortalizar cada um em sua memória.
Alcina segurou seu queixo e moveu-a para que pudesse alcançar seus lábios em um beijo carinhoso, ao que correspondeu imediatamente; Ella não tinha motivos para acreditar que em algum momento seu coração pararia de saltar no peito ao menor contato com a pele de Alcina, que aquelas sensações se tornariam comuns, não quando a condessa conseguia fazê-la estremecer com um mero toque.
Separaram-se, mas não por muito tempo. Alcina pressionou beijos por todo seu rosto ao passo que suas mãos escorregaram até às coxas de Ella e puxaram a camisola para cima, expondo a pele quente e macia que se apressou em tocar. Seus lábios se encontraram novamente, dessa vez em um beijo dominante, sedento, voraz, como se Ella tivesse sido um objeto de desejo inalcançável por muito tempo; era isso, cada toque, por menor que fosse, fazia com que se sentisse importante, desejada, amada até... Ao mesmo tempo Alcina a tocava delicadamente, como se através de gestos pudesse demonstrar sua dualidade, a linha tênis entre o desejo insaciável e o cuidado para com ela.
Antes que pudessem avançar com as coisas uma batida contra a porta as interrompeu, Alcina parou o que estava fazendo sem, no entanto, tirar a mão das suas coxas. A batida soou novamente, dessa vez de forma urgente, e Alcina a colocou suavemente sobre a cama e levantou-se. Ella ainda estava confusa, as criadas não costumavam vir aos seus aposentos tão tarde da noite, e as garotas entravam após bater, exceto Judith.
Alcina deve ter pensado o mesmo, vestiu o robe sobre a camisola e avançou rapidamente em direção à porta antes que Ella conseguisse sair da cama.
- É a Daniela, ela está chorando!
Ella pegou o próprio robe e a seguiu, passou pela porta a tempo de ver Alcina virando o corredor com Judith em seus braços. Atrapalhou-se ao amarrar a faixa na cintura e prender o robe, e as perdeu de vista até chegar ao quarto de Daniela onde, aparentemente Judith estava dormindo aquela noite, era impossível mantê-la afastadas por muito tempo.
A porta estava aberta e Ella parou junto ao batente para observar a cena, Alcina estava sentada na cama e, embora só pudesse ver suas costas, sorriu ao notar que tinha Daniela e Judith em seu colo, cada uma apoiada em uma perna. Daniela soluçou baixinho e isso deixou Ella preocupada, não era do seu feitio chorar, na verdade sequer se lembrava de vê-la triste em algum momento.
- Está tudo bem, querida, foi só um pesadelo – Alcina disse em tom carinhoso – Mamãe está aqui agora.
Daniela choramingou em resposta. Ella entrou no quarto e, apesar da preocupação, sorriu ao notar que Alcina abraçava cada uma sob um braço e as mantinha bem próximas ao seu corpo.
- Foi muito ruim – Daniela soluçou de novo – Estava tão frio e foi... Foi assustador.
- Eu sei, querida, mas mamãe sempre vai proteger você, certo? Mamãe nunca vai deixar que você se machuque ou congele, por isso tomamos tanto cuidado quando está frio – Alcina pressionou um beijo na testa da filha – Você está segura e protegida.
- Eu sei.
- Foi apenas um sonho muito ruim, isso nunca vai acontecer.
- Porque você nos protege.
- Isso mesmo, meu amor.
Ella aproximou-se devagar, não desejava interromper o momento mãe e filha mas ainda preocupava-se com Daniela.
- Você está bem, Dani?
Sua resposta foi apenas um aceno, Daniela estava muito ocupava esfregando os olhos enquanto Alcina beijava sua testa. Do outro lado Judith custava a manter os olhos abertos, sua cabeça já pendia mole sobre o braço de Alcina e suas mãozinhas agarravam com força o robe de seda como se não desejasse sair dali; a medida que o choro de Daniela diminuía, o sono pareceu levar a melhor sobre ela e logo estava bocejando.
- Você quer dormir com a mamãe? – Alcina ofereceu – Ou quer ficar aqui com a Judith?
- Aqui com a Judith – Daniela suspirou – O medo já passou.
- E ela também dormiu – Ella riu baixinho ao notar a irmã completamente adormecida no braço de Alcina – Vou colocá-la na cama.
Beijou a testa de Daniela e acariciou seus cabelos antes de pegar Judith no colo, a menina se agitou um pouco ao ser separada de Alcina mas o sono logo a assaltou novamente e aquietou-se mais uma vez. Enquanto Alcina continuava a aninhar uma Daniela chorosa, Ella colocou a irmã do outro lado da cama e beijou o topo da sua cabeça.
Alcina fazia a maternidade parecer tão natural, algo que para Ella era um exercício diário desde que Judith aprendera a andar e se tornara sua responsável.
Tomou um momento para observá-las. Alcina ainda segurava Daniela contra o peito, dando palmadinhas em suas costas ao aplicar beijos por todo seu rosto; à primeira vista, uma que fora proporcionada por seu status de prisioneira, aquelas mulheres não eram nada além de monstros, mas agora que as conhecia melhor sabia que eram leais à família e a quem amavam; muito acostumada aos humanos corrompidos, Ella assistia seus laços de amor com demasiado fascínio.
- Isso, pronto – Alcina murmurou ao se levantar e colocar Daniela na cama – Boa noite e tenha bons sonhos, querida.
- Amo você, mãe.
- Também te amo, querida.
Alcina ajeitou os cobertores ao redor de Daniela enquanto Ella aproximou-se para dar um beijo de boa noite na ruiva, o que a fez sorrir e abraçar seu pescoço como um pequeno coala.
Já tendo beijado Judith, Ella afastou-se em direção à porta para esperar por Alcina e assim voltarem para seus aposentos. Sorriu ao notar que Daniela estava abraçada ao seu ursinho, o mesmo que lhe emprestara quando estivera doente e desacordada, e já tinha os olhos fechados após apagar como uma luzinha.
Com cuidado para não despertar a criança, Alcina ajeitou seus cobertores e lhe deu um beijo de boa noite, o que fez Judith se mexer e abrir os olhos apenas por um segundo, olhando-a debilmente como um filhotinho cansado faria.
- Boa noite, mamãe. Amo você.
Durante um segundo, Alcina permaneceu congelada, antes sorrir suavemente em direção à criança adormecida.
- Também te amo, querida.
Tudo passou a fazer sentido para Ella. A briga com o menino se deu por ter insultado Alcina e não Dolores; em algum momento desde sua chegada ao castelo, Judy a adotou como sua mãe e para ela era tudo o que importava. Saíram do quarto em silêncio, palavras não poderiam descrever o acabara de acontecer, seria simplório demais tentar reduzir a algo tão banal.
Mal deram alguns passos antes que Alcina erguesse Ella em seus braços, fazendo-a rir baixinho e inclinar-se em sua direção para deitar a cabeça em seu peito.
- Tudo bem?
Se referia-se a ter sido pega no colo ou por Judith tê-la chamado de mamãe, Ella não sabia e tampouco importava realmente. A resposta seria a mesma para as duas alternativas:
- Perfeito.
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