Desde que este mundo existe, o tempo parece estender-se forma diferente para cada ser vivente que nele habita, como se até mesmo a mais ínfima das criaturas tivesse lá seu senso de evolução; os humanos se aperfeiçoaram para dominar a terra, desenvolveram ferramentas úteis, e inúteis, para sobreviverem mais um dia até que chegassem ao topo da cadeia alimentar; fosse pelos polegares opositores, a invenção da roda, da lavoura, ou qualquer outro motivo, o ser humano conseguiu atingir seu objetivo e o mundo moderno estabeleceu seu próprio ritmo esqueceu-se das antigas tradições. O que esses seres frágeis e tolos sequer imaginavam, é que em alguns recantos de seu precioso planeta viviam criaturas como Alcina, superior em tantos sentidos, sua predadora natural e que eles não mais estavam no topo.
Aquele vilarejo maldito estava preso no tempo, em um limbo temporal criado especialmente por mãe Miranda para proteger seus filhos dos olhos do mundo moderno. Miranda sempre dizia que o tempo, conforme contado pelos humanos, não os atingiam e devia ser ignorado para o bem de sua existência, ao que Alcina concordava, e que o que realmente importava era o subjetivo, aquele que sentiam passar ao longo do dia conforme construíam suas experiências pessoais.
Alcina passara décadas com suas filhas, governando do alto do seu castelo, e, pensando nisso, pareceu passar tão rápido quanto um piscar de olhos; é claro, esta seria uma percepção errônea vez que os anos passaram-se um após o outro como devia ser, mas pareceu, de fato, rápido demais. Agora o tempo, em sua infinita e falsa elasticidade, parecia estender-se horrivelmente.
Cada minuto seria crucial, indispensável, para salvar Ella e Alcina sentia-se no limite, prestes a contar até os segundos que arrastavam-se enquanto a carruagem movia-se através do vilarejo; Bela e Cassandra espremiam-se junto a janela para observar o lado de fora enquanto Alcina não conseguia desviar dos pensamentos mórbidos, jurando Heisenberg de assassinato caso algo acontecesse a Ella, e mal conseguia se importar com o estado daquelas pessoas.
- Eles fizeram um estrago e tanto.
O comentário rendeu a Cassandra uma cotovelada da irmã mais velha.
- O que? – Cassandra resmungou – Eles fizeram um estrago! Ella deve ter lutado bastante...
- Cassandra, não é hora para isso! – Bela ralhou e suspirou, em seguida culpou a si mesma – Eu devia estar com ela... Se tivesse vindo com as duas poderia ter ajudado e nada disso estaria acontecendo.
A fala culpada da filha despertou Alcina da espiral de medo e vingança na qual se encontrava, não era incomum que Bela tomasse responsabilidades que não lhe cabiam, mas lhe partiu o coração notar o tom choroso com o qual falara, como se estivesse se segurando para não verter lágrimas.
- Não foi sua culpa, Bela – Alcina garantiu – Se você estivesse lá no momento do ataque eu teria mais alguém para me preocupar agora.
Bela abandonou a janela se virou em sua direção.
- Mas mãe...
- Mas nada – Alcina a interrompeu e acariciou seu rosto em uma tentativa de acalmá-la, não aguentava ver o sofrimento das filhas ainda que soubesse que seria inevitável em tal situação, todas as três haviam se apegado a Ella e agora sentiam pela perda iminente – Eu não suportaria que algo acontecesse a uma de vocês, minhas filhas. Jamais repita que devia se colocar em uma situação de risco por outra pessoa, sua obrigação é sempre voltar para casa, para mim.
Porquanto Alcina amasse Ella, jamais chegaria aos pés do que sentia por suas filhas e sabia que se afirmasse o contrário a própria jovem ficaria indignada ao ouvi-la.
Bela assentiu, ainda que parecesse querer discutir, e sentou-se no banco da carruagem ao não desejar mais ver os destroços do lado de fora. Essa era sua Bela, sempre preocupada com as pessoas com quem se importava e sempre tentando dar o seu melhor para impressionar Alcina, não que seu amor pela filha mais velha dependesse de qualquer coisa.
- Não é sua culpa, Bela – Cassandra retrucou – Nem tudo é sua responsabilidade.
- Meninas, agora não é hora pra isso.
Alcina ralhou antes que Bela respondesse e iniciasse uma briga entre as duas, ela era capaz de entender que suas filhas estavam se sentindo mal com toda aquela situação mas não podia lidar com mais um drama no momento, mesmo que fosse para separar suas filhas; apesar de Bela fosse mais centrada, Cassandra costumava ser mais geniosa e causar problemas ao lado de Daniela, o que requeria um pulso firme que Alcina não poderia ter em uma hora como essa, por tal motivo, além de mantê-la em segurança é claro, decidiu manter a caçula no castelo a trazê-la junto.
Suas filhas permaneceram em silêncio e até mesmo Cassandra, em uma atitude inédita, segurou a mão de Bela sobre o banco em um gesto de amparo e conforto, o que deixou-a satisfeita; talvez seu crescente... Relacionamento... Com Agatha a estivesse mudando de alguma forma benéfica, não que fosse algo que Alcina aprovaria, não antes da chegada de Ella pelo menos. Ella foi um marco em sua vida, com seu jeito, aos poucos, estava conseguindo mudar algumas coisas no castelo.
Com as garotas mais calmas, Alcina permitiu-se voltar a pensar em Ella e no que poderia ser feito, Judith, pobre criança, não foi capaz de lhe explicar o real estado da irmã mais velha e a extensão de seus ferimentos, provavelmente não a tinham deixado vê-la também, mas aparentemente era ruim o suficiente para que os aldeões requeressem sua presença.
Alcina havia terminado seu trabalho pelo dia e pretendia dar uma volta no vinhedo para verificar se tudo estava conforme suas ordens, ela tinha um cuidado extra com suas uvas e a produção do vinho não podia ser nada além de excelente, quando ouviu os gritos de Judith; a menina não voltara a chama-la de mamãe e só por tê-lo feito de modo tão desesperado demonstrou o tamanho do seu pavor, mas ao vê-la imaginou que devia-se ao fato de ter se machucado ao cair do cavalo, afinal de contas que criança não corria para sua mãe ao ser machucada, e a notícia que recebeu a deixou desnorteada durante alguns segundos; a satisfação pessoal por ter sido chamada de mamãe deixou-a no mesmo instante, mas ainda assim precisou acolher a menina e lhe dar colo tanto para acalmá-la quanto para descobrir o que de fato aconteceu; e também havia Klaus, o humano insolente que invadira seu castelo á procura de Ella e que escondera Judith da irmã mais velha, se ele pediu que a criança buscasse Alcina isso significava que a jovem caçadora não estava bem.
Tudo o que Alcina podia supor era que se tratava dos lycans de Heisenberg e que seu maldito desleixo finalmente a tinha atingido, esperava que pelo menos dessa vez Mãe Miranda estivesse disposta a ouvi-la ao invés de apenas prestar desculpa após desculpa para o comportamento imprudente do filho mais novo.
A carruagem parou defronte a casa de Luiza, suas filhas saltaram primeiro e Alcina as seguiu ignorando os olhares que recebia; havia mais pessoas feridas e sangrando, ela podia sentir o cheiro e estava sendo meio sufocante, outras apresentavam queimaduras ou ossos quebrados; não as contou apesar de observá-las atentamente, não se importava com nenhuma delas, eram apenas efeitos colaterais de um ataque indesejado, do seu ponto de vista a única que realmente contava como vítima fatal era sua Ella, o resto viria depois e não exatamente em segundo lugar de prioridade.
Alcina precisou se abaixar para cruzar algumas portas e bufou de raiva do lugar apertado, o cheiro ali era quase insuportável e ela evitou respirar pelo nariz, infelizmente isso significou que podia praticamente sentir o gosto de sangue em sua língua; Bela e Cassandra a seguiram, flanqueando-a de forma protetora, ambas empunhando suas foices para o caso de alguma daquelas pessoas atentarem contra sua vida em uma ideia estúpida e inútil de retaliação.
- Lady Dimitrescu, Ella está bem ali...
Reconheceu-o como Klaus, o melhor amigo apaixonado por Ella, embora parecesse desgrenhado e exausto; sua expressão derrotada não transmitia qualquer animosidade, mas olhava constantemente por cima do ombro como se estivesse sendo observado ou perseguido por algo invisível, em nada parecia o jovem idiota e obstinado que invadira seu castelo no auge do inverno para resgatar seu bichinho. Bela e Cassandra nada disseram, mas conhecendo-as tão bem Alcina sabia que estavam prontas para atacar ao seu menor sinal de comando.
- Venha comigo, por favor – Klaus pediu – Ella precisa de ajuda.
- Mostre o caminho.
Klaus assentiu e virou-se, para acompanhá-lo Alcina precisou se abaixar ainda mais para atravessar uma porta menor do que as demais, todos os lugares pareciam cheios de feridos, trapos de roupas ensanguentadas ou bacias com água suja de sangue, o cheiro de remédio e álcool começava a sobressair e, ao adentrarem a cozinha, a condessa entendeu o motivo. Havia pelo menos quatro pessoas jogadas pelo chão, todas feridas, um homem deve o braço esmagado e o aninhava junto ao peito, uma mulher tinha uma ferida no peito que sangrava profusamente e mal conseguia manter os olhos abertos enquanto uma jovem limpava seu rosto com um pano molhado e pedia que permanecesse acordada, os outros dois não estavam muito melhores, e então seu olhar pousou em Ella sobre a mesa.
- Em nome de Mãe Miranda...
Ella foi deitada de bruços, a camisa outrora branca foi rasgada para deixar as costas à mostra onde quatro longos e profundos cortes estendiam-se do ponto direito do quadril até o ombro esquerdo, seu rosto estava tão pálido quanto uma folha de papel, os lábios detiam uma coloração doentia, mas o que mais incomodou Alcina foi a imobilidade; Ella parecia tão imóvel quanto um manequim ou, por mais que lhe doesse pensar assim, um cadáver.
- Ah, Lady Dimitrescu! É bom revê-la, embora as circunstâncias não sejam as ideais...
Luiza era uma mulher pequena, com o rosto marcado pela idade e dificuldades encontradas durante a vida, seus cabelos negros combinavam bem com as vestes sóbrias de mesma tonalidade; a curandeira sempre fez questão de tratar Alcina com educação e respeito, mas sem a expressão de medo estampada em seu rosto tal qual acontecia a maioria dos aldeões.
- Como ela está?
O desejo de Alcina era lançar-se sobre Ella, embalá-la nos braços e levá-la de volta ao castelo, para o seu lar, mas algo dentro dela dizia que isso seria demonstrar fraqueza e, ainda pior, que a jovem era um ponto fraco a servir de alvo.
- Mal – Luiza admitiu de forma cautelosa – Ela perdeu muito sangue, mas não apresentou qualquer sintoma adverso devido ao ataque de um lycan.
Pelo menos ainda não, eram essas as palavras que Luiza não estava lhe dizendo.
Um ataque de lycan quase sempre resultava na morte da sua vítima ou, no caso de sobreviventes, causava sua transformação. Alcina não conseguia decidir qual dos dois destinos era pior para Ella, vê-la morta ou transformada em uma fera.
Certa confusão chamou sua atenção quando Heisenberg adentrou a residência, tão sutil quanto o coice de um cavalo selvagem, e fez Alcina revirar os olhos.
- Me disseram que havia um problema por aqui e, de fato, tá faltando pedaços de muita gente, juro que tem um cara segurando a perna embaixo do braço... – Heisenberg parou de falar abruptamente ao chegar à cozinha e gemeu – Ah não... Você não, loirinha...
Alcina não conseguiu impedir-se de rosnar, estava furiosa para dizer o mínimo.
- Você! Sua criança descuidada e insolente! – Alcina apontou o dedo diante do rosto de Heisenberg – Olhe o que seus malditos cães sarnentos fizeram, esse é o resultado da sua incompetência.
- Não ordenei um ataque ao vilarejo – Karl retrucou – Muito cuidado com suas acusações. E eu jamais machucaria a loirinha, ela é divertida e você não vai encontrar outra assim.
Era exatamente este o ponto. Alcina não desejava outra pessoa, nem mesmo um harém de belas mulheres dispostas a se entregarem para a condessa seria o bastante para suprir o lugar deixado por Ella; perde-la significaria voltar a ficar só com suas filhas, o coração trancado no peito por décadas até que finalmente se permitira abrir novamente. Ao notar que suas palavras causaram certa sensação, e que todos ao seu redor permaneceram em silêncio, Heisenberg ajeitou nervosamente o chapéu sobre os cabelos grisalhos e assentiu como se falasse consigo mesmo.
- Posso dar uma olhada nela?
Luiza afastou-se levemente, mas Heisenberg permaneceu imóvel até que Alcina lhe abriu passagem para que pudesse aproximar-se, embora seu irmão mais novo fosse um idiota completo ele parecia saber quando não devia se aproximar de algo com o qual Alcina estava sendo protetora.
Heisenberg se aproximou da mesa de madeira e tirou os óculos escuros, seus olhos brilharam mesmo à distância ao curvar-se sobre o corpo desacordado, apenas uma casca vazia sem a essência de Ella.
- Como eu pensei...
- O que? – Alcina tentou ser paciente, mas Heisenberg estava lhe dando nos nervosa.
- Tem pedaços de unhas do lycan aqui, vamos ter que tirar.
A conclusão pareceu deixar Luiza nervosa.
- E-eu não vi fragmentos de unha, juro que não, Lady Dimitrescu...
- Não teria como ver – Heisenberg interrompeu suas desculpas e concluiu: – São pequenos demais, mas precisam ser removidos o quanto antes. Vamos levá-la para o castelo e fazer isso lá.
- Não vamos movê-la – Alcina retrucou entredentes – Não podemos movê-la.
Conhecendo seu irmão, Alcina esperou uma resposta sarcástica e provocante, mas ao olhar em sua direção Karl pareceu preocupado.
- Não podemos fazer isso aqui. Olhe a sua volta, Alcina, e veja como este lugar está cheio de feridos...
Como que para ilustrar o que dizia, um choro alto e convulsivo preencheu o ambiente quando a jovem começou a chorar sobre o peito da mulher baleada ao notar sua morte, quase no mesmo instante um jovem loiro invadiu a cozinha e chamou Klaus, que até aquele momento permanecera em silêncio em um canto, ambos saíram juntos e o único som a ser ouvido foi o dos gemidos dos moribundos.
Bela, parecendo mais lúcida do que Alcina, deu um passo à frente em direção ao tio.
- Ella vai ficar vem?
- Espero que sim, querida – Karl tentou soar gentil – Mas precisamos levá-la, Donna e Miranda vão nos encontrar no castelo.
Suas filhas trocaram um olhar intenso, Alcina sabia que todas as três ainda se sentiam intimidadas com o poder e magnetismo emanados por Mãe Miranda, e não era como se pudesse culpá-las por isso, mas sentia-se pronta para culpar Heisenberg por outra coisa.
- Como Donna chegará ao castelo?
Por mais que amasse Donna, a condessa precisava admitir que a irmã era um ser recluso e que evitava ao máximo sair de casa.
- Disse à Daniela para buscá-la usando um dos cavalos.
Alcina sentiu o rosto esquentar de pura raiva e tinha certeza que se pudesse estaria tão vermelha quanto um pimentão! Como Heisenberg ousava dar ordens à sua caçula?
- Você tirou Daniela da segurança do castelo e a colocou lá fora, completamente sozinha, quando pode haver mais lycans à espreita?
Tentou, mas não muito, manter o tom baixo.
- Daniela é bem grandinha...
- Podem haver mais desses seus vira-latas fedidos lá fora...
- Daniela sabe se cuidar – Heisenberg retrucou – E você mesma tirou as outras duas do castelo, não está preocupada com elas?
Sabia o que Heisenberg estava tentando fazer, mas acabaria por plantar uma semente de discórdia entre suas filhas e definitivamente não era o momento para isso.
- Elas estão comigo – Alcina retrucou – E eu jamais permitiria que algo acontecesse a uma das duas.
- Seja como for, não temos tempo pra isso – Heisenberg se afastou da mesa e caminhou em direção à porta – Última chamada, vocês vem ou não?
Sem lhe dignar uma resposta verbal, Alcina não tinha certeza do que seria capaz de dizer, pegou Ella em seus braços, tomando cuidado para posicionar um antebraço próximo a sua nuca e o outro sob seus joelhos para evitar tocar em seus ferimentos; Bela rapidamente tirou a própria capa e jogou-a sobre o torso desnudo de Ella para dar-lhe alguma privacidade e Alcina agradeceu a filha por isso.
- Ella vai ficar bem, mãe – Bela garantiu – Tenho certeza que ela está lutando por sua vida.
- Eu também, querida.
Não prestou atenção em qualquer uma daquelas pessoas a não ser Luiza, a quem acenou brevemente em adeus antes de se retirar do aposento abafado; Heisenberg tinha razão, com o tempo esquentando e tantas pessoas feridas em um lugar só, moscas estavam começando a rondar e logo pousariam nos ferimentos expostos para depositar seus ovos, Ella não merecia ficar em um lugar como aquele; Bela e Cassandra a seguiram, a filha do meio um pouco perto demais como se temesse que alguém fizesse algo ou talvez, pensou Alcina, quisesse estar perto de sua mãe.
Heisenberg as esperava do lado de fora, ao lado da carruagem, com seu martelo em mãos e longe dos ouvidos curiosos de quem devia obedecê-los Alcina se achou no dever de dar-lhe um aviso.
- Se algo acontecer com Ella, ou mesmo Daniela nesta empreitada solitária na qual a enviou, saiba que vou querer sua cabeça em uma bandeja de prata e nem mesmo Mãe Miranda vai ser capaz de me parar.
- Wow... Acalme seus peitos, irmãzona! Já disse que não ordenei o ataque...
- Mas não os está controlando como devia! – Alcina retrucou de volta – Se você fosse menos incompetente e prestasse mais atenção no que faz...
- Não adiantaria nada – Heisenberg balançou a cabeça e baixou o olhar – Não sei o que há de errado com os novos, é quase como se tivesse algo diferente dentro deles... Não sei o que está acontecendo, mas sei que não acredita em uma palavra do que eu digo por que está focada demais na coisa errada.
- O que isso quer dizer? – Cassandra perguntou deixando transparecer a confusão em que ela e a irmã mais velha se encontravam – Estamos focadas em salvar a Ella, não é mesmo mãe?
- Sim, querida e precisamos ir imediatamente, não temos um minuto a perder.
Estava prestes a entrar na carruagem quando Heisenberg pigarreou para chamar sua atenção.
- Eu acho que precisamos focar no motivo disso tudo ter acontecido e não em como aconteceu, mas você está certa nós precisamos ir.
Alcina não o respondeu, não estava interessada em suas teorias da conspiração e o motivo do ataque, pelo menos para ela, estava muito claro: Heisenberg perdeu o controle sobre seus lycans que agiram com a selvageria insana de sempre, Ella estava no lugar errado e na hora errada. O foco de Alcina era manter a jovem viva e respirando, por isso encerrou aquele assunto de uma vez por todas.
Sentada na carruagem, suas filhas assumiram o banco da frente, Alcina posicionou Ella contra seu corpo não se importando se seu vestido ficasse encharcado de sangue, isso seria resolvido mais tarde, e passou a mão gentilmente em seu rosto; a pele continuava pálida como a de uma boneca de porcelana, parecendo tão frágil quanto e Alcina levou a mão cuidadosamente até seu peito quase suspirando de alívio ao encontrar o batimento fraco porém constante de seu coração.
- Fique viva – suplicou em voz baixa – Por favor, continue respirando...
O caminho de volta foi uma tortura sem fim, Alcina não conseguia tirar os olhos do rosto pálido de Ella como se ao fazê-lo pudesse correr o risco de deixá-la escapar por entre seus dedos e permitir que atravessa o véu que separa este mundo daquele povoado pelos mortos; não que fosse supersticiosa, mas Alcina não sabia como sobreviver a outra perda...
Obrigou-se a afastar tais pensamentos, Ella não iria morrer em seus braços. Aquela jovem que parecia atrair problemas se saía muito bem sobrevivendo por conta própria mesmo nas adversidades, era uma lutadora como a própria Alcina dissera várias vezes, e acabaria por vencer mais aquele obstáculo.
Um baque surdo indicou que Heisenberg havia saltado sobre a carruagem para pegar uma carona e, embora Alcina tenha revirado os olhos para o comportamento errático do irmão, a distração foi bem vinda ao tirá-la de um redemoinho de pensamentos ruins que a não a levariam a lugar algum. Suas filhas permaneceram em silêncio, mas Alcina notou que nenhuma delas tirou os olhos do corpo inerte de Ella em seus braços, mesmo Cassandra que sentia dificuldade em se aproximar de outras pessoas e formar conexões reais agora parecia extremamente preocupada com a humana a quem tanto desejara matar no início. Ah sim, Ella sobrevivera devido a proteção de Alcina que deixou bem claro desde o começo a quem a humana pertencia, suas filhas aprontaram todo tipo de brincadeira e tentaram empurrá-la para longe, mas até mesmo esse obstáculo foi superado pela caçadora; primeiro Bela ao oferecer sua amizade e até mesmo um objeto para sua paixonite, depois Daniela com seus enigmas e, por fim, Cassandra ao defender sua família das palavras maldosas de uma criada qualquer. E Alcina, é claro, que se viu completa e irremediavelmente apaixonada pela humana que invadiu seu castelo, e sequer soube precisar quando seus sentimentos mudaram, foi como se eles simplesmente já estivessem lá apenas esperando para florescer.
A estrada pareceu infinita, como se continuasse a se estender em direção ao castelo e durante todo o percurso Alcina manteve os olhos no rosto pálido exceto por um momento quando suas filhas se mexeram e percebeu que seguravam as mãos. Era tão raro ver Cassandra deixando alguém tocá-la de forma carinhosa que Alcina sentiu-se grata pela filha permitir-se algum consolo, embora soubesse que correria para os braços de sua própria amada ao retornar ao castelo; em algum momento, os braços maternos sempre seriam trocados pelos de amantes, era o curso natural da vida mesmo que não fosse exatamente fácil.
Heisenberg saltou assim que a carruagem parou diante do castelo, as meninas saíram em seguida e Alcina as acompanhou com o máximo de cuidado para não perturbar Ella.
- Cassandra, vá na frente e garanta que Judith não esteja por perto para ver Ella assim.
- Sim, mãe.
Cassandra correu o mais depressa que conseguiu, como se desejasse deixar aquela cena para trás e pudesse fugir do que estava acontecendo já Bela, no entanto, permaneceu ao lado da mãe e ali ficaria até segunda ordem; Heisenberg avançou em direção ao castelo e Alcina o seguiu, Bela obediente ao seu lado, e adentraram a construção silenciosa; poderia ser impressão sua, algo causado pelo choque de ver Ella tão frágil e exposta, mas tudo ao seu redor parecia um tanto desprovido de vida.
Alcina galgou cada degrau com imenso cuidado, a certa altura Bela desculpou-se e se afastou dizendo que conseguiria um kit de primeiros socorros e despareceu deixando-a a sós com seu irmão, quase porque Ella ainda estava ali, muda e quieta demais.
Heisenberg fez a gentileza de abrir a porta dos seus aposentos para que passasse e Alcina inclinou-se com cuidado para fazê-lo. Tirou a capa preta que cobria o corpo de Ella e deitou-a gentilmente na cama da mesma forma que a encontrou na mesa de Luiza, de bruços e a cabeça virada de lado; mal terminou de ajeitá-la sobre os lençóis e a porta do quarto foi aberta com um estrondo, Daniela entrou esbaforida com Donna em seu encalço, em seguida Angie saltou pelo cômodo com seu vestido de noiva puído e o que parecia ser uma mochila cor de rosa presa em suas costas, Bela, Cassandra e Agatha também adentraram os aposentos munidas de um kit de primeiros socorros, uma bacia com água e toalhas limpas.
Silenciosa como sempre, Donna lançou um olhar em direção a Ella, ou assim pareceu devido ao véu negro que cobria seu rosto, e caminhou em direção à penteadeira de Alcina onde espalhou vários frascos e ervas de cheiros variados.
- Obrigada por vir, Donna.
Donna apena assentiu e continuou a trabalhar. Daniela, por sua vez, correu em sua direção e lançou-se em seus braços, Alcina notou que a caçula tremia ainda que não demonstrasse ter chorado.
- Tem muito sangue!
Então Alcina notou que toda a frente do seu vestido estava banhada em sangue.
- Ella sangrou, querida, mas vai ficar bem. Agora precisamos trabalhar e preciso que faça algo por mim.
- Qualquer coisa – Daniela prometeu.
- Leve Angie com você e depois verifique a Judith, sim? Você é a irmã mais velha de quem ela é mais próxima e aposto que vai ficar mais tranquila com você por perto.
Daniela lançou um olhar em direção à cama e assentiu, pela primeira vez não houve discussões ou descontentamento sobre ser mantida longe e a caçula resignou-se a guiar a boneca falante para fora do quarto.
Tirando um relógio do bolso interno do casaco puído, Heisenberg estalou a língua e guardou-o de volta após observá-lo.
- Vamos preparar tudo, não dá pra esperar a Miranda.
Um suspiro baixo que poderia ser facilmente confundido com um soluço chamou a atenção de todos, Alcina virou-se e como que por um milagre encontrou as orbes azuis fitando a parede oposta; Ella acordou e tentou se mexer, mas o mais simples movimento pareceu enchê-la de dor e a fez chorar com a tortura.
- Ela está acordada – Alcina murmurou – Precisa de um sedativo.
- Miranda não está aqui, devia estar mas não está – Heisenberg reforçou – E Ella não tem tanto tempo assim, precisamos fazer nós mesmos.
Imediatamente Alcina se ajoelhou ao lado da cama para ficar na mesma altura de Ella, afastou os cabelos do seu rosto e tentou soar de forma reconfortante.
- Você vai ficar bem, draga mea – prometeu em voz baixa – Confie em mim, farei de tudo para que se recupere.
Ella assentiu fracamente. Seus olhos pareciam ainda mais azuis em contraste com a pele doentiamente pálida, como se saltassem à vista, e brilhavam com as lágrimas que tentava conter em um ato de coragem; Alcina queria lhe dizer que tudo bem se quisesse chorar, gritar e até mesmo lutar, mas entendeu que Ella precisava se sentir no comando e quaisquer reações que viria a ter dependeriam única e exclusivamente dela.
- Alcina, continue falando com ela.
Com um gesto, provavelmente para não aterrorizar Ella antes da hora, Heisenberg indicou que Alcina deveria segurar-lhe braço direto, o que ela fez, enquanto Bela subiu na cama e ocupou-se do esquerdo, a Cassandra cube segurar suas pernas para impedir que se debatesse; Karl tirou algo que se parecia bastante com um par de óculos de dentro do bolso interno do casaco, mas as lentes eram grossas e havia mais de uma sobreposta às outras como que para aumentar sua potência.
- Segurem bem, ela vai pular...
- Me desculpe, querida.
As palavras de Alcina não passaram de um sussurro e Ella a olhou confusa.
- O que...?
Agindo juntas, Bela e Cassandra assumiram seus postos e seguraram Ella contra a cama, Alcina fez o mesmo ao imobilizar seu braço direito e acariciou o rosto pálido tentando afastar a expressão de medo que marcava suas feições.
- Você vai ficar bem, draga mea.
Heisenberg se posicionou o melhor que pode ao lado de Bela e aceitou a pinça longa e estreita do kit de primeiros socorros que Agatha lhe estendeu, mesmo ele parou por um segundo ao analisar as feridas, ou talvez estivesse se preparando para fazer o que era preciso, e quando mergulhou o instrumento na carne de Ella um berro quase inumado invadiu o quarto.
Ella chorou e gritou com todas as suas forças, o som molhado da pinça movendo-se dentro da sua carne era doentio e Alcina precisou respirar fundo algumas vezes, manteve o aperto para evitar que sua amada se debatesse e se machucasse ainda mais; Bela parecia prestes a chorar e Cassandra não olhou para Ella, seus olhos treinados permaneceram em Agatha como se isso pudesse tirá-la dali e levá-la par um lugar onde alguém com quem se importava tanto não estivesse gritando de dor. Alcina não a culpava, também desejava estar em qualquer situação que não fosse aquela, que não tivesse que lidar com os gritos e a dor.
Apesar da força aplicada sobre seu corpo, Ella tentava se debater a todo custo e a escapar do flagelo que lhe era infligido de forma tão impiedosa, cada movimento de Heisenberg a fazia gritar mais alto até que Alcina temeu que sua garganta estivesse em chamas.
- Você está indo bem – Alcina garantiu – Continue comigo, continue olhando pra mim...
Mas Ella não parecia conseguir focar em qualquer coisa, quando seus olhos não estavam apertados e vertendo lágrimas estavam encarando o nada, como se tentassem focar em algo que estava longe demais.
- Heisenberg, ande logo com isso! – Alcina rosnou – Está demorando demais.
- Estou fazendo o melhor que posso.
Alcina teria imaginado que não poderia ficar pior, não mais do que já estava, mas então Ella começou a gritar seu nome como se precisasse ser salva, como se não pudesse ver que estava bem ali ao seu lado e clamasse que viesse em seu socorro, e isso partiu seu coração de uma forma inimaginável.
- Estou aqui, draga mea. Estou bem aqui e não vou a lugar algum...
- Alcina!
- Estou aqui, amor. Eu estou bem ao seu lado, olhe pra mim... – Alcina engasgou – Karl!
- Estou quase lá!
- Alcina!
- Ella está morrendo, você a está matando!
Ella e Alcina gritaram juntas, suas vozes se misturando em meio ao silêncio que cobria o quarto.
Durou apenas alguns segundos tensos e desesperadores, os quais arrastaram-se irremediavelmente, e então o silêncio dominou quando Ella caiu na cama, completamente imóvel e tão pálida quanto papel; nenhuma palavra foi dita, ninguém ofegou como se todos segurassem a respiração e esperassem pelo que viria a seguir, Alcina mal conseguia pensar com clareza. Ella se parecia mais com um cadáver do que com uma pessoa viva, tão imóvel como estava, e Alcina sentiu seu coração se partir mais uma vez em poucas horas; nenhum som podia ser ouvido além de Donna esmagando suas ervas, como se o quarto houvesse se transformado em um sepulcro.
Temendo descobrir a verdade, mas sentindo que precisava fazer isso, Alcina levou a mão ao pescoço de Ella e sentiu, com grande alívio, a pulsação fraca sob seus dedos.
- Está viva – anunciou com a voz fraca – Ella está viva.
- Ótimo.
Heisenberg tirou o que parecia ser uma lasca de unha comprida e preta de dentro de um dos ferimentos nas costas de Ella.
- Agora só faltam duas.
- Como isso é possível?
Cassandra resolveu dar voz aos pensamentos de Alcina, ela também gostaria de saber como as garras de um lycan poderiam se desfazer daquele jeito.
- Eu não sei o que tem de errado com esses lycans, parecem mais frágeis como se tivessem sido infectados de modo descuidado ou os hospedeiros não reagiram bem – Heisenberg deixou a lasca de unha sobre a bacia com água que Agatha segurava e então voltou a examinar os cortes – Eu não sei, muita coisa pode ter dado errado nesse processo e só ia dar pra saber se tivéssemos um deles pra examinar, mas eu perguntei no vilarejo e eles colocaram fogo em todos.
Com Ella imóvel foi mais fácil retirar as duas lascas de unhas restantes, e durante todo o tempo Alcina manteve os dedos sobre o pescoço de Ella para sentir sua pulsação e garantir que continuava viva, como se manter-se vigilante fosse imprescindível para sua recuperação, mas a verdade é que não conseguia fazer mais nada além de olhar para seu rosto e tentar absorver cada detalhe, cada nuance, e decorá-lo em sua mente; humanos eram tão frágeis e Alcina já devia ter aprendido isso, não importava o quão forte e teimosa Ella fosse, ainda continuava sendo um daqueles seres cuja existência poderia terminar rapidamente.
Assim que Heisenberg e as garotas se afastaram, Donna assumiu seu lugar sem dizer uma palavra e se pôs a limpar os ferimentos utilizando-se de uma substância que cheirava a álcool e ervas refrescantes, apenas Alcina manteve-se em seu posto de vigília ainda sem conseguir desviar o olhar. Ella estava viva, ainda lutava de alguma forma, e isso era um ótimo sinal; podia ser uma humana, tão frágil quanto o resto de sua espécie, mas sua força e vontade de permanecer viva a faziam destacar-se.
- Estou aqui, não vou sair do seu lado, draga mea.
Vez ou outra Alcina murmurava palavras que imaginava serem consoladoras, queria fazer o possível para que Ella soubesse que não estava só, que aquela batalha não precisava ser travada sozinha.
Enquanto Donna trabalhava, Bela postou-se ao lado de Alcina e pousou as mãos em seus ombros como se desejasse demonstrar para sua mãe que ela também não estava sozinha; o toque foi capaz de trazê-la de volta à realidade, fazer com que pensasse com clareza, e lhe proporcionou algum conforto maior do que poderia esperar. Alcina murmurou um agradecimento à filha e procurou Cassandra com o olhar, e notou que a morena não conseguia tirar os olhos de Ella ainda que tivesse se afastado alguns passos para longe da cama.
- Cass – Alcina chamou suavemente – Você pode ir agora, minha querida, já fez mais do que o suficiente.
- Mas...
- Você não precisa ver isso – Alcina insistiu – Nenhuma de vocês precisa.
Como nenhuma das duas se moveu, como se estivessem em dúvida sobre deixar Alcina a sós, precisou insistir.
- Vão, garotas, por favor. Além disso, Angie e Daniela estão sozinhas por aí, garantam que elas não destruam metade do castelo.
Bela assentiu e beijou o rosto da mãe antes de se afastar, mas Cassandra permaneceu imóvel.
- Cass? – Agatha chamou para conseguir a atenção da namorada – Pode, por favor, dar uma olhada na Judith? Eu a deixei dormindo no quarto, mas acordar sozinha pode deixá-la com medo.
Ainda assim, Cass titubeou ao responder.
- Certo... Mas se precisarem de mim eu volto.
As duas saíram silenciosamente, mesmo que aparentassem desejar permanecer no quarto como se pudessem evitar uma coisa pior. Alcina não as culpava, eram boas garotas e sempre obedientes que estavam vendo uma alguém com quem se importavam definhar daquela forma.
Donna terminou com a limpeza e usou uma agulha esterilizada para dar pontos nas feridas, Alcina tentou, em vão, não pensar na quantidade de linha necessária devido à extensão dos ferimentos. Pelo menos o quadro parecia estável e Alcina pode respirar tranquilamente pela primeira vez, ainda que tencionasse se afastar dali por nada; a condessa tinha plena consciência de que seu vestido estava empapado de sangue seco, sangue este eu pertencia à Ella, e pela primeira vez o cheiro lhe causava asco.
Com os pontos terminados, Donna aplicou uma nova mistura sobre eles, dessa vez uma de cheiro agradável, e com alguma ajuda de Agatha, e de Alcina que ergueu Ella com todo o cuidado, conseguiu enfaixar seu torso com bandagens limpas.
- Ela vai ficar bem.
Não era sempre que Donna falava em voz alta, principalmente ao redor de pessoas que lhe eram estranhas, mas Alcina agradeceu que o tenha feito, sua afirmação serviu para deixá-la tranquila e confiar, realmente acreditar, que Ella ficaria bem.
- Obrigada pela ajuda, Donna.
A resposta para seu agradecimento foi um sorriso suave, quase imperceptível, de lábios fechados. Heisenberg, por sua vez, grunhiu ao ajeitar o chapéu sobre os cabelos desalinhados e guardou os óculos de volta no casaco.
- Miranda já devia ter chegado – ele rosnou novamente – Mas já fizemos tudo mesmo, ela pode ficar muito bem onde está.
- Heisenberg, agora não – Alcina suspirou – Fizemos o que era possível.
- E sozinhos.
- Não podemos esperar que Mãe Miranda pare tudo o que está fazendo.
Mesmo Alcina tinha dificuldade em acreditar em suas próprias palavras. Não havia sido sempre fiel à Mãe Miranda? Ela lhe presenteou com filhas obedientes, transformou-a em quem era, e Alcina não foi nada além de fiel em resposta à sua magnificência; agora que mais precisava dela, quando Ella estava entre a vida e a morte devido a um ataque de lycans, Mãe Miranda simplesmente não conseguiu ir até o castelo para ajudá-la.
- Vou descer e comer alguma coisa – disse Heisenberg – Não preciso ouvir desculpas para o comportamento da Miranda.
Antes que pudesse abrir a porta e sair, Ella gemeu e atraiu a atenção de todos; Alcina prendeu a respiração e esperou por qualquer coisa, que ela abrisse os olhos ou que disse uma palavra, qualquer coisa, mas os segundos se arrastaram sem qualquer manifestação. Ella gemeu novamente e seu corpo se contorceu de modo antinatural, saltou sobre a cama e bateu a cabeça repetidamente contra o travesseiro em uma convulsão horrorosa; Alcina se adiantou imediatamente, tencionando segurá-la e ajudar de alguma forma, mas foi parada por uma mão gentil de Donna.
- Não faça isso, tem que esperar passar.
Foi como ser torturada, Alcina pensou, como se seu coração fosse esmagado pela mão de um ser impiedoso. Assistir Ella se contorcendo daquela forma antinatural, seu corpo se movendo em direções diferentes sem que pudesse fazer qualquer coisa a respeito, estava acabando com ela e os minutos se arrastaram de forma torturante.
Vê-la naquele estado era deveras terrível, doloroso e a fazia pensar se havia realmente alguma chance de Ella voltar a ser o que era; imaginou se estaria se transformando em um lycan, assumindo a aparência animalesca e feroz de uma fera sem sentido algum, se isso acontecesse estaria inalcançável para sempre, jamais conseguiria controlar seu lado irracional para voltar a ser quem era.
A convulsão de acalmou e Ella voltou a ficar quieta, inerte e, ainda que tenho suspirado algumas vezes, não abriu os olhos novamente; o mais importante é que continuou a ser ela mesma, fraca e pálida devido a perda de sangue, mas ainda assim era ela.
- Já passou – disse Donna suavemente – Vai ficar bem agora.
- Ela está se transformando? – Alcina deu voz às suas preocupações – Ela vai se transformar em uma daquelas coisas?
- A transformação ocorre poucos segundos após a contaminação – Heisenberg respondeu – Acho que quanto a isso ela está segura. Ei, Alcina... Por que não troca de roupa e tem um momento a sós com ela? Donna e eu estaremos lá embaixo se precisar de nós.
Donna aquiesceu e Alcina concordou, precisava de algum tempo a sós com Ella e queria tirar aquele vestido o quanto antes.
Sua irmã não era muito de falar, em verdade Donna sempre fora uma alma solitária e recatada, mas engava-se quem achava que a mulher não possuía capacidade em interações humanas; sempre perspicaz e empática, Donna permaneceu no quarto enquanto Alcina moveu-se para o cômodo ao lado com a intenção de se trocar, entendo que não gostaria de deixar Ella sozinha quando poderia ter uma nova convulsão a qualquer minuto; a condessa trocou-se rapidamente, abandonou o chapéu e as luvas porquanto não precisaria deles em um futuro próximo, e voltou ao quarto para encontrar sua irmã de criação ao lado da cama, Agatha e Heisenberg estavam longe de serem vistos mas não duvidou que o irmão mais novo e irritante manteria sua promessa de estar no castelo.
- Mareou gostaria de ter vindo – Donna disse com suavidade – Mas ele estava se sentindo particularmente atraído pela água hoje.
- Eu compreendo.
- Mas prometeu que viria se fosse necessário.
- Com sorte conseguimos salvá-la – disse Alcina ao se aproximar – Não sei como agradecer a ajuda.
- Qualquer coisa que precisar.
Donna apertou seu antebraço em um gesto reconfortante e se afastou em silêncio, o único som a indicar sua saída foi a porta do quarto se abrindo e se fechando-se logo após.
Sozinha, Alcina tomou algum tempo para observar Ella na cama. Era sua amada ao passo que também não se parecia em nada com ela, e a constatação a fez sentir-se cansada, verdadeiramente exausta, e sem se importar com o vestido limpo, ajoelhou-se novamente para ficar à altura de Ella.
Tentou pensar no que dizer, o que exatamente falar, devia oferecer palavras de conforto? Prometer que ficaria bem e que cuidaria dela? Nada disso parecia certo e as palavras faltaram a Alcina. Pareceu fácil quando Ella estava acordada e em sofrimento extremo, tudo o que Alcina precisava fazer era lhe oferecer conforto; mas com Ella desacordada, envolta em bandagens e deitada ao lado de uma mancha de sangue – provavelmente Donna, Karl e Agatha a haviam movido para o lado limpo dos lençóis – simplesmente não sabia o que falar.
- Isso é difícil – Alcina suspirou e segurou uma das mãos de Ella na sua, pareceu ainda menor e mais frágil – Claro, é sempre melhor quando você pode me responder, draga mea, mesmo que seja para testar meus limites e me desafiar.
Alcina balançou a cabeça e limpou algumas lágrimas que lhe escaparam, era a primeira vez que se permitia chorar em anos.
- E como você fez isso! Sempre tentando ir mais longe, empurrando com seu jeitinho até conseguir derrubar minhas barreiras. Você conseguiu amolecer meu coração de uma forma que apenas minhas filhas já conseguiram e agora tenho até mesmo Judith – Alcina riu baixinho ainda que o sorriso não chegasse aos seus olhos – Ela me chamou de mamãe a propósito, e chegou aqui desesperada por ajuda para você, mesmo sentindo tanto medo ela conseguiu... Judith é igualzinha a você, tão teimosa e corajosa quanto! Como eu não poderia amar uma versão pequena de você?
Fez uma pausa para respirar fundo e conseguiu controlar as lágrimas, antes de continuar a falar acariciou a face descorada de Ella e suspirou mais uma vez.
- Eu deveria ter lhe dito isso também e sinto muito por não ter feito, acho que gostaria de saber que eu te amo. Não tenho ideia de quando comecei a me sentir assim, eu não amo facilmente e acho que sabe bem disso, mas acho que aconteceu próximo ao seu aniversário... Cassandra e Bela estavam rindo juntas, Daniela fazia beicinho por ter sido chamada de criança e você a abraçou; eu sei o que minhas filhas podem parecer aos olhos humanos e também sei que elas se amam, mas muitas vezes as duas deixam Daniela para trás por ser a mais nova e não ser a melhor das lutadoras, e então você a consolou como se ela fosse uma garotinha que perdeu o brinquedo preferido; e elas também te amam, sabia? Até mesmo a Cassandra, do jeitinho dela.
Ella continuou tão imóvel quanto antes, nenhum sinal de que estaria sequer próxima de despertar e aquilo estava confundindo Alcina como ácido.
- Eu nunca disse que te amo mesmo sabendo que você queria, talvez até mesmo precisasse, ouvir isso de mim... Mas e-eu não consegui, não importa quantas vezes tenha tentado, e acredite em mim quando digo que não é porque a amo pouco. A verdade é que tem tantas coisas que nunca te contei, que não houve tempo o suficiente e eu sempre pensava “amanhã”.... – Alcina engasgou levemente – E olha a ironia, talvez não tenhamos um amanhã.
Enquanto falava, Alcina acariciava os cabelos de Ella e a olhava com uma ternura que ninguém, além de suas próprias filhas, jamais fora capaz de testemunhar. Esses momentos eram reservados para poucas pessoas.
- Precisamos cortar seu cabelo, draga mea – Alcina riu baixinho mesmo entre lágrimas – Há tantas coisas que jamais tive a chance de te contar, quando se vive tanto tempo quanto eu existe a tendência a acumular coisas, memórias e pessoas que vem e vão; admito que algumas dessas coisas ocultei de forma deliberada, por não saber como contar e também por egoísmo, mas não existe hora melhor do que o agora, não é?
“Você sabe que houve outras antes de você, sempre soube na verdade, mas o que não tem ideias é de que já amei outra humana. Isso foi há muito tempo, antes das meninas chegarem, e ela se chamava Emilly; assim como você, estava sempre tentando salvar o mundo, ela tinha esses cabelos vermelhos e olhos que pareciam mais pedaços de chocolate do que qualquer outra coisa e me vi terrivelmente apaixonada e, para minha surpresa, Emy devolveu meus sentimentos mesmo sabendo quem e o que eu era. Tivemos dois anos inteiros antes que ela se fosse depois de um surto de cólera, Emilly não pode ver as pessoas sofrendo no vilarejo sem tentar ajudar e, conforme o esperado, ela contraiu a doença; segurei a mão dela até o fim, assisti seu último suspiro e seguro sua mão até o fim. Esse é o problema com vocês humanos, são tão frágeis... Só voltei a sorrir quando Mãe Miranda deu-me as minhas filhas e por isso serei eternamente grato. Houve outras amantes, é claro, mas nunca um amor. Isto é, até você aparecer.”
Alcina fez uma pausa, dessa vez mais demorada ao decidir como continuar.
- Sou uma pessoa terrivelmente egoísta porque tudo o que eu quero é te pedir que lute e fique comigo e as garotas, que se esforce para continuar viva seja como for e custe o que custar – Alcina sorriu tristemente – Mas não posso fazer isso mesmo que signifique ter ainda menos tempo com você do que com Emilly, então se for preciso, se achar que precisa partir... Então vá em paz e sem arrependimentos, eu cuido da Judith pra você.
- Isso foi lindo, filha.
A voz suave, melodiosa como a de nenhum reles humana jamais conseguiria soar, fez Alcina pular com o susto. Mãe Miranda, em toda a sua glória, estava parada junto à porta do quarto e a encarava com o que parecia ser amor refletido em seus olhos; Alcina tentou secar as lágrimas rapidamente, sabendo que a mulher não tolerava fraqueza, mas surpreendeu-se ao ter a mão imobilizada, ela sequer havia notado que Miranda atravessara o quarto.
- Não se sinta mal por chorar por seu amor – disse gentilmente – Eu a entendo, filha.
- Eu estava apenas...
- Se despedindo – Miranda concluiu – Creio que não será necessário, mas gostaria de examiná-la se assim me permitir.
Notou então, e culpou as lágrimas por não atentar para tal fato, que Mãe Miranda parecia quase uma humana comum; apesar da aura de poder e persuasão, ela não usava a estola cerimonial ou o halo sobre a cabeça, a máscara dourada também fora abandonada, e suas vestes resumiam-se a um vestido preto elegante bordado com fios prateados, nada, exceto pelos olhos incomuns que demonstravam toda a sua magnificência, demonstrava estar na presença de uma deusa.
- Me desculpe por não chegar antes, minha filha – Mãe Miranda se aproximou e tocou o rosto de Alcina – Estou aqui agora e vou garantir que seu amor não sofra mais.
- Como? – Alcina perguntou bobamente – Mas e se ela se transformar?
- Ela já teria se transformado a essa altura... – Miranda deixou o olhar vagar para a figura inconsciente de Ella – Mas não o fez. De toda forma, lhe darei algo para a dor após examiná-la.
Alcina aquiesceu. Embora tivessem feito tudo ao seu alcance, sentia-se mais tranquila ao ter Mãe Miranda cuidando de Ella.
- Certo.
- Acho que suas filhas precisam de você, minha querida. Elleanor e eu ficaremos bem na companhia uma da outra por um algum tempo.
O pedido para que saísse do quarto estava implícito e Alcina hesitou, não desejava deixar Ella sozinha nem mesmo com Mãe Miranda, mas a lembrança das expressões desoladas de suas filhas a fez decidir pelo contrário.
- Volto em breve – disse ao se levantar – Por favor, seja gentil.
- Eu jamais faria mal ao amor da sua vida.
Alcina depositou um beijo rápido na testa de sua amada e devolveu o aperto de Miranda em sua mão, um gesto de conforto e amparo, antes de sair. Tudo parecia silencioso demais, Alcina sentia-se exausta apesar de saber que não conseguiria dormir mesmo que tentasse; já era noite lá fora e devia ser tarde, suas meninas deviam estar se preparando para ir para a cama e isso sem contar nos hóspedes que havia negligenciado, embora seus irmãos de criação não fossem exatamente visitas.
Encontrou Bela já usando pijamas, parada junto à porta do seu quarto, a filha mais velha parou no corredor e aguardou sua aproximação, o que Alcina fez e se inclinou para beijar-lhe o rosto.
- Ella está bem – Alcina afirmou com firmeza, se para si mesma ou Bela não sabia e tampouco se importava – Ainda está dormindo, mas não deverá demorar muito a despertar.
- Isso é bom – Bela aquiesceu e mordeu o lábio inferior – Foi o que tio Karl e tia Donna disseram, quero dizer, ele falou mais...
- Heisenberg está certo e dessa vez estou feliz que esteja.
Bela bocejou e piscou os olhos algumas vezes, ao que Alcina imediatamente a guiou para seu quarto e então até sua cama.
- Cassie está com a Agatha no quarto, acho que podemos dar as notícias para ela amanhã cedo. Daniela deve estar na biblioteca e Judith está brincando em seu quarto, e também ordenei as criadas que preparassem quartos para o tio Karl e a tia Donna.
Pelo menos uma coisa a ser feita, pensou Alcina.
- Iriei colocá-las na cama – Alcina prometeu ao cobrir a filha e aplicar um beijo em sua testa – Obrigada por toda a ajuda hoje, meu amor.
- Eu faria qualquer coisa por vocês.
- Sei disso, querida, mas estou cuidando de tudo.
Depositou mais um beijo na face de Bela e desejou-lhe boa noite, parte dela queria aninhar suas meninas na cama, todas seguras ao seu lado, mas isso seria impossível aquela noite.
- Eu te amo, Bela.
- Te amo, mãe.
Alcina deixou-a à sós e saiu do quarto. Por mais que quisesse verificar todas as filhas, Cassandra estava ocupada com a namorada e Alcina sabia reconhecer quando dar um passo atrás para a independência das filhas; pelo menos ela tinha uma filha cabeça caçula jovem o bastante para que não precisasse se procurar em ser trocada tão cedo. Entrou no quarto de Judith e surpreendeu-se ao encontrá-la, de fato, brincando como Bela havia lhe avisado, o que a surpreendeu foi ver que estava tomando cházinho imaginária com Angie.
A boneca falante de Donna ocupava uma das pequenas cadeiras ao redor da mesa onde o conjunto de chá estava posto, Judith ocupava a cadeira do lado oposto e, notou Alcina, Coraline também tinha um lugar à mesa, assim como um ursinho e uma boneca qualquer.
Angie levou a xícara à boca de madeira e fingiu tomar um longo gole, a pequena xícara de porcelana parecia se encaixar muito bem em seus dedos, e Alcina pigarreou para chamar a atenção das duas.
- Sinto muito, querida, é hora de ir para a cama.
- Mas já? – Judith gemeu – Estou brincando com a minha nova amiga!
- E estávamos nos divertindo muito antes da sua chegada – Angie retrucou – E eu até lhe dei uma boneca nova, uma que eu mesma fiz com um pouquinho de nada da ajuda da Donna.
Alcina notou, com horror, que a boneca que ocupava a quarta cadeira ao redor da mesa pequena usava um vestido branco completamente sujo, ou foi pintado para dar tal impressão, e além da pele de coloração estranha, como se fosse um zumbi ou algo assim, a boneca não tinha olhos e era possível ver o espaço oco dentro da sua cabeça.
- Essa é a Dolly – Judith a apresentou – Eu gostei dela.
É claro, Judith tinha um gosto peculiar para bonecas e se interessava pelas mais estranhas sem dar a mesma importância para as belas bonecas que Alcina comprava para ela.
- Angie, é melhor ir, tenho certeza que Donna está sentindo sua falta.
A boneca de madeira se levantou e cordialmente apertou a mão de Judith, como se estivessem em uma reunião do chá muito importante, e então acenou um breve adeus para Alcina antes de correr loucamente pelo quarto, guinchando feliz, e sair pela porta. Dado que Alcina não havia visto a boneca assombrosa, assumiu que ela deveria estar escondida na mochila que Angie carregava em suas costas ao chegar ao castelo, provavelmente após observar que Donna vinha lhe fazendo novas bonecas.
- Fiz algo errado?
Judith parecia nervosa, torcendo as mãos sobre o colo, e Alcina se lembrou de tudo o que a garotinha havia passado.
- Não, querida – estendeu os braços para a criança que caminhou lentamente em sua direção, Alcina puxou-a para seu colo e a embalou ternamente – Você não fez nada de errado.
- Como a Ella tá?
Alcina precisou pensar bem antes de responder.
- Bem. Ella ainda está dormindo, mas irá acordar assim que recuperar as forças.
- Que bom
A criança tinha curativos limpos das mãos e provavelmente um idêntico nos joelhos, uma prova cabal de sua coragem em frente a um desafio que faria alguns adultos chorarem de medo; Alcina acariciou os cabelos macios e percebeu que Judith também precisava de um corte de cabelo, além de algumas aulas de montaria para evitar esse tipo de acidente, mas tudo isso seria providenciado em um futuro próximo.
- Hora de dormir – Alcina determinou – Se Ella soubesse que está acordada até tão tarde...
Deixou a sentença morrer. Alcina não estava acostumada a ter uma criança pequena como Judith e precisava se policiar em algumas coisas, principalmente porque a menina precisaria de regras. A criança não discutiu, sequer tentou argumentar quanto a hora de ir para a cama, apenas escorregou do colo de Alcina para o chão e pegou suas duas bonecas sob os braços para levá-las para a cama; Judith apertou algo no peito de Dolly, a boneca zumbi, e sorriu quando uma voz muito parecida com a de Angie soou ao dizer “estou observando você!”.
- Tem certeza que quer levar essa boneca pra cama?
- Sim! – Judith as colocou sobre o colchão e as encobriu – Eu gosto das minhas bonecas bonitas, mas todo mundo também gosta delas.
- Não entendi o que quis dizer, querida.
- Todo mundo ama as bonecas bonitas e não amam as que são diferentes, mas eu amo e não posso deixar elas sozinhas. São como a Angie, estranhas e legais.
Alcina já devia esperar que Judith amaria Angie, uma boneca falante um tanto quanto insana que usava um vestido de noiva puído, não sabia como pode esperar algo diferente da sua filha caçula.
- Eu entendi, querida.
Colocou Judith na cama com suas bonecas pavorosas, não iria mais discutir suas preferências após receber uma resposta tão eloquente e cheia de sentido vinda de uma menininha que já havia sofrido na vida por não ser amada por seus pais; agora Judith tinha uma mãe e uma família que a amavam, mas a lição já havia sido aprendida.
- Eu queria que estivesse comigo hoje, mamãe.
- Eu sei, meu anjo... – Alcina suspirou e acariciou os cabelos da filha mais uma vez – Amanhã falaremos sobre tudo o que aconteceu, mas agora você precisa descansar. Eu sempre protegerei você e suas irmãs e não deixarei que nada de ruim aconteça.
- Eu sei, mamãe – Judith sorriu e abraçou suas bonecas, uma sob cada braço – Você é a melhor!
Alcina tentou, em vão, não sentir-se muito exultante com aquilo mas foi impossível não se orgulhar.
A porta do quarto se abriu e Daniela a atravessou carregando um urso de pelúcia e um livro em capa dura.
- Vim dormir com a Judith – Daniela titubeou – Eu posso?
- É claro que sim, filha.
De qualquer forma, Daniela e Judith passavam mais tempo tendo pequenas festas do pijama do que ela poderia contar, então uma noite a mais não poderia fazer mal. Alcina abraçou e beijou Daniela, e garantiu que Ella ficaria bem, antes de colocá-la na cama e lhe dar um beijo de boa noite; sua filha podia parecer uma mulher feita, mas ainda era sua garotinha e Alcina faria qualquer coisa por ela.
Após dizer que as amava e que não deviam pular na cama quando se fossem, saiu do quarto com o coração um pouco mais leve com a certeza de que de alguma forma tudo voltaria a funcionar como antes.
A sensação de segurança e tranquilidade a abandonou assim que viu Mãe Miranda esperando-a no corredor, sem dizer uma palavra a mulher começou a andar como se esperasse que a Alcina a seguiria sem questionamentos, o que ela fez; desejava e precisava de respostas, e se essa fosse a maneira de consegui-las então seguiria o acordo não verbal entre elas.
Mãe Miranda adentrou seu escritório e esperou por ela, ao entrar Alcina percebeu que havia uma bandeja com uma garrafa de seu vinho e uma taça.
- Tomei a liberdade de dar ordens a uma das suas criadas, você precisa disso agora, minha filha.
Sentindo-se cansada, completamente exausta, Alcina não discutiu. Sentou-se em uma das poltronas, mas não tocou no vinho e Mãe Miranda não insistiu.
- Como ela está?
- Bem, ela é forte – Mãe Miranda andou calmamente pelo aposentou e sentou-se no sofá defronte a Alcina, cada um dos seus movimentos parecia calculado e cuidadoso – Apliquei algo que vai ajudar com a dor e ajuda-la a se recuperar, mas isso significa que vai levar mais tempo para Ella acordar; também deixei um frasco ao lado da cama, dê-lhe dois comprimidos se a dor ficar muito ruim mas nada além disso.
- Certo – Alcina respondeu sem emoção alguma na voz. Sentia-se grata por Mãe Miranda, mais do que conseguia expressar, mas naquele momento estava apenas exausta – Não sei como agradecê-la por isso.
Permaneceram em silêncio absoluto por quase um minuto inteiro, no qual Alcina só pensava que precisava retornar ao quarto e verificar no que Ella se transformara em sua ausência. Como sempre acontecia, Mãe Miranda pareceu lê-la como um livro aberto.
- Elleanor não se transformará em uma fera, posso lhe garantir isso. Soube no momento em que a vi, ela é diferente... – Mãe Miranda deixou sua voz morrer aos poucos, mas rapidamente se recuperou – A maioria das pessoas se transforma ainda nos primeiros minutos e aqueles que não conseguem morrem, mas Elleanor reagiu de modo inesperado.
- Como assim?
- Eu diria que ela se adaptou, seu corpo ficou enfraquecido pelo ferimento e perda de sangue mas isso é tudo.
Alcina se sentiu zonza por alguns segundos.
- Ela é imune ao cadou?
- Não exatamente. Precisarei colher amostras de sangue, apenas quando ela se sentir melhor e disposta é claro – Miranda garantiu para tranquilizá-la – Mas a minha teoria é que de alguma forma Elleanor se adaptou, seu corpo não se permitiu ser contaminado pelas feras e ainda conseguiu sobreviver; lycans são experimentos fracassados que não tiveram uma ligação insignificante com o cadou, então pode ser necessário estudar uma nova forma de fazer dar certo para ela.
- Está pensando em infectar Ella com o cadou? – Alcina tentou manter-se sob controle – Por isso veio até aqui?
Miranda sequer pestanejou com a demonstração de raiva.
- Acalme-se, filha. O que aconteceu hoje só demonstra que Elleanor é diferente de uma forma que ainda não entendemos, seu corpo rejeitou uma forma primitiva e fracassada do cadou, mas as chances de sucesso com uma fonte limpa e eficaz, por assim dizer, são grandes.
- Ela ainda pode ser incompatível.
- Eu não apostaria nisso, minha filha.
Alcina assistiu incapaz de se mover Miranda levantar-se e caminhar em sua direção.
- Prometo que descobrirei a melhor forma de realizar o procedimento, de forma que ela não sofra as dores da transformação – Mãe Miranda acariciou seu rosto e sua voz soou doce e amorosa como a de Alcina ao falar com suas filhas – Estou fazendo isso por você, minha filha preferida, a mais importante e amada... Não desejo vê-la sofrer a perda de mais uma companheira, meu coração se partiria ao vê-la machucada de tal forma; por isso desejo transformar Elleanor, torná-la parte da nossa família, para que esteja sempre ao seu lado. Quando sua primeira companheira partiu, dei-lhe as garotas porque não suportava vê-la tão triste e sem conseguir sorrir, não correrei este risco novamente.
O alívio a inundou. Mãe Miranda estava apenas preocupada com ela, demonstrando mais uma vez como era magnânima e se importava com Alcina até mesmo mais do que com seus supostos irmãos; por isso lhe era tão fiel, a filha e seguidora mais devota, Mãe Miranda sempre a tratara de forma especial e lhe dera tudo o que poderia desejar, agora mais uma vez...
- Eu entendo, Mãe Miranda, e sou grata por isso.
- É claro que sim, você é uma ótima filha. Perfeita.
Alcina regozijou-se da atenção, do carinho dispensado especialmente a ela. Mãe Miranda beijou sua testa numa rara demonstração física de seu afeto, e os olhos da condessa encheram-se de lágrimas.
- Se Ella assim desejar...
- Ella vai, minha filha, acredite em mim. Quando chegar a hora Elleanor aceitará seu destino sem pestanejar, ela a ama e desejar permanecer ao seu lado para sempre tal qual é o seu desejo; pude ver isso em seus olhos, ela não me escondeu nada, e devido à natureza de seus sentimentos decidi aceitá-la em nossa família. Como eu poderia negar alguém que tanto ama a minha filha mais especial?
- Obrigada, Mãe Miranda – Alcina suspirou – Isso é...
- Apenas o necessário. Que mãe neste mundo não quer bem aqueles que amam seus filhos? Elleanor a ama e faz feliz, logo é parte de minha família e assim será tratada.
Mãe Miranda inclinou-se e beijou a face de Alcina mais uma vez, um feito inédito em todas aquelas décadas.
- Agora preciso ir, filha. Lembre-se do que eu disse sobre os remédios e quando Elleanor acordar, porque ela vai, insista que coma algo leve e nutritivo.
- Farei isso.
- Cuide bem dela, filha, tenho a sensação de que Elleanor chegou para mudar tudo.
E se foi, deixando Alcina a sós com seus pensamentos. Havia uma chance – ótimas chances de acordo com Miranda – que Ella se tornasse imortal como eles, deixaria de ser tão frágil e quebrável, e melhor ainda, poderiam ter uma vida juntas; quanto mais pensava nisso, mais vontade de chorar tinha. Nos últimos tempos, ao pensar a respeito, decidira que não desejava infligir a Ella a possibilidade de ser infectada pelo cadou, não havia como prever os efeitos colaterais, mas agora... Havia esperança!
Alcina voltou para seus aposentos onde ordenou a uma das criadas que trocasse a roupa de cama, durante todo o tempo segurou Ella em seus braços com todo o cuidado para não perturbar seu descanso ou tocar seus ferimentos; seu torso ainda estava envolto em bandagens e ela permaneceu inconscientemente, mas após a visita de Mãe Miranda Alcina se sentiu muito mais confiante se que tudo daria certo.
- Abençoada seja, Mãe Miranda – murmurou Alcina sem tirar os olhos da figura desacordada em seus braços – Você vai ficar bem, meu amor.
Assim que a criada saiu, Alcina depositou Ella sobre a cama e a cobriu com os cobertores limpos, sua palidez havia melhorado consideravelmente e não tinha febre, o que eram bons sinais.
Um pouco mais tranquila, Alcina tomou seu lugar de costume na cama e tentou ler, mas não obteve sucesso ao concentrar-se e acabou desistindo pouco depois; seus olhos mantiveram-se bem treinados em Ella.
Assim as horas se passaram sem qualquer sinal de que Ella poderia despertar em breve, Alcina não conseguiu se afastar e permaneceu onde estava vez ou outra acariciando seu rosto e murmurando palavras reconfortantes. Noite adentro, enquanto os únicos sons a preencherem seus aposentos eram o crepitar do fogo na lareira e as corujas piando lá fora, Alcina velou o sono antinatural de Ella e torceu para que despertasse logo.
Apesar das palavras de Mãe Miranda, de suas garantias, Alcina começou a preocupar-se com a demora e fazendo jus a sua natureza, ou talvez houvesse sentido as ondas de preocupação que a condessa emanava, Ella gemeu em seu sono se mexeu parecendo desconfortável.
- Alcina...
- Shh... Estou aqui, meu amor.
Ella estremeceu e abriu os olhos, as orbes azuis brilharam e Alcina de impediu de ofegar. Ela estava viva, consciente e ficaria bem!
- Estou aqui, amor – Alcina segurou seu rosto com delicadeza e sorriu – Como se sente?
- Bem...
Sua voz estava rouca e parecia ser difícil falar, mas foi um dos sons mais lindos que a condessa já ouviu. Alcina alcançou o copo sobre a mesa de cabeceira e ajudou Ella a sorver alguns goles, então deitou-a de volta no travesseiro e lhe acariciou a face.
- Judy?
- Ela está bem – Alcina garantiu e continuou a falar suavemente: - Ela foi muito corajosa.
- Ela é. As garotas?
- Todas preocupadas com você. Heisenberg está aqui, Donna também... – Alcina listou e sorriu – Sei que sempre digo que você testa minha paciência e meus limites, mas dessa vez foi demais, draga mea.
Ella riu baixinho e Alcina achou seu sorriso maravilhoso, perfeito, embora a jovem parecesse meio aérea como se estivesse distante e lembrou-se da medicação para dor; Mãe Miranda avisou que levaria algum tempo para que acordasse, como Ella ainda não demonstrava sinais de incomodo era provável que a medicação ainda estivesse agindo em seu sistema.
- Eu não gosto de decepcionar você – Ella brincou com um sorriso bobo no rosto – Sempre preciso ir além.
- Não assim, meu amor.
- Não assim – Ella concordou bobamente, mal conseguindo manter os olhos abertos – Eu estava procurando por você, mas parecia tão longe...
- Estive aqui o tempo todo, meu amor.
- Doeu.
- Sei que doeu, precisamos limpar seus ferimentos e cuidar de você. Por isso todos estão aqui.
Ella pareceu despertar, não muito, mas seu olhar ganhou um pouco mais de foco.
- Você falou comigo? Falou? Alci... – Ella suspirou e afundou contra os travesseiros – Eu não me lembro, mas juro que te ouvi falando comigo.
Alcina riu baixinho e escovou uma mecha de cabelo para longe de seu rosto.
- Falei com você por um bom tempo.
- Precisamos conversar tudo de novo.
- Faremos isso, draga mea.
Haveria tempo, elas teriam a chance de repassar todas aquelas conversas unilaterais e Alcina abriria seu coração novamente; dessa vez não perderia a oportunidade, não quando o destino tinha lá suas voltas e humor ácido para com a vida de todos.
- Vou voltar a dormir agora – Ella anunciou já fechando os olhos – Não vá embora, Alci.
- Não vou a lugar algum, draga mea. Mas antes...
- Sim?
Ella já tinha os olhos fechados, sua respiração começava a se acalmar e logo estaria entregue ao mundo dos sonho; Alcina segurou seu rosto da forma mais delicada que conseguiu e sorriu quando a jovem abriu os olhos, o brilho azul a contemplou como um oceano profundo e inexplorado.
- Eu a amo – Alcina sussurrou ao encostar a testa junto a da jovem – Me desculpe se demorei muito a dizer isso, mas eu te amo com todas as minhas forças.
O sorriso no rosto de Ella poderia facilmente iluminar uma cidade inteira.
- Eu também a amo, Alcina.
O beijo foi calmo e breve, mas exatamente o que precisavam naquele momento; o toque, mesmo ínfimo, foi o suficiente para garantir a Alcina que Ella estava definitivamente viva, seu amor ficaria bem e segura ao seu lado. Afastou-se e sorriu ao notar que apesar dos olhos fechados, Ella tinha um sorriso singelo no rosto.
- Não me deixe, Alci.
O pedido não passou de um sussurro e Ella adormeceu sem esperar por uma resposta, mas Alcina estava mais do que disposta em atendê-lo.
- Não vou a lugar algum, draga mea. Estarei sempre ao seu lado, entendeu? – disse em voz baixa para não perturbar o sono da jovem – Para sempre.
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