Quando a primavera chegou elas começaram a planejar a cerimônia de casamento de Daniela e Naomi, algo simples e pequeno apenas para as duas; Ella se ocupou em ajudar como podia, todas concordaram que seria uma distração bem vinda e com tantas tragédias recentes era difícil não se animar com alguma coisa, além disso era bom ter uma distração e Ella estava disposta a agarrar qualquer oportunidade de comemorar os bons momentos.
Todas elas pareciam ter entrado em um acordo tácito e silencioso em não mencionar Theodora em voz alta, Ella e Aldina o faziam quando estavam a sós e não duvidavam de que suas filhas também o fizessem, também respondiam todas as perguntas de Alice mas era só; evitavam falar nela durante os jantares em família ou qualquer ocasião em que o clima deveria ser leve e descontraído, Ella e Alcina nem sempre conseguiam controlar suas emoções e por isso preferiam conversar sozinhas. Ella também preferia que Alice tivesse momentos saudáveis e felizes em família sem parecer que estava constantemente sob a sombra do desaparecimento da irmã; era como fazer malabarismo com o sofrimento, mas infelizmente para elas não havia mais opções.
Ainda assim, Ella se levantava todos os dias e colocava um sorriso no rosto pelas suas filhas, principalmente por Alice que ainda era tão pequena.
Um dia ela cresceria e aí talvez pudesse entender, então teriam uma conversa sincera, mas por enquanto Ella e Alcina concordavam que a filhinha precisava de alguma normalidade para crescer.
Continuaram com o treinamento e Alice começou a ter mais controle, ao passo em que isso as tranquilizou também trouxe mais preocupações, e por sorte ela não tinha as mesmas inclinações vingativas que Theodora e nunca precisaram lidar com uma criada correndo em chamas pelo castelo.
Pelo menos duas vezes por semana Ella a levava ao vilarejo para brincar com o filho de Klaus e se certificava de manter um olho nos dois durante todo o tempo, não confiaria em mais ninguém uma segunda vez não importava quantas vezes lhe dissesse que estava tudo bem. Tudo estava muito bem no dia que Theodora desapareceu, e Ella não estava disposta a perder outra filha e faria o que fosse preciso para assegurar que todas estivessem em segurança. Algumas vezes Agatha a acompanhava, e quando isso acontecia quase sempre Cassandra acabava aparecendo por ali, pairando protetoramente à distância como se quisesse garantir que todas ficassem bem.
O desaparecimento de Theodora deixou marcas irreparáveis em cada uma delas, marcas essas que não poderiam ser vistas mas continuavam a doer e sangrar dia após dia. Se não tivesse Alcina ao seu lado, Ella não saberia como sobreviver a tudo aquilo, e a recíproca era verdadeira porquanto precisavam de apoio mútuo.
De alguma forma, observar Alice brincando enquanto sorria facilitava as coisas e aquele sentimento que pesava seu coração se tornava mais leve. Suas risadas misturadas as de Damian a faziam se lembrar que ela ainda estava viva e tinha uma vida longa pela frente.
Não demoraria para que o sol iniciasse sua descida no horizonte, elas precisariam voltar para casa o mais rápido possível antes que Alcina se preocupasse e mandasse metade da família atrás delas, ainda assim Ella se permitiu mais alguns segundos para assisti-los; Damian e Alice brincavam juntos ao empurrar pequenos caminhões de madeira, os animais e os blocos de madeira foram abandonados após algumas horas e pareciam felizes em não se misturar com as outras crianças, de qualquer forma Ella preferia assim.
- Alice, está na hora de ir.
- Tão rápido? Acabei de chegar.
Ella se virou e sorriu ao ver Klaus se aproximando, estava todo sujo ao voltar do trabalho na pequena propriedade que pertencia a sua família. Alice e Damian não lhe deram atenção,
- Precisamos ir antes que minha esposa fique mais preocupada.
- Só pode ir depois de me dar um abraço.
Klaus avançou alguns passos ao erguer os braços para abraçá-la ao que Ella afastou-se rindo.
- Não senhor, você está fedendo!
- Que eu me lembre, minha senhora, você costumava cheirar muito pior depois de um dia inteiro caçando na floresta.
- Sim, você disse bem... “Costumava” – Ella reforçou a palavra – Talvez tenha batido a cabeça muito forte quando levantou essa manhã, mas agora sou uma condessa.
- Minhas desculpas, minha senhora – Klaus fez uma reverência exagerada em sua direção – Todo o meu respeito a Condessa Dimitrescu.
A gracinha a fez rir, estar com Klaus era leve e Ella o agradeceu por isso.
- Precisamos mesmo ir, se Alice não estiver pronta para o jantar na hora certa Alcina vai ficar preocupada.
- Vou tentar chegar mais cedo da próxima vez. E minha esposa?
- Está lá dentro.
- Você pode entrar, sabia? Nada vai acontecer.
- Também achei isso na última vez.
- Entendo.
Trocaram um aperto de mão e Klaus acenou uma última vez antes de seguir até à casa e erguer o filho nos braços.
- Alice.
Não precisou chamar mais uma vez, Alice disse tchau para o amigo e correu tão rápido quanto suas perninhas permitiram; Ella agarrou sua mão e a manteve em um aperto firme para que não tentasse se afastar, não que Alice fosse do tipo que gostasse de fugir mas ela não estaria se arriscando assim.
- Vamos pra casa, mamãe?
- Isso. Quer que eu te carregue?
- Não, eu posso andar.
Uma parte dela se sentiu mal, Alice estava crescendo rápido demais para seu gosto e logo não se cansaria de andar por aí e Ella não precisaria carregá-la como antes.
O dia estava bonito, o sol brilhava contra o céu azul e apenas algumas nuvens pairavam aqui e ali. Um típico dia de primavera, tão bonito quanto poderia se esperar após um inverno rigoroso, e o calor foi bem vindo; tudo parecia mais colorido após meses mergulhados no branco profundo da neve e até mesmo os aldeões pareciam preparados para festejar, o festival aconteceria em alguns dias e todo mundo parecia ansioso para ajudar no que fosse preciso.
Nenhum dos aldeões lhe dirigiu a palavra, os mais corajosos (ou talvez amedrontados) fizeram reverências em sua direção antes de se afastar o mais rápido que conseguiam, outros sequer olhavam em sua direção. Uma jovem grávida passou por elas e envolveu a barriga com as mãos como se tivesse medo que Ella a atacasse para roubar o bebê que ainda estava em seu ventre, a mulher praticamente correu para se afastar mas foi o bastante para que pudesse reconhecê-la como a esposa do amigo de Judy. Se alguns anos atrás Ella achava que Judy acabaria se casando com Dimitri, essa ideia foi morta e enterrada; o rapaz logo teria o primeiro filho, e Ella se perguntou se Judy sabia disso, e se sentiu bastante aliviada por não ter dado certo e por não ser a sua filha grávida.
A visão a jovem grávida pareceu deixar Alice curiosa.
- Por que a barriga dela é grande assim?
- Ela está grávida e vai ter um bebê.
- Tem um bebê lá dentro? – Alice deu um pulinho ao seu lado – Que legal! Podemos ter um bebê no castelo?
- Não.
- Eu ajudo a cuidar dele! Por favor, mamãe!
- Não – Ella respondeu de forma firme – Você já tem irmãs o suficiente.
Totalmente incomum para o seu comportamento, Alice parecia prestes a fazer uma birra bem no meio da estrada; Ella pode notar como seus olhos faíscaram em desafio e em como parecia completamente descontente por algo ter lhe sido negado de forma tão direta.
- Mas eu quero!
- E eu disse que não, você não vai ganhar outra irmã e nem um irmão.
- Por que não? Damian tem uma irmã mais velha e disse que também vai ganhar um irmão bebê.
- E você já tem cinco irmãs mais velhas, é mais do que o suficiente.
Alice não discutiu, sequer insistiu no pedido, mas Ella sabia que seria questão de tempo para que verbalizasse seu desejo mais uma vez.
- Olha, por que não pede pra sua mãe? – Ella sugeriu – Quem sabe ela concorda com você.
A ideia de Alice se sentir vitoriosa, entre as duas Alcina era a que mais estava inclinada a fazer-lhe todas as vontades.
- Eu vou.
Por hora o assunto foi esquecido, Alice ficou mais interessada em apontar para cada coisa que lhe chamava a atenção desde uma flor colorida até uma libélula que sobrevoava uma poça de água; mesmo com todas as desventuras aquele pingo de magia e encantamento infantil não a deixou, Alice ainda era capaz de ver algo incrível onde Ella só conseguia enxergar o ordinário do dia a dia.
Faltava bem pouco para chegar o castelo quando Alice balançou sua mão para lhe chamar a atenção.
- Me carrega?
- Está cansada?
Alice acenou e Ella a levantou nos braços.
- Pronto... Viu só, você é o meu bebê.
Chegaria o dia em que Alice não precisaria dela daquela forma, em que a angústia em seu peito superaria o medo do monstro que vivia embaixo da cama e Ella teria que lhe prestar conforto para outras mazelas; um dia, Alice teria seu coração partido, e que Deus tivesse piedade da alma do infeliz que fizesse isso, mas por enquanto ainda era o seu bebê.
Alice abraçou seu pescoço e deitou a cabeça em seu ombro, ao que Ella sorriu e aspirou o cheiro de bebê que ainda permeava os cabelos loiros.
- Você ainda é o meu bebê.
Seguiram em silêncio pelo resto do percurso, não estavam longe de casa e não tardaram a cruzar os portões imponentes; uma criada que cuidava dos jardins se aproximou rapidamente e perguntou se Ella precisava de ajuda, negou e agradeceu a preocupação, mesmo depois de tanto tempo – e das Dimitrescu terem se “acalmado”, por assim dizer – as criadas ainda se sentiam mais seguras ao receber ordens de Ella, Agatha ou Naomi, que voltara a assumir sua ocupação de ordenar todo o corpo de trabalho do castelo, só Velaska não se importava o suficiente.
Assim que entraram no castelo, Ella colocou Alice no chão e deixou que andasse sozinha.
- Já era hora, estava começando a me preocupar.
Alice se virou na direção em que vinha a voz da mãe e sorriu ao vê-la.
- Mamãe! – gritou ao correr em direção a Alcina e abraçar suas pernas – Oi, mamãe.
Alcina a ergueu em seus braços e a abraçou.
- Mamãe, eu quero pedir uma coisa.
- E o que seria essa coisa?
Mesmo com Alice olhando bem nos olhos de Alcina, Ella conseguiu imaginar vividamente o sorriso confiante que devia ter tomado conta do seu rostinho; era muito difícil que Alcina lhe negasse um pedido, principalmente quando perguntava o que ela queria.
- Um bebê! Uma irmã ou irmão bebê.
O que fez Ella sentir uma pontada de desespero foi que Alcina pareceu realmente pensar a respeito.
- Pode ser uma boa ideia, querida – Alcina sorriu – Mas cuidar de um bebê não é fácil.
- Eu ajudo a cuidar dela. Ou dele!
- Tenho certeza que sim, mas sabe que um bebê precisa muito das suas mães o tempo todo – Alcina argumentou – Mamãe Ella e eu ficaríamos ocupadas com o bebê o tempo todo.
- O tempo todo?
- O tempo todo. Suas irmãs também, além da Agatha e todo mundo.
O silêncio contemplativo da criança durou apenas alguns segundos até que pudesse chegar a uma conclusão sobre o assunto.
- Acho que não quero mais um bebê.
- É, eu achei mesmo que não.
Alice segurou o rosto da mãe com as duas mãozinhas que pareceram muito pequenas em contraste com Alcina.
- Eu quero uma boneca nova, mamãe. Uma bem bonita.
- Ah, isso sim é um bom pedido – Alcina sorriu e beijou o rosto de Alice – Você pode ganhar uma boneca nova, mas antes precisa de um banho e roupas limpas. Onde está sua babá?
- Estou aqui, Lady Dimitrescu.
Irma adentrou o saguão principal com Judy à reboque, um dos motivos para ter levado Alice ao vilarejo foi para lhes dar algum tempo a sós e agora o dever estava de volta.
- Ótimo – Alcina colocou a filha no chão e lhe deu um empurrãozinho em direção à Irma – Leve-a lá para cima e lhe dê um banho, quero que lave os cabelos dela e que esfregue até esse cheiro sair. Alice está fedendo como aquelas pessoas imundas do vilarejo.
- Alci... – Ella a repreendeu – Não fale assim.
O desgosto de sua esposa pelas pessoas do vilarejo não lhe era estranha, de fato Ella já havia se acostumado e sabia que aquele sentimento jamais mudaria; Alcina já nasceu em berço nobre, foi criada para se ver como melhor do que os subalternos que deveriam servi-la e a ligação com Mãe Miranda não fez nada para melhorar isso, Ella a aceitava desse jeito mas temeu que a namorada de Judy se sentisse ofendida pelas palavras de sua esposa.
- Eu pensava assim quando Judy ia para o vilarejo, e me sinto assim agora, draga mea e isso não vai mudar – Alcina virou-se para Irma – Quero minha filha impecável até a hora do jantar.
- Sim, senhora.
Irma segurou a mão de Alice e a levou escada acima, antes de segui-las Judy lançou um olhar exasperado para as mães como se perguntasse se aquilo tudo era realmente necessário.
- Alcina.
- Nem uma palavra sobre isso, draga. Eu aceito que leve Alice para brincar no vilarejo, mas não que fique cheirando como um deles... E você também precisa de um banho.
Até pensou em discutir com sua esposa, mas acabou decidindo que aquele seria um caminho sem volta.
- Só não discuto com você porque também não gostava do seu cheiro quando estava grávida.
- Obrigada por reconhecer isso depois de seis anos.
- De nada, amor. Eu te amo.
Pelo menos tudo correu tranquilo até a hora do jantar, Alice estava limpa o suficiente para agradar Alcina e manter o seu bom humor, e Donna e Esmeralda se juntaram a elas, bem como Karl que apareceu de surpresa para visitar suas sobrinhas preferidas, provavelmente uma desculpa para comer, embora o homem fosse de fato bastante apegado as garotas; Karl a fez jurar que não contaria a ninguém que o viu brincando de cavalinho com Alice, e mesmo que Ella quisesse contar nem todo mundo acreditaria que Lorde Heisenberg estava engatinhando pelo chão do castelo enquanto Alice montava suas costas. Uma visão que, infelizmente, teria que manter para si mesma.
Depois que terminaram de comer e a louça foi retirada da mesa, Alice foi levada para o seu quarto pela babá para que pudesse se preparar para a noite já que teriam um grande dia pela frente; a criança reclamou um pouco, estava mais ansiosa para ficar com sua tia Donna, mas Irma lhe prometeu que poderiam brincar com suas bonecas antes de dormir e isso a convenceu. Assim que a menina desapareceu em companhia de Irma, Ella se levantou e caminhou até Alcina para pressionar um beijo em seu rosto.
- Vamos levar Naomi para uma taça de vinho, vocês vão ficar bem?
- É claro que sim, draga.
- Deixa eu reformular a pergunta, posso ter certeza que vocês não vão tentar se matar?
Karl riu e levantou a taça de vinho.
- Bem que ela gostaria!
Do outro lado da mesa, Daniela se levantou o mais rápido que pode para ajudar Naomi que sorriu com carinho.
- Obrigada, Dani. Mas eu consigo sozinha.
- Só que não tem motivos pra fazer sozinha, estou aqui pra isso.
Daniela beijou a testa de Naomi e Ella se sentiu orgulhosa da filha, e mesmo que Alcina tentasse disfarçar sabia que o sentimento era compartilhado por sua esposa.
Enquanto Esmeralda se assegurava que Donna ficaria bem, Ella beijou a esposa novamente e garantiu que a encontraria ainda acordada.
Ao saírem pode ouvir que Karl e Alcina iniciaram uma discussão, mas resolveu deixá-los resolverem sozinhos. Os dois eram grandes o suficiente e estava passando da hora de agirem de modo cordial um com o outro, Ella não esperava que se tornassem amigos, só que não destruíssem metade do castelo em uma das suas brigas.
Ella mandou que uma das criadas servissem o vinho na sala de ópera, então todas elas se reuniram nas poltronas confortáveis para beber e jogar conversa fora em uma noite agradável. Não era apenas Ella que precisava daqueles momentos em família, Naomi pareceu pálida durante todo o jantar e mal tocou na comida no que pode imaginar se tratar de uma crise de ansiedade.
Foi preciso algumas taças de vinho, mas Naomi finalmente criou coragem para verbalizar o que parecia gritar em voz alta dentro da sua cabeça:
- Estou nervosa com amanhã, não tenho ideia de como vai ser.
Agatha e Ella assentiram, até mesmo Esmeralda lançou um olhar de compreensão para Naomi, e Velaska foi a primeira se pronunciar.
- E o que está te preocupando, baixinha?
- Amanhã e tudo isso – Naomi respondeu ao ignorar a provocação – Não vou nem poder andar direito até a Daniela.
Desde o “incidente” – era assim que Ella vinha chamando aquele dia fatídico – Naomi não conseguiu se recuperar completamente; de acordo com Miranda a bala que perfurou Naomi se despedaçou dentro dela e um dos estilhaços atingiu um nervo importante, o que comprometeu sua mobilidade da perna direita e embora pudesse andar sem a ajuda da bengala, continuaria a mancar pelo resto da vida.
Nenhuma delas sabia como garantir que estava tudo bem ou que conheciam a sua dor, ainda que cada uma tivesse enfrentado sua cota de sofrimento ainda eram experiências bastante distintas entre si.
- Vai ser perfeito – Agatha garantiu – E você vai estar linda.
Naomi balançou a cabeça devagar.
- Foi o que a Dani disse, mas...
- Sem mas. Se Daniela disse é o que importa pra vocês.
Ella levou a mão à nuca ontem pode sentir uma parte da cicatriz que cruzava suas costas, lembrava-se exatamente da aparência anterior quando ainda era humana e de como desgostou dela.
- Sei como é quando as marcas no seu corpo ainda doem, mas acredite em mim, Daniela te ama da mesma forma que você a ama, com as imperfeições e tudo mais.
- Obrigada.
Às vezes a normalidade de tudo ainda a pegava desprevenida, como se algo tão simples quanto a realização de um casamento fosse completamente irreal naquelas circunstâncias.
- Você vai ser uma noiva linda – Esmeralda garantiu – Tenho certeza que todas foram.
Velaska pigarreou antes de tomar um gole de vinho.
- Na verdade, Bela e eu não tivemos uma cerimônia de casamento.
Agatha concordou com um aceno.
- Nem Cassandra e eu, ela queria algo mais privativo então trocamos alianças e votos na privacidade do alto de uma das torres. Teve um significado especial pra nós duas e foi bom de um jeito único. Ela se ajoelhou pra me dar uma aliança e tudo, foi romântico.
- Isso é bom – Esmeralda concordou – Não sei se Donna e eu chegaremos a isso algum dia, mas estarei sempre por aqui enquanto ela me quiser por perto.
- E esperamos que seja para sempre – Ella sorriu – Você já faz parte do grupo.
A essa altura já estavam na segunda garrafa de vinho e não demorariam a abrir a terceira, aquela era uma safra bastante especial, Alcina havia garantido que poderia deixar até mesmo ela – e Karl! – bêbados, mas Ella imaginou que sua esposa estava apenas exagerando para ter certeza que não beberiam demais.
Além disso, não precisava de muito vinho para fazer Velaska falar.
- Bela e eu não tivemos uma cerimônia, nem usamos uma aliança – disse ao balançar a taça e observar o vinho rodando lentamente como se fosse a coisa mais interessante do mundo – Concordamos que ela manda e eu obedeço, pra mim está ótimo desse jeito.
Nem mesmo Esmeralda conseguiu segurar a risada, e no segundo seguinte estavam todas gargalhando livremente e com os rostos corados, ao que Velaska deu de ombros.
- Se não fosse pra obedecer minha mulher, eu nem me casaria. Qual o sentido? Ela me ama, eu amo ela e ela manda em mim. É assim que funciona.
- Eu concordo – Agatha ergueu a taça para brindar com Velaska – Mas no meu caso, a Cassandra é quem obedece.
Uma nova onda de risadas as tomou, mas Ella logo se recuperou e apontou para Naomi.
- Sua sorte é que a Agatha manda na Cassandra, ou estaria morta e não teríamos um casamento amanhã! – Ella contou para Esmeralda: - Uma vez Naomi apontou o dedo na cara da Cassandra para proteger Daniela, se Agatha não tivesse entrado no meio das duas não sei o que teria acontecido...
Deixou as palavras morrerem no ar, não precisava explicitar o que teria acontecido para que todas pudessem imaginar mas Velaska achou que seria melhor fazer isso.
- Seria como assistir um gatinho indefeso lutando com um tigre adulto.
Naomi fingiu estar indignada com a comparação.
- Você não sabe disso, também tenho meu valor e poderia ter uma chance.
- Só se você entalasse na garganta dela e ela sufocasse até a morte.
Agatha descartou a possibilidade:
- Cassandra só se transformaria em um enxame e sairia dali, e depois voltaria pra terminar o serviço.
- É... Foi mal, mascote. Você não teria a mínima chance e acabaríamos o dia raspando o que restou de você no chão com uma pá.
- Isso se sobrasse alguma coisa – Ella riu.
Mesmo que Naomi se fingisse de chateada não conseguiu não rir com toda aquela situação.
- Isso não é justo! Ella é muito menor do que a mulher dela.
- E assim mesmo manda nela – Velaska apontou – O que é estranho e interessante ao mesmo tempo.
Ella negou.
- Eu não mando na minha esposa, nós temos uma relação saudável e ela sabe muito bem que às vezes é melhor concordar comigo.
Se Alcina havia passado por toda a gravidez sem que Ella tentasse cometer um homicídio sequer, significava que havia aprendido a lidar com uma esposa que, apesar de ter metade da sua altura, tinha pelo menos o dobro de determinação e teimosia.
Continuaram com as provocações até que a terceira garrafa fosse aberta, a essa altura até mesmo Ella tinha as bochechas coradas pelo vinho e Velaska havia perdido o último fio que prendia seu filtro.
- E Lady Beneviento? Ela manda? Obedece? Queremos saber.
Esmeralda, que claramente era a mais sóbria delas, apenas balançou a cabeça.
- Donna tem seus dias de introspecção nos quais prefere ficar sozinha, as únicas a terem permissão para entrar são Alice e Angie e eu respeito isso; em outros dias podemos ter longas e calmas conversas, mas no fim Donna é apenas delicada e merece ser amada.
Todas elas deixaram um “ount” escapar, completamente tomadas pela demonstração de amor que haviam acabado de presenciar.
Ainda assim Velaska insistiu, apenas mudando o alvo para Ella.
- Por que sua mais nova nora não está aqui? Se isso aqui é um grupo de apoio para mulheres que se relacionam com uma Dimitrescu, que aliás não seria nada sem mim – Velaska sorriu – A jovem Irma deveria estar aqui.
- Ela está com a Alice, é a babá dela.
- Mesmo assim, sua filha já deve estar dormindo e Irma poderia muito bem estar aqui.
Ella suspirou.
- Alice está demonstrando ter muito ciúmes da babá dela. Ela gosta da Irma, e está tentando fazer de tudo para manter Judy longe – Ella explicou: - Acho que Alice se apegou a ter alguém disponível para brincar, Irma é mais como uma amiga mais velha do que alguém que lhe dá ordens e isso está deixando Judy louca.
Agatha sorriu de forma carinhosa.
- E Cassandra está se sentindo vingada. Toda vez que Judy parece chateada, Cassie faz questão de lembrá-la sobre como ela ficava entre nós duas na cama.
As mulheres riram e Ella balançou a cabeça devagar.
- Além disso, é estranho conversar sobre essas coisas com a namoradinha da Judith.
Ao fingir indignação, Velaska colocou uma mão sobre o peito e ofegou.
- E Agatha, Naomi e eu somos o que? Você fala com todas nós.
- Sim, mas conheci Agatha quando cheguei aqui e as garotas me odiavam. Você conheceu a Bela quando ela passou a me considerar como mais do que uma refeição e Naomi chegou muito antes da Daniela começar a me chamar de mãe. Eu cuidei da Judy desde que ela nasceu, não quero saber sobre o que ela faz com a namorada.
- Nem eu – Agatha admitiu – Eu cuidei daquela menininha por anos. Pensar nela fazendo coisas... Faz com que eu me sinta enjoada e velha ao mesmo tempo.
Disso, nem mesmo Velaska e Naomi poderiam discordar.
- Ainda me lembro de levar Judy para o vilarejo – Velaska disse em tom saudoso – Nós apostamos se ela ia ficar com o menino ou a menina.
- O menino vai ser pai – Ella contou – Alice e eu estávamos voltando para casa quando vimos a esposa dele, está com uma barriga enorme.
- Sentiu alívio? – Naomi perguntou.
- Muito. Vocês nem podem imaginar o quanto.
- Bom – Velaska levantou a taça para fazer um brinde e proferiu: - À esposa grávida do babaquinha que é ex-namorada da Judy. E pela Judy ter terminado com ele e não ter engravidado.
Todas elas brindaram e continuaram bebendo, Esmeralda terminou sua taça de vinho e não voltou a enchê-la ao afirmar que estava em seu limite e não gostaria de ultrapassá-lo, queria estar bem o suficiente para checar Donna antes que se recolhessem no quarto que lhes fora preparado mais cedo; o comentário gerou um “ount” coletivo por todas acharem fofa a consideração com sua companheira, a verdade era que Donna e ela formavam um casal mais do que fofo. Naomi parou de beber, afirmando que não queria estar de ressaca no próprio casamento, mas Ella, Agatha e Velaska continuaram bebendo.
- Agatha! – Velaska praticamente gritou e fez com que a ruiva saltasse em sua poltrona – Conta pra gente, a Cassandra ainda gosta de te lamber naqueles dias.
Agatha riu, o rosto quase tão vermelho quando seus cabelos e balançou a cabeça.
- Sim!
- O-oh, agora está ficando bom. Vejamos... – Velaska balançou a taça – Você é ruiva lá embaixo também?
- Sim – Agatha sorriu ao terminar o vinho – E Cassandra adora.
- Ok, agora...
- Não, faça uma pergunta pra Ella pra variar.
Velaska balançou a cabeça.
- E o que ainda não sabemos sobre ela?
- Eu sei lá, pergunta pra ela qual é o travesseiro preferido ou qualquer outra coisa!
- Essa até eu sei, são os peitos da mulher dela!
- Está certo – Ella apontou – E acho melhor eu me recolher aos peitos da minha esposa enquanto ainda consigo andar sozinha pra fazer isso.
Todas as outras concordaram e se despediram rapidamente, Esmeralda ajudou Naomi a se levantar e as duas saíram juntas, Velaska a seguiu de perto e quase trombou com o batente da porta ao sair mas conseguiu se recuperar no último segundo e conseguiu sair.
Ella precisou tentar se levantar por duas vezes para conseguir se manter de pé, na primeira o máximo que conseguiu foi balançar de um lado para o outro até perder o equilíbrio e cair sentada mais uma vez, só na segunda conseguiu manter alguma dignidade e se equilibrar o suficiente para não precisar de ajuda. Sua falta de jeito pareceu divertir Agatha que gargalhou, o que quase a fez cair também e só não fez por conseguir se segurar no encosto da poltrona; as duas trocaram um olhar divertido e tentaram caminhar com o máximo de dignidade possível naquela circunstância, o que não era lá muita coisa. Ainda assim mantiveram o bom humor, ambas rindo baixinho e de forma livre como não faziam a muito tempo como se o álcool tivesse sido capaz de afastar toda a dor para um canto escondido da mente.
Não era lá a opção mais saudável, mas apenas por uma noite não faria mal. Além disso, Ella não teria uma ressaca no dia seguinte, já estava bastante habituada ao corpo pós cadou para saber bem disso, mas com Agatha a coisa seria muito diferente.
As duas conseguiram chegar ao saguão principal sem muitos incidentes, Ella esbarrou em um vaso de flores precariamente posicionado sobre um aparador e quase o derrubou, o que teria sido um problema a ser explicado para sua esposa na manhã seguinte, mas o vaso sobreviveu e elas ficariam bem; com o saguão vazio e sem testemunhas de seu quase crime, só pra eu visavam subir as escadas e se recolherem para uma boa e merecida noite de descanso.
- Temos um problema – Agatha anunciou.
- Só um?
Ella sorriu da própria piada ruim, ao que foi acompanhada por Agatha que ainda assim indicou a escada.
- Não sei se consigo subir isso, você não consegue
- Eu quase derrubei um vaso andando pelo corredor. Andando. Tem certeza que quer que eu te carregue lá pra cima?
Levou alguns segundos para Agatha responder, e quando o fez foi com uma risadinha
- Não mesmo.
Agatha tomou à frente e começou a subir as escadas apoiando-se no corrimão para ter mais equilíbrio, já Ella preferiu tomar um bom impulso e subir o mais rápido que conseguisse para acabar logo com aquilo; funcionou no começo, os primeiros degraus foram difíceis porque o chão acarpetado parecia se mover sob seus pés mas logo pegou o jeito e avançou com mais velocidade. Passou por Agatha na curva e subiu mais alguns degraus até que o inevitável aconteceu, errou a pisada e seu pé escorregou onde deveria se apoiar e em um tentativa de não cair para frente e acabar de cara no chão, Ella jogou todo o seu peso para trás na esperança de conseguir se equilibrar.
Seu centro de equilíbrio não estava lá essas coisas, Ella não conseguiu ficar parada e simplesmente se viu caindo pela escadas sem poder fazer nada além de agitar os braços como se isso fosse fazê-la parar em algum momento.
Ella caiu pesadamente no chão aos pés da escada e um gemido deixou seus lábios, a visão turva não ajudou muita coisa e só pode ouvir Agatha lamentando por sua vida.
- Se eu fosse humana, teria morrido agora. Ou eu morri?
Agatha não respondeu, e o que Ella pensou serem lamúrias por sua queda e quase morte na verdade eram risadas que logo se transformaram em gargalhadas que não poderiam ser controladas; sua amiga estava praticamente chorando de rir de sua situação, e por mais que Ella quisesse ficar brava não conseguiu deixar de rir junto.
- Por que não estou surpresa?
Um par de braços fortes a ergueu do chão e Ella piscou algumas vezes para que sua visão voltasse ao normal, ao fazê-lo Alcina entrou em foco e apesar da carranca nada feliz em seu rosto aquela mulher estava linda.
- Olha só pra você! – Ella sorriu – Você é tão linda que eu tenho vontade de te morder!
Alcina suspirou.
- Draga...
- Não! Olha só pro seu rosto! Já viu seu rosto?! Eu já vi e você é a mulher mais perfeita do mundo todo!
- Ella...
- Não! Nem mais uma palavra – Ella pressionou um dedo sobre os lábios de Alcina para fazer com que se calasse – Tenho a mais absoluta certeza que você é um anjo!
Uma risada vinda de algum lugar, mais áspera e claramente masculina, retumbou pelo saguão. Karl também estava por ali.
- Eu tenho certeza que todo dia de manhã quando a grandona pisa no chão, o capeta ri e pensa “hum, competição!”
Ella sentiu o rosto esquentar e parou de sorrir imediatamente.
- Não fala assim da minha mulher!
Alcina só a segurou com mais força e a carregou escada acima, e Ella precisou ouvir – emburrada- Agatha e Karl gargalhando às suas custas.
Aconchegou-se nos braços de Alcina e escondeu o rosto em seus seios, realmente eram seu travesseiro preferido e pareciam bastante confortáveis. Ella adormeceu antes mesmo de chegar ao seu quarto.
[...]
O lindo dia de primavera parecia perfeito para a realização de uma cerimônia de casamento, o sol brilhava no céu e havia nuvens o suficiente para tornar o clima agradável o suficiente para que todos permanecessem do lado de fora.
Ella estava tão bem quanto imaginou que estaria, acordou sem roupas na cama com os braços de Alcina ao seu redor o que foi muito bom; melhor ainda estar livre de qualquer traço de ressaca, infelizmente o mesmo não poderia ser dito das outras. Naomi estava bem, é claro, e Esmeralda havia se recuperado completamente da noite passada, mas Velaska ainda parecia mais pálida do que o normal e Agatha não era bem ela mesma.
- Nunca mais tento te acompanhar – Agatha resmungou assim que saíram do quarto, apesar de tudo parecia muito bem em seu vestido – Nunca mais... Nem sei porque eu tento.
Velaska riu e balançou a cabeça, o gesto a fez fazer uma careta.
- Ai! Tão ruim assim?
- Estou me ouvindo piscar.
Ella riu, o que atraiu olhares desgostosos das outras duas.
- Não me olhem desse jeito, eu não tenho culpa de que vocês beberam o suficiente pra ficar de ressaca no dia mais importante da vida da Naomi e da Daniela. Aliás, como você saiu daquela escada?
- Cassandra me encontrou assim que você desapareceu escada acima, ela me carregou para o quarto e me colocou na cama.
- Sei como é – Ella balançou a cabeça – Acordei nua hoje, acho que Alcina só tirou minha roupa e me jogou na cama. E antes que digam que isso não é justo, ainda tenho uma criança para tomar conta.
- E onde ela está agora? – Velaska perguntou.
Ella pensou por um momento.
- Eu não sei, preciso procurar a Alice.
Não gostava de não saber onde sua filha estava, foi a primeira vez que não tinha ideia de onde Alice estava ou com quem e isso a preocupou, o que fez Agatha notar imediatamente.
- Ela está bem, provavelmente com uma das irmãs mais velhas.
- É, acho que sim.
- Vem, vamos lá para fora.
Enquanto Ella usava um vestido em tom azul suave, perfeito para o clima de primavera, Agatha escolheu amarelo e Velaska um tom de vermelho apropriado para o dia. As três caminharam juntas até o coreto nos jardins, os arbustos já ostentavam flores de cores vívidas e perfumadas e parecia quase mágico; algumas cadeiras foram pistas em lugares estratégicos, incluindo uma especial para Alcina e uma mais distante para Moreau, para evitar que ele vomitasse em alguém.
Ella conseguiu respirar aliviada ao notar que Alice estava no balanço que haviam feito para ela em uma árvore próxima, Adam a empurrava com cuidado e os dois riam juntos de alguma brincadeira que dividiram.
- Viu? Eu disse que ela estava bem – Agatha sorriu e estremeceu logo em seguida – Droga de dor de cabeça.
- Acho melhor ir se sentar...
Sua esposa já estava ali, magnífica em um vestido vermelho escuro, porquanto se negava a usar qualquer cor “alegre” que remetesse a primavera; não muito longe dela, o que fez Ella revirar os olhos, Mãe Miranda estava sentada ao aguardar a cerimônia e por isso Karl fazia questão de rir cada vez mais alto a cada piada que Judy fazia, e ao seu lado Irma estava sentada como se não soubesse se devia mesmo estar ali.
O único motivo para Miranda estar presente era o fato de que precisavam manter relações cordiais, principalmente depois que Ella fez o favor de lhe dar um belo soco no rosto, mas Daniela não queria presidindo a cerimônia. No fim, Dani e Naomi decidiram apenas trocar votos e prometer amor eterno sem que qualquer figura precisasse declarar sua união válida.
- Acho melhor começar logo – Velaska sussurrou – E traga Alice, se ela for a menina das flores é melhor ser rápida.
Ella assentiu e caminhou até o balanço onde as crianças brincavam e os chamou. Adam ajudou Alice descer e esperou que ajeitasse o vestido branco no qual Donna passou horas costurando pequenas flores coloridas e delicadas ao longo da saia, os dois tinham as bochechas coradas e pareciam se divertir.
- Sinto muito por interromper, mas está na hora. Vocês podem brincar mais tarde.
Estendeu a mão para Alice que a tomou rapidamente, o menino que já estava virando um rapaz a abraçou rapidamente e seguiu Lara ocupar o lugar ao lado da sua “mãe”; Ella odiava como Miranda o tratava, como se quisesse deixar claro que não o amava o suficiente, como se ele não fosse o suficiente para ela, e o pior de tudo era ver como Adam só parecia querer um pouco de amor e atenção da mãe. Aquele garoto definitivamente merecia algo melhor do que aquilo, por sorte Karl vinha sendo um bom “irmão” mais velho e cuidava dele como merecia; bem, pelo menos tanto quanto Karl Heisenberg poderia cuidar de algo que não fosse uma máquina.
- Você está bem? – Ella perguntou para a filha – Está nervosa?
Alice negou.
- Não, estou animada pra ver a Dani casando e depois quero brincar com o Adam e a Irma.
Realmente, Judy pagaria por todas as vezes que empatou o namoro de Cassandra com Agatha.
- Tudo bem, mais tarde você brinca com o seu amigo.
- Tá bom.
Levou a menina de volta ao castelo, de onde deveria caminhar jogando as flores pelo caminho até o local da cerimônia; uma criada lhe trouxe a cesta cheia de pétalas de flores e Alice a aceitou, criando ares de importância ao assumir seu papel de menina das flores, o que lhe fez sorrir.
- Você está linda, querida.
O olhar de Alice caiu e ela ficou tristonha.
- Queria que a Theo estivesse aqui.
Ella engoliu em seco, parecia ter um caroço na garganta.
- Eu também queria que a Theo estivesse aqui.
- Podemos levar flores para a Stella?
- É claro que podemos, meu amor.
Não sabia que Alice pensava em Stella quase um ano depois de seu desaparecimento, ela parecia bastante contente com a presença de Irma no castelo, ou talvez fosse apenas a conexão feita por sua mente infantil entre o desaparecimento de Theodora e a morte de Stella.
Talvez, Ella cogitou, estivesse na hora de preparar uma espécie de monumento em homenagem a Theodora, algo para provar que outra menininha viveu e foi feliz no castelo por cinco anos inteiros, algo para Alice poder vivenciar seu luto e levar flores para a irmã ao invés de ir até o vilarejo fazer isso pela babá. Embora lhe parecesse uma boa ideia, a única coisa que lhe vinha à mente era uma lápide com o nome da filha e não estava pronta para isso; para falar a verdade, talvez nunca estivesse, não era natural que uma mãe precisasse escolher a lápide dos filhos.
Todos esses pensamentos passaram por uma cabeça em alguns segundos que pareceram horas, e Ella precisou se esforçar para afastá-los e voltar a sorrir.
- Hoje é um dia feliz, certo? É o casamento da Daniela e ficaremos felizes por ela.
- Certo, mamãe – Alice voltou a sorrir – Vai ser divertido.
- Isso mesmo.
Beijou a testa de Alice e recomendou que esperasse até que Daniela e Naomi estivessem prontas para prosseguir com a cerimônia, só quando teve certeza que a filha mais nova obedeceria – o que não era exatamente um problema com Alice -, Ella caminhou de volta até sua esposa e ocupou o lugar ao seu lado, ao que Alcina logo passou o braço por cima dos seus ombros e lhe sorriu.
Estava prestes a começar.
Dentro do castelo, em uma sala que lhe serviu como um camarim, Daniela olhou seu reflexo no espelho e inclinou a cabeça para o lado direito ao refletir sobre a própria aparência. O terno branco parecia arrojado, bem como o corpete com um decote modesto que usava por baixo, e fazia seus cabelos parecerem ainda mais vermelhos; ela sabia que era bonita, em outra época diria até que era completamente impossível que alguém resistisse aos seus encantos e não se apaixonasse completamente, mas não conseguia ter a mesma certeza logo no dia mais importante da sua vida.
- Você está linda, Dani.
O sorriso encorajador de Bela ajudou um pouco.
- Obrigada.
Cassandra postou-se do outro lado, apenas um passo atrás.
- Tem certeza que quer fazer isso sozinha?
- Sim, eu tenho. Eu preciso.
- Tudo bem – Cassandra sorriu de modo suave, nem mesmo ela poderia fingir desinteresse naquele momento – Você está realmente linda.
- Obrigada, Cassie.
- Se contar pra alguém que eu disse isso, juro que vou te caçar usando sua própria foice.
Daniela riu.
- Seu segredo está seguro comigo.
Suas irmãs se despediram e saíram do quarto deixando-a a sós com seus pensamentos, o que foi um pouco assustador no começo; não queria que nada desse errado, nada que pudesse estragar tudo.
Contou até dez pelo menos três vezes, parando para respirar fundo entre uma contagem e outra, e saiu do quarto. Os corredores estavam vazios e Daniela seguiu completamente sozinha até à saída que levaria ao local da cerimônia, como o planejado Alice já estava ali esperando por ela com um sorrisinho no rosto e uma cesta com as flores coloridas.
- Você tá linda, Dani!
- Não, você está linda! – Daniela sorriu para a irmãzinha e se inclinou para ficar mais próxima da sua altura. – Parece uma princesinha com esse vestido.
Alice sorriu e mostrou suas covinhas, parecendo completamente encantada com o elogio recebido.
- Está pronta, Alice?
A menina apenas assentiu em resposta, o olhar já perdido em algum ponto atrás de Daniela.
- Linda... – Alice sussurrou sem olhar para Daniela – Muito linda.
Daniela se ergueu e ajeitou a postura antes de se virar, e respirou fundo mais uma vez só para garantir que não desmaiaria, mas foi como levar um soco no estômago tamanho o atordoamento que se abateu sobre ela ao ver Naomi em seu vestido de noiva.
Não havia mulher mais bonita no mundo, Daniela sempre soube disso, e Naomi era especial, ainda assim ficou sem palavras para descrever como se sentiu; logo ela, que se orgulhava tanto de ter as palavras certas para reclamar seu amor, ficou sem saber o que dizer.
O vestido que Naomi usava não era exatamente branco como seu terno, havia um sub-tom bastante tênue de rosa, e a saia foi bordada com flores coloridas e delicadas aqui e ali, as mangas fluíam leves a partir do corpete que usava, o que deixava seus ombros a mostra; um fio dourado foi emaranhado em seus cabelos curtos e lhe deu uma aparência quase mágica, angelical como uma princesa inocente de contos de fadas.
Aproximou-se de Naomi e tomou sua mão para pressionar um beijo.
- Você está magnífica.
- Assim como você.
- Nem chegou aos seus pés, não conseguiria mesmo que tentasse e não desejo isso.
Trocaram um olhar apaixonado, daqueles que tornam palavras desnecessárias, e Daniela precisou se lembrar de que todos esperavam por elas logo ali na frente.
- Está pronta?
- Estou – Naomi sorriu – Acho que estou pronta desde o dia que te conheci.
Naomi andou em sua direção e vacilou um pouco, precisou segurar o vestido para não pisar na barra e sua expressão se tornou melancólica de repente; sabendo que sua noiva, em breve esposa, ainda sentia vergonha de coxear daquela forma, Daniela diminuiu a distância entre elas e segurou sua mão com mais firmeza.
- Eu seguro você.
- Talvez não tenha sido a melhor ideia...
Como Naomi parecia incerta, envergonhada, Daniela pressionou um beijo carinhoso em sua testa.
- Foi a melhor ideia e todo mundo lá fora vai ver como você está perfeita.
- Não me solta.
Embora Velaska, Agatha e até mesmo Ella tivessem se oferecido para caminhar com Naomi até o altar, ambas recusaram; Daniela queria ser a única a guiar o amor da sua vida até o sim que as uniria para sempre.
- Nunca vou soltar você.
Naomi assentiu e respirou fundo como se tomasse coragem para encarar a todos.
- Estou pronta.
Sorrindo orgulhosa, como se mesmo em seus tenros seis anos de vida Alice entendesse o que estava acontecendo ali mais do que a maioria dos adultos fosse capaz, a menininha se empertigou e iniciou sua marcha até o jardim enquanto jogava as flores ao chão para formar um tapete colorido.
Daniela estendeu o braço direito para Naomi e permitiu que se segurasse para se equilibrar, então depositou a mão esquerda sobre a sua e ambas iniciaram a caminhada até o altar. Do lado de fora, todos as esperavam pé e com sorrisos em seus rostos – com exceção de Miranda, mas Daniela sequer ligou para a velha chata –, o que lhe importava era que sua família estava feliz, até mesmo Adam sorriu e acenou em sua direção.
Tia Donna não usava o véu, desde que Esmeralda entrou em sua vida o vestia cada vez menos, e parecia feliz ao lado da companheira e com Angie em seus braços; tio Karl ergueu os polegares em sua direção para mostrar que também estava feliz, até mesmo tio Moreau bateu os pés no chão em uma espécie de comemoração própria. Daniela viu as irmãs ao lado das suas companheiras, até mesmo Judy a quem às vezes ainda vinha mais como menina e menos como mulher, e sentiu os olhos marejarem ao notar como pareciam realizadas.
Quem mais lhe chamou a atenção foram suas mães, ambas com sorrisos e olhares idênticos, e o que viu ali quase fez Daniela chorar de vez. Orgulho, puro e simples.
Chegaram ao arco florido juntas e Daniela afastou-se de Naomi apenas o suficiente para ficar de frente para ela e poder olhar em seus olhos de corça.
- Estamos aqui.
Naomi sorriu. Não havia mais medo ou vergonha em seu olhar e isso a tornou magnífica.
Assim como caminharam sozinhas até o seu altar, ambas preferiram não ter alguém para realizar a cerimônia por elas, queriam declarar os votos por si mesmas e isso seria além do suficiente para o seu amor.
- Naomi... – Daniela começou e respirou fundo antes de continuar: - Antes de mais nada, quero que saiba que estar aqui com você é uma oportunidade que nunca serei capaz de agradecer. Depois de... Depois de tudo o que aconteceu, todos aqueles dias te vendo imóvel sem poder fazer nada pra te alcançar e trazer de volta, isso é como renascer. Sempre ansiei pelos amores dos livros, aqueles escritos para encantar leitores desavisados, e passei noites imaginando como seria e minhas irmãs podem contar como as importunei para que colaborassem com minhas fantasias – Daniela lançou um olhar para Bela e Cassandra e sorriu – E você chegou no seu tempo, do seu jeitinho, e mesmo do meu jeitinho atrapalhado quero que saiba que uma parte de mim já sabia que seria você. Aquele dia eu não sabia que nos casaríamos e que não ia querer outra pessoa enquanto viver, mas eu sabia que queria te manter presa a mim de algum jeito.
Daniela riu baixinho e Naomi a acompanhou. Só tinham olhos uma para a outra como se nenhuma daquelas outras pessoas estivesse ali as assistindo.
- Me desculpe se o meu jeito foi dizer que queria te amarrar na minha cama – as duas sorriram novamente – Eu ansiava por viver um amor desses dos livros, só que não sabia como fazer isso. Você me ensinou. E é uma honra te tornar minha esposa hoje e para sempre, prometo que vou te amar e cuidar de você pelo resto das nossas vidas.
Dessa vez foi Naomi a levar a mão de Daniela aos lábios para beijá-la.
- Daniela. Enquanto você sonhava em ter um romance desses como os dos livros que tanto ama, eu cresci ouvindo que o amor é difícil, que mais cedo ou mais tarde ele te machuca e vai embora. Enquanto você sonhava com um amor, eu sequer me permitia imaginar como seria meu príncipe encantado, muito menos a minha princesa, porque isso não me era permitido; eu precisava passar pela vida, me casar para continuar viva porque essa era a única maneira e eu teria sorte se sobrevivesse... Só conheci o amor que é doloroso, aquele que é difícil cultivar e manter, mas você tem que saber que te amar foi a coisa mais fácil que já fiz. Você, Daniela Dimitrescu, tem o sorriso mais doce, os olhos mais brilhantes e alma indomável que tive a oportunidade de me deparar. E se me der a chance de passar a vida ao seu lado, vou ser a mulher mais feliz do mundo.
Sem se conter, e nem desejar fazer isso, Daniela e puxou para um beijo que foi prontamente correspondido, sequer se lembraram das alianças ou se deram conta de todas as palmas, gritos e assovios – os últimos dois de Velaska, Angie e Karl, com certeza – que as cercava. Ao que lhe dizia respeito, eram apenas as duas em seu mundinho perfeito, em que ninguém poderia penetrar para acabar com a felicidade.
Mais tarde, quando todos estavam dançando no salão de festas do castelo, Ella e Alcina rodopiavam lentamente, embaladas pela melodia doce. Naomi e Daniela não conseguiam desgrudar uma da outra, ou mesmo afastar seus olhares, completamente apaixonadas; Donna e Esmeralda também não se afastaram, e o clima do casamento parecia ter pesado sobre todas elas que dançavam com seus pares.
Em um canto do salão, Moreou estava sentado observando a todos enquanto Adam e Alice corriam ao seu redor, às vezes dançavam e até tentaram puxá-lo para a brincadeira em algum momento.
Ella soltou um gritinho quando Alcina a ergueu em seus braços, mas logo se recuperou e abraçou o pescoço da esposa.
- Pode admitir.
- Do que você está falando, draga mea?
- Você gosta da Naomi, vi como estava sorrindo.
O olhar de Alcina se perdeu por um momento, apenas alguns segundos antes de voltar sua atenção para Ella.
- É Daniela. Estou realmente orgulhosa dela. De todas elas, na verdade. E nada me faz mais feliz do que ver minhas filhas felizes.
Ella não poderia concordar mais com sua esposa, e ainda que houvesse uma feria em seus corações e que ela sempre estaria lá, estavam felizes por suas filhas.
[...]
O tempo pode ser curioso. Não o tempo em si, mas a percepção do lapso temporal. Quando a tristeza e a angústia se espalham como ervas daninhas, os dias tendem a se arrastar como que para prolongar o sentimento, e todos os sofredores dentro daquele pesadelo só podem torcer para acabar o mais rápido possível; em contrapartida, os dias felizes parecem passar rápido demais e deixam uma saudade com gosto de doce na boca, lembrar-se deles é como reviver a felicidade e apreciar o quanto a teve.
No fim, foi assim que superaram a perda de Ava Theodora Dimitrescu, sua amada Theo.
Ergueram um monumento em sua homenagem e, como Ella desconfiou, se parecia mais com um túmulo com um epitáfio entalhado no mármore “amada filha e irmã. Desaparecida, mas jamais esquecida”, e ainda assim fez questão de plantar arbustos floridos ao redor e sempre levavam mais flores, sempre que sentiam saudades ou Alice sentia que precisava fazer isso. Até mesmo no inverno davam um jeito de levar alguma coisa para ela.
Lembrar dos momentos felizes ao seu lado foi o que as impediu de chafurdar na dor de seu desaparecimento. Ainda havia dias ruins, em que nada poderia afastar a dor, mas conforme o tempo passou eles eram cada vez menos frequentes.
E assim, antes que percebessem, dois anos se passaram.
Tudo continuava da mesma forma, elas viviam como sabiam viver e seguiam em frente como era preciso. Todas elas, como uma família unida.
Em meio a tudo isso, Alice desabrochava e Alcina não cansava de afirmar como ela se parecia exatamente como Ella com os cabelos loiros e olhos azuis, os olhos que tinha antes de sua vida mudar para sempre. A própria Ella se via na filha, mas de uma forma diferente e mais leve; apesar da dor de perder a irmã gêmea, Alice não perdeu a doçura e jamais precisaria passar pelo que Ella passou quando tinha sua idade.
Alice gostava de desenhar e pintar, dividindo esse gosto com Ella e Alcina, o amor pela arte e criatividade, e se esforçava para aprender a tocar piano com Bela e Judy, mas não tinha a mesma inclinação musical que as irmãs mais velhas.
A vida poderia não ser perfeita, quase nunca é, mas era boa e elas aprenderam a apreciar isso.
Foi em uma tarde bonita de verão que suas vidas mudaram para sempre, e mais uma vez tudo pareceu desmoronar sob seus pés sem que nada pudesse ser feito.
Aquele dia começou como qualquer outro, sem indícios d.e que algo daquela magnitude estava prestes a acontecer, e todas as mulheres Dimitrescu se ocuparam com suas atividades diárias sem imaginar que não fariam o mesmo na manhã seguinte. Pensando em retrocesso, era quase uma profanação que esses dias carregados de tragédia não viessem com um aviso, eles se pareciam exatamente como todos os outros até que tudo desmoronava de uma única vez.
Talvez tivessem feito tudo diferente, tomado outras decisões para evitar o que estava por vir, mas como Ella já havia aprendido o destino não gostava de ser contrariado.
Quando Alice insistiu que queria visitar tia Donna, Ella a fez desistir da ideia porque já havia passado três dias daquela semana lá e sua tia poderia querer passar algum tempo a sós com sua companheira. Conforme crescia Alice tomou gosto por passar o tempo na casa da sua tia preferida, e madrinha, que também se mostrava contente com a companhia da criança, mas ainda assim Ella decidiu que era preciso impor certos limites.
Antes não tivesse feito isso, talvez tudo tivesse acontecido de um jeito diferente.
Como a menina insistiu, Judy, que estava terminando seu almoço tardio, resolveu oferecer uma alternativa que parecia bastante tentadora.
- Por que não vão à fábrica do Tio Karl? Posso mostrar no que estamos trabalhando, ele construiu uma criatura bem legal, mas não serve para muita coisa. E Adam está passando alguns dias lá também.
Os olhos de Alice praticamente brilharam com a ideia.
- Podemos, mamãe?
Ella suspirou.
- Claro que podemos, vai ser bom ver o tio Karl e o Adam.
- Aquele menino parece melhor lá – Judy comentou enquanto brincava distraidamente com o garfo – Sempre chega pálido e parecendo doente, vomita por dias até melhorar.
Feliz em poder sair, Alice não lhes deu atenção e saltou da cadeira para correr para fora do salão, dizendo que precisava avisar a Alcina que estavam de saída para visitar o tio.
Assim que Alice desapareceu de vista, e que não poderiam ser ouvidas, Judy continuou em voz baixa:
- Não era pra Mãe Miranda saber o que ele tem?
Ella balançou a cabeça, Judy já não era mais uma criança então sentiu que poderia ser franca com ela.
- Talvez a Miranda o esteja deixando doente.
- Por que ela faria isso?
Devolveu a pergunta da filha:
- Por que ela não faria isso? Nunca acreditei que ela pegou aquele garoto porque um ímpeto de bondade se abateu sobre seu coração, acho que ela tem outros planos pra ele.
- E por que não fazemos nada?
- Porque não podemos.
Não ainda. Quis completar, mesmo sabendo que não deveria. Quanto menos falassem sobre isso, melhor.
Alice voltou acompanhada por Agatha e Cassandra, e ao vê-las ainda sentadas à mesa reclamou que queria ir logo.
- Nós já vamos – Ella prometeu – Seja paciente e educada, por favor.
- Sim, mamãe – Alice parecia animada demais para se importar com a reprimenda – Agatha disse que vai com a gente!
Procurou o olhar da amiga que confirmou.
- Vai ser bom sair um pouco, pensei em acompanhá-las.
- Isso é ótimo – Ella sorriu – E você, Cass?
- Não obrigada, eu tenho coisas a fazer lá embaixo. Divirtam-se.
Cassandra virou-se para a esposa e pressionou um beijo carinhoso em seu queixo, olharam de maneira tão profunda e amorosa que Ella apressou as outras filhas a saírem dali a fim de lhes dar alguma privacidade. Seriam apenas algumas horas fora, nada demais, mas era fofo como Cassandra parecia aproveitar qualquer oportunidade para demonstrar seus sentimentos.
Alguns minutos depois Agatha apareceu com as bochechas coradas em um sorriso no rosto, o que fez Judy reclamar com uma careta.
- Vocês já não estão velhas pra isso? Estão juntas a tempo demais pra continuar desse jeito.
Agatha bagunçou seus cabelos escuros.
- Ah, os jovens... Como se você não fizesse o mesmo com a sua namorada.
- E se bem me lembro... – Ella sorriu – Vivia dizendo que não teria uma namorada pra mandar em você, e isso acabou acontecendo.
Até mesmo Alice, que não tinha idade para entender as piadas que faziam, riu da expressão chateada de Judy.
As quatro saíram juntas em direção aos estábulos e algumas criadas selaram os cavalos, era um dia agradável o suficiente para cavalgar em um ótimo passeio; Alice já tinha o seu próprio cavalo, foi um presente de aniversário de oito anos pelo qual passou meses implorando, e era branco como o dos contos de fadas que tanto adorava ler. Ver sua menininha montando o próprio cavalo, e como fazia isso bem e com postura, fez Ella se sentir orgulhosa sobre como estava crescendo e se tornando independente.
Conversaram durante todo o trajeto, Agatha contou sobre a irmã e sobrinhos, bem como a vida tranquila que levavam na fazenda. Isso não seria verbalizado perto de Alice, mas foi incrível como a morte do pai de Agatha colocou tudo em seu devido lugar e todos estavam mais felizes assim.
Ao passarem pelo vilarejo, Alice se animou consideravelmente.
- Mamãe, será que um dia eu posso chamar o Damian pra andar a cavalo comigo? Acho que ele ia gostar.
- É claro, Alice. Tenho certeza que ele vai ajudar.
Ao notar a ânsia da irmã, Judy prometeu:
- Se mãe não trouxer você, eu trago.
Mesmo sabendo que Ella não permitiria. Enquanto estava disposta a deixar Alice crescer tão livre quanto o possível, ainda não se sentia confortável em deixá-la sozinha – ou com outra pessoa – no vilarejo; talvez permitisse se fosse em companhia de Bela, Cassandra ou Daniela, mas Judy ainda era muito jovem para lidar com certas situações.
- Iremos visitar seu amigo assim que possível – Ella prometeu – Talvez ainda essa semana.
Sua promessa pareceu deixar a criança satisfeita por hora, no entanto, sabia que seria cobrada na primeira oportunidade e que Alice não esqueceria até ter o seu desejo atingido.
Os terrenos ao redor da fábrica de Heisenberg pareciam tão caóticos como sempre, uma mistura de engrenagens velhas, sucata coberta de ferrugem e parte de suas criações insanas; coisas que, segundo ele, serviam para matar o tempo. Não precisaram se identificar, os portões se abriram sozinhos assim que se aproximaram o suficiente, provavelmente Velaska, ou talvez o próprio Karl, as viu chegando e fez as honras.
Desmontaram dos cavalos e os deixaram por ali para que pudessem pastar livremente, ficariam bem desde que Karl mantivesse os lycans trancados do lado de dentro; Judy ajudou Alice a desmontar, porquanto ainda era muito pequena para fazer isso sozinha.
Assim que Alice colocou os pés no chão, Karl apareceu na porta e abriu os braços.
- Baixinha!
- Tio Karl!
Alice correu até o homem que a ergueu nos braços e jogou-a para o alto, pegando-a em seguida.
- Adivinha quem está aqui e quer ver você?
- O Adam?
- Isso mesmo, vai lá encontrar com ele.
Apesar de ser a fábrica de Karl, e de ninguém ali dentro ousar fazer mal à menina, Ella se sentiu desconfortável em deixá-la sozinha. Agatha pareceu sentir isso ou, quem sabe, apenas compartilhasse do sentimento de proteção para com a Dimitrescu mais jovem.
- Por que não vamos ver o seu amigo enquanto Judy mostra tudo pra sua mãe?
- Tá bom...
Karl a colocou no chão e Alice imediatamente correu em direção à Agatha para agarrar sua mão em um aperto firme. Antes que pudessem adentrar a fábrica, a menina parou e olhou para trás.
- Não demora.
- Não vou demorar, querida.
Assim que as duas desapareceram dentro da fábrica, Ella voltou-se para Judy e sorriu.
- Acho que temos algum tempo. Quer me mostrar seus projetos?
O sorriso brilhante da filha foi o suficiente como resposta.
[...]
Sem suas mães por perto a fábrica do tio Karl parecia grande e assustadora, fazia muitos barulhos estranhos e sempre tinha alguma coisa rangendo ou explodindo, e, principalmente, não se parecia nada com o castelo e nem de longe era tão limpo; o aperto da mão de Agatha, uma adulta em quem confiava para protegê-la, tornava mais fácil caminhar pelos corredores estranhos e Alice quase não sentiu medo. Quase.
- Alice!
Ouvir a voz do seu amigo a fez sorrir, Adam era legal e sempre foi gentil.
- Oi, Adam!
Adam devolveu seu aceno com um pouco menos de entusiasmo mas ainda assim sorriu de forma gentil, e com a mesma educação cumprimentou Agatha.
- O que estão fazendo aqui?
- Viemos visitar!
- Estamos conhecendo a fábrica – Agatha explicou – E vamos dar uma volta por aí.
- Aqui é bem legal, pelo menos tem mais coisas pra fazer do que em casa – Adam fez um sinal para que a seguissem – Mãe só quer que eu estude, mas aqui tem bem mais coisas pra fazer e às vezes Karl até me deixa explodir um monte de sucata. Por favor, não contém isso pra minha mãe!
Era com Agatha e ela prometeu não contar nada.
- Obrigado.
Adam as levou até uma sala grande onde o que parecia ser um grande forno de ferro exalava calor, alguns moldes pesados pareciam ter sido jogados de qualquer forma sobre uma mesa de metal que parecia coberta de ferrugem.
- Aqui derretendo algumas peças de ferro ou outros metais – Adam explicou – Aí eu coloco nesses moldes e posso montar como quiser, Karl está me ensinando a ligar circuitos e fazer algumas máquinas funcionarem.
Alguma coisa rosnou não muito longe dali, parecia selvagem e incontrolável, Alice agarrou a mão de Agatha com um pouco mais de força e desejou que Cassie ou Bela estivessem ali.
- Não precisa ter medo, são só os Lycans – Adam contou – Eles não podem vir até aqui.
O rosnado soou novamente e parecia distante, além disso não havia motivos para acreditar que um daqueles monstros pudesse atacá-la, mas o pavor se alastrou mesmo assim.
A coisa sobre o medo é que ele é incontrolável, se esparrama como erva daninha e consegue se enrolar e envenenar todas as outras emoções que permeiam a psique do ser humano. O medo não é racional, não pode ser medido de tal forma, e assume diversas maneiras ao se manifestar, algumas vezes entre lágrimas e outras entre acessos de raiva.
Alice encontrava-se em um estado jamais imaginado em seus poucos anos de vida. Não havia nada na sala que pudesse machucá-la, ninguém que representasse uma ameaça, na verdade, estava com duas pessoas nas quais seu coração infantil confiava com toda a força e mesmo assim todos os alarmes de perigo soaram em sua cabeça. Alice estava congelada no lugar, era como se algo ruim, uma ameaça que não podia ser evitada, se aproximasse lentamente e ela nada pudesse fazer; parecia não haver segurança, nenhuma figura milagrosa que poderia salvá-la daquele terror inominado.
- Mamãe...
Uma mãe é como Deus aos olhos de uma criança, a única a conseguir trazer a sensação de proteção da qual precisava, mas algo dizia a Alice que não importava o quanto chamasse, o quanto implorasse para que mamãe viesse buscá-la, ela não viria.
Alice estava completamente sozinha.
- Alice?
A voz parecia vir de muito longe, de outro lugar. Um lugar inalcançável.
A dor em seu braço pareceu uma picada de abelha e o veneno se espalhou lenta e dolorosamente enquanto percorria suas veias para se espalhar por todo o seu corpo pequeno, Alice chorou mas isso não fez a dor parar.
- Alice?
Foi quando o calor começou a se espalhar por seu corpo como que vindo do interior do seu próprio ser, a própria sala pareceu esquentar, e a testa de Alice ficou úmida com o suor escorrendo.
- Alice!
Quente. Muito quente. Calor.
O vapor que saiu do forno se misturou ao da sala, foi como se vibrasse na mesma sintonia que o corpo de Alice, atraído por ela como um ímã ao metal.
Como se viesse de muito longe, através de uma névoa densa, ouviu a voz de Agatha.
- Vai buscar a Ella! Rápido!
Alguém saiu correndo da sala, Alice já não sabia quem era e não se importava. A dor que se espalhou por seu braço chegou à sua cabeça, sentia que seu crânio poderia se partir a qualquer instante e seus olhos ardiam tanto que talvez derretessem por seu rosto.
- Alice, querida, você precisa me ouvir!
Mãos agarraram seus braços, foram gentis mas o toque a assustou ainda mais (não gostava nada quando a tocavam daquele jeito!), e Alice queria que suas mães viessem buscá-la (mamães jamais voltariam, elas a mandaram pra lá!), só queria voltar pra casa (não podia ir para casa nunca mais!).
- Alice!
Foi demais para aguentar. O calor ao seu redor se fundiu com aquele que parecia queimar dentro dela durante todo o tempo, o fogo era incontrolável e estava pronto para consumir tudo ao seu redor.
Agatha gritou. Berrou como se sua garganta estivesse em chamas, completamente tomada pela dor que aquele elemento destrutivo era capaz de causar. Alice se esforçou para abrir os olhos, e mesmo em meio as ondas de calor e vapor que pareciam tomar a sala pode ver Agatha agitando os braços que estavam em chamas.
O grito (de medo, raiva, pavor, ódio puro e simples) escapou da garganta de Alice como o de um animal ferido e encurralado.
- Alice!
Algo explodiu, Alice foi praticamente arremessada ao chão e bateu a cabeça com força o suficiente para fazê-la perder a consciência por alguns segundos.
Ainda estava quente, abafado, como a sucursal do próprio inferno.
Com muito esforço conseguiu abrir os olhos, o que viu foi um monte de cabelos loiros pressionados contra seu rosto e um par de asas negras que parecia cobri-la como um escudo capaz de impedir todo o mal. Mesmo em meio ao caos e ao calor, odor de madeira chamuscada, Alice reconheceu o cheiro reconfortante de sua mãe e se entregou a inconsciência.
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