Se tornar mãe de uma adolescente não era bem o que o que Claire Redfield esperava ao pegar sua antiga moto, pela qual ainda se lamentava diga-se de passagem, e se dirigir à Raccon City em setembro; esperava talvez encontrar Chris e, com sorte após algumas informações de agentes do Salve a Terra, Alice.
As informações que chegavam através de agentes infiltrados eram fragmentadas, Claire sabia que Alice (Agente Abernathy lá dentro) seria transferida para uma das sedes nos Estados Unidos acompanhando um grupo de crianças, outro agente descobriu que seria para a Colmeia em Raccon City, então mesmo contra todos os conselhos decidiu ir até lá e tentar a sorte.
Assim que chegou foi surpreendida pelas criaturas, os mortos caminhavam e transformaram aquela cidade, antes um ponto turístico, em um cemitério à aberto.
Alice não era a mesma de antes, ainda não tinha todas as suas memórias, e seria muito pior sem Ava.
Se lhe perguntassem como seria uma criança criada em laboratório, Claire daria a descrição exata de um filme de ficção científica; uma criaturinha amuada, assustada com cada novo barulho, desconfiada de tudo e todos, que talvez não soubesse sequer falar... Ava não era nada disso, mas não a surpreendeu totalmente. Apesar de ter sido criada em um laboratório também foi treinada para ser um soldado, a líder de seu pequeno batalhão, e não apenas era bastante inteligente como sabia se comunicar muito bem em pelo menos seis línguas.
Saber se comunicar, no entanto, não era o mesmo que entender os próprios sentimentos e vinham lutando com isso diariamente.
Ava se recusou a falar com qualquer terapeuta do Salve a Terra, a única pessoa com quem realmente falava e dividia experiências na Umbrella era Elyna, talvez tivesse algum apoio em Alice se suas todas as lembranças voltassem e aí poderiam compartilhar sobre os laboratórios e treinamento; porquanto Alice não se lembrava muito do período em uma base secreta na Europa, Ava parecia se lembrar muito bem.
O natal foi interessante, para dizer o mínimo. Ava não se aproximou de Chris, preferindo analisá-lo de longe, então passou muito tempo com Alice ao invés de Claire, que precisava aproveitar a companhia do irmão.
Jill fez seu papel como “tia legal n° 1” e fez com que Chris não se metesse no caminho da garota, e Rebecca se dividiu entre todos.
A chegada de seu irmão balançou seu frágil equilíbrio, seu relacionamento que parecia começar do zero para Alice enquanto ela se lembrava de tudo, e sua relação com a adolescente para quem assumiu o papel de mãe; Chris não gostou de Alice, e gostaria muito menos quando descobrisse sobre a Umbrella, e, por consequência, Ava não confiou nele o suficiente para criar algum tipo de ligação.
Durante todo o tempo em que Chris esteve em casa, Ava o rodeou de longe, espreitando e observando tal qual um tigre enjaulado faria ao ver um banquete perto demais, mas, ao mesmo tempo, inalcançável. Era como se estivesse esperando o primeiro sinal para atacar, e atacaria se fosse preciso, sem pensar duas vezes.
Depois do natal todos eles foram embora, restando apenas sua pequena e disfuncional família, com uma esposa parcialmente desmemoriada e uma adolescente muito silenciosa.
Naquela manhã, enquanto se ocupava de guardar a roupa limpa no armário, Claire se distraiu momentaneamente. Da janela do quarto podia ver a garagem onde Alice golpeava insistentemente um saco de pancadas inocente, parecia descontar todas as frustrações nele como se não houvesse mais nada no mundo; Claire queria que ela soubesse que estava ali caso precisasse, e embora tenha passado pelos mesmos horrores em Raccon City não sabia como abordar o assunto.
Cada um deles seguiu como pode. Rebecca procurando uma vacina, Jill e Chris falando sobre montar uma organização para combater o bioterrorismo, enquanto Claire mal sabia como seria o próximo dia.
Pela maneira como Alice acertava o saco de pancadas, Claire era capaz de afirmar com todas as letras que ela estava com raiva e só pode imaginar que o jantar-quase-surpresa na companhia de Jill e Chris tinha algo a ver com isso.
O jantar-quase-surpresa foi um evento avisado por Jill aquela manhã justificando que Ava poderia ficar sobrecarregada com um evento inesperado, a desculpa de Chris foi que, com a chegada da primavera, deveriam acender a grelha e assar alguns cachorros quentes e hamburgueres do lado de fora para apreciar o calor, embora Claire soubesse que ele só queria uma bela desculpa para bisbilhotar.
Chris podia ser bastante teimoso, até um pé no saco às vezes, mas só estava preocupado com ela e estava tentando assumir o papel de irmão mais velho preocupado, tinha sido assim desde que seus pais morreram e continuaria sendo enquanto os dois estivessem vivos.
Observou Alice golpear o saco de pancadas por mais alguns segundos sem se surpreender com a força ou rapidez com que o fazia, afinal de contas conhecia muito bem sua mulher para saber que era como uma ninja faixa preta em vários estilos de luta diferentes, o que a levou a ser recrutada pela Umbrella em primeiro lugar.
Acabou se afastando da janela ao lembrar que ainda precisava guardar as roupas de Ava no armário e organizar a sala de estar, e definitivamente não era assim que queria passar o sábado, pelo menos Alice se comprometeu em limpar a garagem e o quintal para que recebessem os convidados, e sabia que ela o faria a tempo sem precisar cobrar que ajudasse.
Carregou a cesta com algumas peças de roupa e caminhou até o quarto da garota, bateu à porta e esperou por uma resposta que não veio mesmo sabendo que Ava estava lá; com medo de que algo estivesse errado, Claire achou melhor entrar e avisou antes.
- Ava, estou entrando.
A porta estava destrancada, uma ordem clara e respeitada naquela casa, então não teve problemas em entrar; o quarto continuava muito organizado para pertencer a uma adolescente, nem mesmo um papel amassado fora da lixeira, e o que a surpreendeu: vazio.
Algo se moveu dentro do armário, um pequeno movimento que talvez passasse despercebido para a maioria das pessoas e pode ver pelas frestas da porta de correr que alguém estava lá dentro.
- Ava?
Não obteve resposta, o que a deixou dividida entre sair e verificar se havia algo de errado.
Acabou decidindo pela segunda opção, mas sem se forçar naquele que devia ser um espaço seguro; deixou a cesta sobre a cama e sentou-se diante da porta do armário, não sabia ao certo o que fazer apenas que precisava dizer algo.
- Ava? Consegue me ouvir, não é? – como não obteve uma resposta, tentou novamente – Se conseguir me ouvir, bata uma vez na porta.
Uma batida.
- Ok, ótimo. Não quer falar agora? Bata uma vez para sim, duas para não.
Outra batida.
- Quer que eu vá embora?
Duas batidas.
- Tudo bem, ficarei aqui até que esteja pronta.
Recostou-se na cama para ficar mais confortável, o tapete macio extremamente limpo também não era ruim, e esperou.
Ocupou-se com o celular, respondendo alguns e-mails do Salve a Terra que pretendia ler mais tarde e eliminando mensagens de spams, até recebeu uma mensagem de Rebecca avisando que os últimos exames feitos com o material genético de Ava e Alice demonstravam que não havia sinal de infecção se espalhando, e Claire soltou um longo suspiro de alívio que nem se deu conta de estar segurando a tanto tempo.
Sem aviso, a porta do armário foi aberta e Ava a olhou lá de dentro, encolhida abraçando os joelhos junto ao peito para caber em um espaço pequeno, e usando os fones de ouvido.
Claire guardou o celular.
- Quer sair daí e conversar?
Ava negou.
- Foi a sirene da ambulância que te incomodou? Seus ouvidos estão sensíveis? – Claire não conseguiu se impedir de procurar possíveis motivações – Dói em algum lugar?
Levou quase um minuto inteiro, e quando Ava falou não foi nada do que Claire esperava.
- Sabia que as pessoas tem um interesse mórbido no que chamam de zumbis? Eu pesquisei na internet.
- É mesmo?
Ava aquiesceu.
- Começou com A Noite dos Mortos Vivos, filme dirigido pelo George Romero, e desde então foram produzidas diversas obras sobre zumbis, entre filmes, séries de tv e jogos eletrônicos. O próprio Romero foi conhecido como o pai dos Zumbis, e dirigiu vários filmes com o tema.
- E o que acha disso?
- Que existe um medo primitivo aí. Quero dizer, o ser humano evoluiu e se tornou o principal predador ocupando o topo da cadeia alimentar, foi o principal responsável por extinguir espécies e destruir o próprio habitar, então acho que faz sentido ter esse interesse um novo predador. Mortos-vivos comem humanos, então se tornam o predador daquele que até então estava no topo, entende? Não temos mais medo de sair pra caçar e acabar como jantar de um bando de lobos selvagens, mas tememos servir de jantar para nossos semelhantes.
- Pensou nisso tudo enquanto estava aí dentro?
- Tive tempo nos últimos dias – Ava respondeu enquanto brincava nervosamente com os próprios dedos – Pensar é bom, faz o tempo passar, e não tem muita coisa para ver na tv hoje em dia e a internet é pior.
Vários noticiários e programas sensacionalistas vinham exibindo imagens do que aconteceu a Raccon City, e com as acusações dos envolvidos na Umbrella se tornado cada vez mais comuns alguns sobreviventes apareceram para dar suas versões; Claire não duvidava de que algumas daquelas pessoas foram persuadidas a falar, entregar fotos e filmagens que conseguiram fazer antes de sair da cidade, e não as culpava por isso. Algumas emissoras deviam pagar milhares de fotos por qualquer material, e para alguém que perdeu tudo poderia ser a chance de um recomeço.
- Está se sentindo triste por que estão passando imagens de Raccon City na tv?
- Também.
- Isso vai acabar, sei que parece que não, mas em algum momento vai acabar.
Ava se balançou para frente e para trás, levou o polegar à boca e mordiscou a ponta nervosamente.
- Jill também vem hoje, não é?
- Você ouviu isso?
- Estava no viva-voz – Ava explicou – E foi antes de colocar os fones.
- Sim, Jill está a caminho e Chris também.
- Eles são ou já foram um casal?
Aliviada com a mudança de assunto, Claire relaxou a postura.
- Não, os dois são teimosos e durões demais para darem certo como um casal.
- Hum... Isso é bom.
Imaginou se a garota tinha uma queda por Jill ou se era apenas parte do seu desgosto por Chris. Deus sabe que noventa por cento das mulheres lésbicas e bi de Raccon City tiveram uma queda por Jill Valentine em algum momento, nem mesmo Claire saiu ilesa e em algum momento da sua vida se viu corando por ela; além disso, se apaixonar por uma mulher mais velha era como um rito de passagem obrigatório.
- Posso saber por que é bom?
- Eles não ficam bem juntos. Sabia que o pai da Jill era um ladrão e até cumpriu pena? Ela me contou que se alistou a pedido dele, pra seguir um caminho diferente e tal.
- É, eu sabia disso.
- E foi quem ensinou ela a arrombar fechaduras, por isso é tão boa – Ava inclinou a cabeça para o lado e seus olhos brilharam com uma pitada de diversão – Jill me ensinou como fazer.
Claire suspirou e esfregou o rosto.
- Preferia que ela não tivesse feito isso sem falar comigo.
- Ela também me ensinou a render alguém por trás e dar um mata leão, não preciso disso, mas foi legal.
- Preciso ter uma conversa muito séria com a Jill, você precisa ser uma adolescente normal.
Ava murchou consideravelmente.
- Eu nunca vou ser uma adolescente normal, isso foi tirado de mim quando me levaram, ou quando minha família me entregou. Ainda não sei no que devo acreditar, não com certeza.
- Sinto muito.
As palavras de Claire eram verdadeiras, tanto por insinuar que um dia aquela garota poderia ser como uma adolescente americana comum quanto pelas incertezas que carregava; anos de manipulação da Umbrella não seriam resolvidos com meras palavras, ela precisaria ver com seus próprios olhos.
- Tudo bem – Ava tirou os fones de ouvido e os colocou de lado antes de sair do armário – O que aconteceu, aconteceu.
Claire também se levantou e segurou a mão da garota.
- Então vamos esquecer isso tudo por um fim de semana, hoje teremos um jantar divertido em família e amanhã é dia quatorze de fevereiro, não vai querer perder a oportunidade de provocar Jill – assim como acontecia todas as vezes que mencionava algo sobre a frugal cultura popular, Ava a olhou como se fosse um quadro em branco – É Valentine’s day, entendeu?
Ava sorriu ao se dar conta do trocadilho com o sobrenome de Jill, um dos seus ratos sorrisos, como se tivesse feito a maior descoberta da terra.
- Chris disse que eles costumavam provocá-la sobre isso todos os anos, o dia todo.
- Então quer dizer que a Rebecca também vem?
- Acho que não. Posso saber o motivo da pergunta?
- Se é dia dos namorados, ela deveria estar com a Jill – respondeu como se não fosse nada, e explicou ao notar a expressão surpresa de Claire: - Jill disse que a Rebecca era sua “esposa do natal”, e como dormiram juntas todos os dias acho que já estão namorando agora.
Claire passou o braço ao redor da cintura de Ava e a puxou consigo para o corredor com a desculpa de que precisava de ajuda para arrumar a cozinha, a diferença de altura entre elas a impedia de abraçá-la pelos ombros, e somente no corredor voltou a falar.
- Sabe que Jill estava provocando o Chris, não é? Ela e Rebecca são amigas há muitos anos, estavam apenas dividindo uma cama. A não ser que... – Claire se virou para Ava – Viu alguma coisa entre elas?
Sua resposta foi um raro sorriso, contido mas cheio de provocação, e novamente aquele brilho no olhar.
- Foi assim que aprendi a arrombar fechaduras.
Ava seguiu à sua frente, feliz e se recusando a dizer mais uma palavra sobre o assuntou ou jamais poderia chantagear uma das duas de novo.
Então era menos sobre ter uma queda por Jill, e mais sobre querer que ela ficasse com uma pessoa em específico. Claire teria que manter os olhos e ouvidos atentos sobre isso.
Assim que chegaram na cozinha Ava de ocupou em esvaziar a lava-louças e guardar todos os utensílios, sabia exatamente onde ia cada coisa e trabalhava metodicamente enquanto Claire colocava a louça suja para ser lavada. Fizeram todo o trabalho em um silêncio confortável, ainda que Claire praticamente sentisse seu cérebro chiar com tantas novas informações que Ava despejou sobre ela na última hora e, infelizmente, não parava por ali.
- Acho que preciso ir para a Romênia em breve.
Claire colocou o último prato na lava-louças e a fechou, tentando ganhar alguns segundos de vantagem.
- Rebecca não nos deu 100% de certeza sobre qual região e...
- Vou descobrir quando chegar lá – Ava respondeu com simplicidade – Sei disso tanto quanto sei como chegar ao meu quarto.
- Ok... – Claire respondeu após alguns segundos – Vamos fazer isso. Você já tem um passaporte, então não será difícil sair do país.
- Quando? – Ava insistiu.
- Vamos falar com Alice, acho que posso tirar uns dias de férias e então faremos a viagem.
Ava assentiu em silêncio, seu rosto contraído em uma expressão severa e determinada que parecia deslocada em um corpo tão juvenil.
Pegando-a de surpresa, Ava avançou em sua direção e a abraçou só para pressionar um beijo em seu rosto.
- Obrigada por tudo, Claire.
Devolvendo o abraço, Claire sorriu.
- De nada. E se não encontrarmos sua casa, você tem um lar aqui.
- É, eu sei disso e é melhor do que já ousei sonhar em ter.
Aquele breve momento em família fez valer a pena.
[...]
A chegada da primavera sempre parecia transformar o castelo em um novo lugar, tudo parecia mais colorido e vibrante, mais vivo, como se a própria natureza despertasse depois de meses adormecida.
Daniela adorava esse lado poético, quase tanto quanto adorava as flores coloridas e o zumbido dos insetos, os seus próprios se tornando mais agitados e energéticos como se o calor os alimentasse de alguma forma; isso tudo a fazia querer correr por aí, praticamente saltitar pelos corredores do castelo enquanto fazia qualquer coisa e ficava difícil até mesmo ficar parada para ler um de seus amados livros, e não raramente Ella precisava ajudá-la a parecer apartável.
Por sorte, sua esposa achava isso muito fofo.
Esposa. Mesmo depois de dez anos a palavra ainda lhe causava arrepios, e se alguém perguntasse Daniela responderia com a mais absoluta certeza de que jamais se arrependeu de ter feito de Naomi sua esposa e, caso fosse necessário, estaria disposta a se casar com ela todos os dias até o fim de sua existência.
A primavera também a fazia se sentir mais apaixonada, embora, nas palavras de Ella (e sua mãe a conhecia muito bem), Daniela era sempre uma romântica incorrigível.
Naquela tarde em que nada parecia fora do lugar, mesmo que Daniela não soubesse que do outro lado do oceano, em outro continente, um membro importante da família em breve iria iniciar sua jornada de fora, tudo parecia tão igual como nos outros dias, exceto pela agitação que sentia.
Saltitou pelo corredor em direção aos seus aposentos, a ala do castelo destinada as filhas permanecia silenciosa naquele horário, a maioria delas estava ocupada com alguma coisa importante e Daniela não esperava encontrar as irmãs por ali, exceto, talvez, Alice que quase sempre tinha as tardes livres agora que não tinha mais tantas lições a aprender.
Ao abrir a porta do seu quarto viu que justamente a irmã mais nova se encontrava lá em companhia de Naomi, as duas rindo baixinho enquanto cochichavam algo; Alice não era a mais próxima de Daniela, sua ligação e admiração por Bela sempre falaram mais alto, mas ela simplesmente adorava Naomi e nunca deixou amá-la mesmo após a tragédia que tirou Theo de suas vidas.
Naomi estava sentada de frente à grande penteadeira para olhar-se no espelho enquanto Alice curvava-se ao seu lado para lhe falar, e ambas riram novamente.
Daniela pigarreou para chamar sua atenção, ao que as duas se viraram para encará-la e notou que os cabelos de Naomi estavam novamente curtos, quase como na época em que se conheceram, e não hesitou em sorrir e se aproximar.
- Você está linda, meu amor.
Talvez sentindo que estava atrapalhando algo, Alice pressionou um beijo rápido no rosto de Naomi e se afastou.
- Vou deixá-las a sós.
- Não precisa ir – Naomi segurou a mão de Alice para impedi-la – Daniela não veio expulsá-la.
- Está tudo bem, preciso encontrar a Judy na fábrica do tio Karl e tenho permissão pra ir sozinha, isso é o máximo de liberdade que tive nos últimos meses.
Daniela estreitou os olhos, desconfiada, e apontou para Alice.
- Tenha mais juízo que a Judy, aquela garota vivia fugindo... Falando nisso, não sei se confio em te deixar com ela.
- Prometo não fugir – Alice sorriu e piscou de forma exagerada os grandes e brilhantes olhos azuis, de modo a convencer Daniela de sua inocência – E para ser justa, você a ensinou como fugir.
- Sai daqui.
A jovem riu sem esconder que suas palavras mais a divertiram do que qualquer outra coisa, beijou novamente Naomi e até abraçou Daniela com força antes de sair correndo do quarto.
- É primavera, ela só está animada – Naomi comentou com certo carinho na voz – Assim como você.
Sem conseguir conter o sorriso, Daniela precisou concordar com sua esposa, estava certa afinal de contas.
Enfim sozinhas, dispensou algum tempo para observar a aparência de Naomi; havia algum tempo que ela não cortava os cabelos tão curtos, muito tempo desde que se parecia exatamente como quando se conheceram, e isso a fez sentir vontade de permanecer o dia todo olhando para ela como se admirasse uma obra de arte. Naomi estava mais velha, mais madura, mas ainda parecia a mesma com as covinhas fofas e olhos castanhos como chocolate agora estavam envoltos por algumas marcas; com o passar dos anos Naomi envelheceu, sua vida seguiu o rumo natural e algumas coisas mudaram como, por exemplo, as marcas ao redor dos olhos e pequenas linhas dos lados dos lábios, os cabelos também pareciam ter escurecido, puxados para o castanho escuro do que antes, nada que a deixasse menos deslumbrante ou encantadora.
Sentindo-se observada, Naomi passou as mãos pelos cabelos curtos e sorriu nervosamente.
- Pedi ajuda à Agatha e Alice disse que era uma boa ideia...
Daniela tomou uma de suas mãos e a levou aos lábios para pressionar um beijo, o gesto fez com que Naomi se calasse e até mesmo conseguiu sorrir.
- Você está linda – disse Daniela ao se abaixar para olhar nos olhos de Naomi – Nunca, em minha existência, vi outro ser tão deslumbrante quanto você.
Tomou-lhe os lábios em um beijo carinhoso, tentando demonstrar o quanto a amava e ansiava por ela, como Naomi era importante somente por existir; os lábios suaves moldaram-se aos seus, encaixando-se perfeitamente assim como elas. Mesmo depois de anos, Daniela adorava como Naomi era pequena e parecia caber perfeitamente em seus braços.
Assim que se afastou, Daniela não lhe deu tempo para pensar e encheu o rosto de Naomi de beijos, pressionando os lábios em cada centímetro de pele que poderia tocar, o que a fez gargalhar,
- Daniela!
- Ratinha! – Daniela imitou seu tom e riu junto, continuou a beijá-la até que Naomi parecesse ofegante e só então se afastou – Vim te chamar para dar uma volta lá fora, podemos aproveitar algumas horas de sol.
Naomi olhou pela janela, como se calculasse se era ou não seguro sair.
- Está tudo bem – Daniela assegurou – Minha mãe disse que está quente o suficiente, mas que devo estar em casa quando o sol de pôr, ainda pode esfriar bastante durante a noite.
- Não quero te colocar em risco, sua segurança é mais importante.
- Eu sei, mas está quente e podemos ir – Daniela insistiu, então fez beicinho e piscou para Naomi – Por favor, amor.
- Não me olhe assim.
- Está funcionando? Diz que sim.
Levou alguns minutos, mais alguns pedidos de reconsideração e vários beijos, mas Naomi finalmente concordou em sair com Daniela e foi o que tornou o dia ainda mais feliz.
Ansiosa para deixar a proteção oferecida pelas paredes do castelo, Daniela tentou se lembrar que não poderia simplesmente sair arrastando sua esposa por aí e fez como sua mãe a havia ensinado há tempos; ficou de pé e ofereceu o braço para Naomi que aceitou o gesto e levantou-se apoiando parte do peso em Dani, a diferença de altura entre as duas era notável e isso a fazia amá-la ainda mais.
- Para onde então?
Daniela tomou alguns momentos para pensar, então sorriu brilhantemente.
- Ao jardim, perto do gazebo.
Sua esposa concordou com um aceno e indicou que deveriam seguir. Naomi era capaz de andar muito bem se pudesse segurar em seu braço e Daniela preferia dessa forma de qualquer jeito, jamais desperdiçaria a chance de estar próxima ao amor da sua existência.
Toda a sua família ficava preocupada com o fatídico dia em que Naomi perderia sua vida e, principalmente, como Daniela reagiria a isso mesmo que ela garantisse que estava tudo bem, e realmente estava. Por mais que a simples ideia de perder Naomi lhe causasse um medo inexplicável e fizesse seu estômago se revirar desconfortavelmente, Daniela havia chegado a um bom termo quanto a isso e já há algum tempo e o fato de que ninguém mais acreditava nela doía um pouco.
Guiou Naomi pelo corredor e pelas escadas, por vezes cruzavam o caminho de alguma criada que acenava educadamente e continuava a fazer o que era preciso; a chegada da primavera significava que o castelo precisava ser limpo, as janelas abertas durante o dia e fechadas ao entardecer, em breve haveria belas flores ornamentando os vasos espalhados por todo lado, e Naomi faria lindos arranjos para seu quarto.
Ainda não havia flores no jardim, era cedo para o desabrochar, mas em breve haveria e seria ainda mais agradável estar do lado de fora.
Durante todo o tempo Daniela divagou sobre o livro que estava lendo, as flores que tentou cultivar na estufa e em como nunca seria tão boa quanto Bela na jardinagem, ao que Naomi a tranquilizou e garantiu que tinha muitos outros talentos e tudo bem não ser tão boa jardineira.
Tudo bem, foi o que Daniela pensou, se sua esposa a tinha em tamanha consideração então não se importava tanto com jardinagem.
Ajudou Naomi a se sentar em um dos bancos e ocupou o lugar ao seu lado, feliz por estar certa em insistir em um passeio, o clima agradável era muito melhor do que passar outra tarde presa no castelo.
As abelhas zuniam, até conseguiu ver uma borboleta pululando por ali, e em breve os arbustos estariam cobertos de flores e haveria rosas é claro, sua mãe as adorava e dava ordens explícitas para que fossem cultivadas todos os anos. O jardim nunca lhe pareceu tão aconchegante, era sua casa afinal de contas.
A única exceção era o monumento dedicado a lembrar a existência de Theodora, mas que para Daniela se parecia mais com um túmulo feito de mármore frio e morto, tão morto quanto a menininha que deveria estar enterrada lá embaixo. Alice ainda tinha a crença infantil de que um dia Theodora retornaria dos mortos, mas Daniela não era boba a ponto de acreditar nisso.
Foi por esse motivo que escolheu um banco longe o suficiente para que Naomi não visse aquele túmulo, não queria deixá-la chateada, não quando ela estava sorrindo como se Daniela tivesse melhorado seu dia.
- Você estava certa, foi uma boa ideia sair um pouco.
- É claro que eu estava certa.
- Mas vamos...
- Vamos voltar antes que fique frio – Daniela recitou de forma obediente – Minhas mães disseram a mesma coisa. As duas.
Naomi sequer tentou esconder uma risadinha.
- E precisa escutar as duas, quero que fique bem.
- Por você, meu amor.
Parecendo satisfeita com sua resposta, Naomi fechou os olhos e respirou fundo como se sentisse um cheiro delicioso, o sol brilhou com mais intensidade quase como se a assistisse com a mesma devoção com que Daniela o fazia, tingindo seu rosto em um tom quente de dourado e nunca a viu mais linda ou perfeita.
Um dia Naomi partiria e Daniela sabia disso, mas o que os outros não sabiam é que ela voltaria.
Daniela tinha certeza absoluta que independente do que acontecesse elas se reencontraram em algum momento; Naomi teria outro nome, outra aparência e provavelmente não se lembraria dela, mas ela voltaria porque estavam destinadas a permanecerem juntas.
Tomou uma das mãos de Naomi e a levou aos lábios.
- Tudo por você, Ratinha.
[...]
A fábrica era sempre caótica, tão diferente do castelo onde tudo seguia ordens estritas, e Alice podia entender porque Judy gostava tanto de ficar ali; no entanto, por mais que apreciasse a companhia o tio e da irmã, ainda preferia ficar com a tia Donna ou no castelo, onde tinha um quarto grande, limpo e bastante confortável a sua espera.
Ali tudo era barulhento, meio sujo de graxa ou poeira proveniente das máquinas e ao mesmo tempo interessante, como se a fábrica fosse uma representação enorme do próprio tio Karl.
Alice não gostava muito, não lhe trazia as melhores memórias e só passou metade da tarde ali a pedido de Judy, caso contrário não teria ido.
- Com licença, moça.
Virou-se em direção à voz, um jovem rapaz lhe sorriu e estendeu uma fina pulseira de ouro que deveria estar em seu pulso.
- Deixou cair isso.
Alice sorriu de volta principalmente pela gentileza do rapaz, e aceitou a pulseira de volta. Queria agradecer, Bela lhe deu aquela pulseira no natal e era importante, odiaria perdê-la, mas alguém foi mais rápido do que ela.
- Sai de perto da minha sobrinha!
Tio Karl veio andando pelo corredor, um homem grande como ele com um martelo ainda maior assustou o rapaz que se desculpou profusamente e praticamente correu para longe o mais rápido que conseguiu.
- Tio Karl!
- Não me venha com tio Karl – zombou – Eu disse pra ficar perto de mim e não sair por aí.
- Só estava dando uma olhada.
Tio Karl a segurou pelo braço, não foi bruto ou grosso, e puxou para que o seguisse.
- Não sabia que era tão ciumento – Alice zombou – E eu só queria agradecer, ele podia ter ficado com a pulseira mas resolveu devolver.
Sua resposta foi um grunhido.
- Desculpe, tio Karl, mas não falo essa língua de urso rosnando.
- Garota, você tá ficando igualzinha a sua mãe – tio Karl a soltou e passou um braço ao redor dos seus ombros em um abraço desajeitado – Sua sorte é também parecer a Loirinha.
- Ainda tá agindo como um urso gigante super protetor.
- Você é minha sobrinha e ninguém sob o teto desta fábrica é bom o bastante pra você.
Alice riu e deu uma cotovelada no tio.
- Sabe que a Judy está aqui, não é? A Velaska também.
- Sim, e continuo mantendo minha palavra. Sua irmã trouxe uma mulher casada pra viver com ela aqui, e a Velaska... Adoro ela, mas não é lá muito prudente.
- Menos do que você?
- Digamos que não sei como é que essa fábrica ainda tá de pé.
- Faz sentido, também não sabemos como castelo continua inteiro.
Resolveu não discutir mais com tio Karl, que a deixou com Judy sob aviso expresso de que não deveria sair por aí e nem dar “muita confiança” aos funcionários; se ele estava agindo assim por vontade própria ou para não ter que aguentar sua mãe reclamando por horas na próxima reunião, Alice não sabia e também não podia fazer nada a respeito.
Faltava menos de uma hora para o amanhecer quando Judy a chamou para ir ao vilarejo, apenas as duas saíram o que a princípio a deixou bastante confusa.
- Irma não vai?
- Não, ela ainda não se acostumou com todas as pessoas do vilarejo apontando e falando sobre ela.
Alice revirou os olhos.
- Esse povo todo não deveria estar trabalhando e cuidando da própria vida?
Seu comentário desdenhoso fez Judy rir.
- Eles trabalham muito e não tem outras coisas para ocupar o tempo, além disso, não é comum que uma mulher casada saia de sua casa para viver com outra. Principalmente em se tratando da fábrica do Lorde Heisenberg, a avó do Damian teria infartado se ainda fosse viva.
Sabia superficialmente sobre a época que Judy residiu com a família de Klaus, pai do seu melhor amigo, e até mesmo Ella morou lá por uns dias mas não foi ao mesmo tempo; a história toda era bastante confusa, e não prestou a devida atenção, no fim só sabia que a matriarca tentou ser uma figura materna para Judith e isso causou problemas.
Assim que colocaram uma boca distância entre si e a fábrica, Judy contou:
- E também, o babaca voltou para casa e Irma não quer vê-lo, e ela também não se sente completamente à vontade no castelo.
- Ele causou problemas? Posso queimar o outro lado da cara dele se precisar.
- Prefiro que não faça isso, e não é assim que uma dama se porta – Judy riu – Meu Deus, você é como uma mistura dos lados mais selvagens das suas mães.
Como Judy se recusou a dar maiores explicações sobre o motivo de Irma não se sentir completamente à vontade no castelo, voltaram a caminhar em silêncio.
Sabia, devido as suas próprias observações silenciosas, que a única nora completamente aprovada e até amada por Lady Dimitrescu era Agatha, o que era meio injusto em sua opinião; Velaska era divertida, leal e até um pouco insensata, mas era esperado que Bela, como a filha de ouro e mais velha encontrasse alguém que sua mãe considerasse à altura, o que fazia com que fosse meramente tolerada; Naomi tinha boas chances de conseguir um lugar especial na consideração de Alcina, talvez até carregar o brasão da casa Dimitrescu como motivo de orgulho, não fosse Theodora ter desaparecido sob sua responsabilidade, o que também era bastante injusto na visão de Alice.
A família tinha visões diferentes sobre a fatídica noite, com Ella culpando a situação mesma, Alcina querendo a cabeça da Naomi, Agatha e Velaska neutras em relação a tudo e suas irmãs tentando não piorar a situação para que Daniela não sofresse. Alice nunca culpou Naomi, não de verdade, e gostava dela.
Mas, lá no fundo, tinha medo que Theo a culpasse. Sua irmã sempre foi mais vingativa do que ela e parecia gostar de revidar, não aceitava “não’s” com facilidade e era bem menos pacífica do que a própria Alice; ainda se lembrava como Theo retrucava e se negava sempre que Ella insistia em praticar suas habilidades, era sempre ela a esticar a língua e correr para Alcina em busca de socorro.
Só esperava que Theo pudesse entender a situação e não culpar Naomi, caso contrário seriam dias difíceis no castelo.
Assim que chegaram no vilarejo Judy lhe deu um pequeno empurrão e recomendou que aproveitasse as próximas horas com sensatez, que a buscaria para levar de volta ao castelo em um horário ainda apropriado e que não tentasse fugir.
Todas as coisas que ela faria em seu lugar, Alice pensou.
O centro do vilarejo foi enfeitado com fitas coloridas, guirlandas feitas com ramos verdejantes e até pequenos tubérculos; o mastro central foi envolvido com flores falsas, cada uma cuidadosamente moldada com papéis tingidos com os restos do inverno difícil pelo qual passaram, e no alto a representação de um ninho com um pássaro os observando, uma oferenda à Mãe Miranda por ter trago de volta a primavera e clamar que ela lhes proporcionasse o renascer da estação.
Algumas pessoas mais velhas, principalmente, até entoavam uma canção para clamar que Mãe Miranda abençoasse suas filhas recém casadas com a dádiva da fertilidade e Alice precisou se esforçar para não zombar das crenças daquelas pessoas.
Se conhecessem Mãe Miranda como ela, já teriam fugido daquele lugar.
Se ocupou em andar por ali, vendo o que os vendedores tinham a ofertar e em como todos eles pareciam ansiosos para atendê-la aquela noite. Apesar do receio, eles sabiam que Alice tinha dinheiro para gastar e após os meses difíceis do inverno não se importavam em bajulá-la.
Encontrou Damian e os dois se puseram a andar juntos, indo de um vendedor a outro, até que a cantoria das mulheres acabou e alguns homens se reuniram em um canto afastado e começaram a tocar seus instrumentos musicais, apenas um acordeão, um violão e um violino desgastado, mas o suficiente para atrair as pessoas para o centro, todas animadas, batendo palmas ao ritmo da música enquanto dançavam com parceiros ou em pequenos grupos.
Agarrou a mão de Damian e o puxou para um grupo pequeno de jovens que ria e distribuía canecas de cerveja entre eles, a única bebida alcoólica que Alice realmente gostava (e tinha permissão para beber) era o vinho produzido no vinhedo e por isso recusou, mas seu amigo aceitou uma bebida e tudo parecia indo bem.
Até que a viu.
Sarah caminhava lentamente por ali, como se não se importasse realmente, esse parecia com todos os outros moradores da vila e era fácil se misturar entre eles, algo que Alice, apesar de tentar usar as roupas mais simples que tinha, não seria capaz de fazer. Os cabelos escuros e informados estavam soltos, caindo em cachos grossos sobre os ombros e a camisa larga, era quase como se Sarah quisesse parecer desleixada sem realmente ser, como se a natureza a guiasse no fim das contas.
Alguém passou o braço ao redor dos ombros de Alice e Damian fez o mesmo do outro lado, antes que percebesse estava sendo arrastada para uma roda de dança, todos pulando e se movendo com uma estranha sintonia, rindo, cantando e gargalhando.
Ao dar uma volta completa notou que Sarah estava no mesmo lugar, dessa vez bebendo algo de uma caneca de metal, e pode jurar que os olhos escuros brilharam ao pousar sobre Alice, ou talvez fosse o que quisesse ver.
Já estava ficando tonta, embriagada com a energia contagiante, gargalhando como a tempo não fazia, quando pararam de repente e teria caído não fosse o braço forte ao redor da sua cintura.
Alice precisou piscar algumas vezes para notar que Sarah a estava segurando muito perto, e sentiu as bochechas queimarem.
- Peguei você, Princesinha.
Pela primeira vez o apelido não lhe causou raiva, mas ainda assim corou e murmurou um agradecimento ao lembrar-se dos bons modos, odiando-se por ser tão clara a ponto de corar como um tomate com um simples toque.
Sarah se afastou parecendo divertida, mas pelo menos não estava com raiva ou zombando de Alice.
Assim que ela se afastou, Damian se aproximou e tocou seu braço.
- Está tudo bem?
Alice demorou alguns segundos para se recompor, e quando o dez tentou agir como uma dama e disfarçar (muito mal) seus sentimentos.
- Tudo bem, só estou com fome – disse ao agarrar a mão do amigo e puxá-lo – Vamos!
Comprou tortinhas de carne, bastões de caramelo e tortas recheadas com compotas de maçãs e amoras, e dividiu tudo com Damian; comeram enquanto observaram os outros dançando, dada a casualidade da situação estavam comendo com as mãos e não hesitou ao imitar o amigo ao lamber o caramelo grudento em seus dedos mesmo sabendo que sua mãe teria um ataque se a visse naquele momento, mas talvez Ella se sentisse orgulhosa.
De fato, naquele momento, Alice se parecia tanto com Ella que poderia muito bem ser sua versão mais jovem.
Assim que escureceu completamente uma grande fogueira foi acesa, e quando uma garota bonita reuniu coragem para convidar Damian para dançar Alice o empurrou com força para que não tivesse a chance de negar, ele merecia se divertir.
Sem Damian a maioria das pessoas não ousava se aproximar dela e não conseguiu encontrar Sarah em lugar algum, então lhe restou observar as pessoas dançando e comemorando ao seu redor.
Até que algo chamou sua atenção, um lampejo em meio a escuridão, vindo da viela entre duas casas. Alice olhou atentamente até que algo brilhou novamente e, vencida pela curiosidade, resolveu investigar do que se tratava.
Caminhou até lá desviando de um ou outro morador já trôpego, precisou recusar a oferta de dois vendedores e só então notou que o brilho se afastou na escuridão, já se aproximando dos portões do pequeno cemitério.
A música e as risadas ficaram para trás, os aldeões respeitavam o solo sagrado e a folia não chegava até lá, mas Alice continuou até os portões decrépitos e parou.
A figura esquálida saiu de trás da estátua erguida em homenagem à Mãe Miranda, e Alice o reconheceu imediatamente.
Adam parecia mais bonito do que nunca, até mais saudável, e sorriu como costumava fazer quando ela era mais nova e o considerava um bom amigo e protetor. Parte dela quis acreditar que ele estava de volta, outra, talvez guiada pela maturidade, a fez dar um passo atrás.
- Sou eu, Alice – Adam falou com suavidade – Estava a sua espera.
- Aqui?
- Sim.
Ele se aproximou não de forma ameaçadora mas sorrindo meio galante, meio como os príncipes inocentes dos livros de contos de fadas, e em outros tempos Alice teria suspirado e estendido a mão para que ele a beijasse.
- O que você quer?
Ao invés de responder, Adam a olhou de cima abaixo com desgosto.
- Precisa tirar essas roupas e se vestir de modo adequado para uma dama da sua estirpe, mas receio que isso terá que esperar – Adam suspirou e passou a mão pelo rosto – Estou com problemas e preciso da sua ajuda, Alice.
- Com o que?
- Vem comigo e eu te conto.
Alice deu um passo atrás.
- Não vou a lugar algum até me contar o que está acontecendo.
- Preciso de ajuda – Adam repetiu com angústia – É minha mãe, entende? Preciso de ajuda! Nenhum dos meus irmãos me escuta, nenhum deles me salva, Alice!
- E acha que eu posso te salvar? É Miranda!
- Você pode! Você pode, se vier comigo.
De onde estavam ninguém a ouviria gritar por ajuda. Por outro lado, ninguém ouviria Adam gritar também.
- Me desculpe, Adam, não posso fazer nada por você. Mas se quer um conselho, devia fugir pra longe da Miranda enquanto é tempo.
Adam se adiantou em sua direção e segurou-lhe o braço com força o suficiente para ser firme sem machucá-la.
- Você não entende! Nenhum de vocês tem ideia do que ela é capaz de fazer, do que faz comigo – ele praticamente chorou – E meus irmãos não ligam, nem o Karl me tira das garras dela! Vem comigo, Alice, e eu te conto como me ajudar.
- Tem dois segundos para me soltar.
- Estou implorando, Alice! Por favor...
Cansada daquela ladainha, Alice agarrou o braço de Adam com a mão livre e deixou o calor fluir através dos seus dedos, não foi o suficiente para colocar fogo na camisa mas serviu para fazê-lo gritar de dor e soltá-la.
- Estou avisando, é melhor ficar longe de mim. Não me importo com o que a Miranda faz ou não com você, se tem juízo é melhor fugir por conta própria.
- Só não quero ficar como o Moreau...
Adam fez menção de dar um passo em sua direção, mas alguém pigarreou e os dois notaram que não estavam tão sozinhos.
À apenas alguns metros dali, Sarah estava parada com um forcado em suas mãos e encarou Adam com uma expressão séria e até ameaçadora.
- Acho que a moça disse para ficar longe.
Adam olhou de Sarah para Alice e pareceu reconsiderar, deu um passo atrás e ergueu as mãos em sinal de rendição.
- Só queria conversar com ela.
- Quando quiser falar comigo, não falei – Alice bufou – Cuide da sua vida, Adam. O que quer que aconteça naquela casa, é problema seu e só seu.
Virou-se e se afastou o mais rápido que conseguiu, não dirigiu outra palavra à Adam ou Sarah mas poderia jurar tê-lo ouvido murmurar “não é só problema meu”; a outra garota a seguiu em silêncio até que se afastaram do cemitério e se aproximaram novamente da festa, mas não disse uma palavra o que enfureceu Alice.
- Agradeço a ajuda, mas posso cuidar de mim mesma.
Sarah a olhou de modo meio zombeteiro, mas também admirado.
- Não queria que sujasse suas mãos, Princesinha.
- Não te incomodou mais cedo.
- Me incomoda agora!
Sua pequena explosão fez Sarah rir, como se estivesse se divertindo muito.
Alice lhe deu às costas e voltou a caminhar em direção ao vilarejo, o tempo todos seguida de perto por Sarah, até encontrar Judy à sua espera.
- Hora de ir.
Então Judith pareceu notar sua companhia e acenou para Sarah, que ainda trazia o forcado em mãos.
- Algum problema.
- Nada – Alice se apressou em responder – Me perdi, Sarah me encontrou e foi gentil o bastante para me acompanhar de volta. Agora podemos ir?
Lançou um olhar penetrante à Sarah, como se fosse que não ousasse proferir uma palavra sequer sobre a cena que acabara de presenciar; e embora Sarah tenha parecido um pouco surpresa, apenas acenou confirmando a história e apertou a mão de Judy.
- Ela está entregue e segura.
- Obrigada.
Sarah se afastou, deixando as irmãs à sós.
- O que aconteceu? – Judy perguntou parecendo desconfiada.
- Nada – Alice insistiu – Vamos voltar pra casa.
[...]
Após o jantar, Ella e Alcina se recolheram a uma das salas privativas do castelo, o clima ainda muito frio para que pudessem desfrutar de algum tempo no terraço; uma criada serviu o chá e saiu silenciosamente após Ella dispensá-la, era sempre melhor receber seus pedidos ao invés das ordens de Alcina.
Ella não comentou sobre suas filhas terem vindo do vilarejo, nem sobre Alice ter passado boa parte da noite em companhia dos moradores, e Alcina preferiu fingir não notar, embora sua expressão de desgosto deixasse claro o que pensava sobre isso.
Algo havia acontecido, soube apenas de olhar para a expressão de Alice e teriam uma conversa sobre isso assim que surgisse a oportunidade, agora teria que lidar com sua esposa.
- Algum problema, querida?
Alcina a olhou como se não acreditasse na pergunta, o que fez Ella rir.
- Não entendi a graça, draga mea.
- Você está com ciúmes da sua filha.
- Estou sendo cuidadosa, não me lembro de permitir que Alice fosse ao vilarejo.
- Não – Ella respondeu com cuidado – Permitimos que ela passasse algum tempo com Judith, em momento algum especificamos o que elas poderiam ou não ter feito juntas.
Sua esposa estreitou os olhos.
- Mas em momento algum falamos que poderia ir.
Outra pessoa teria tremido sob o olhar aguçado de Alcina, mas Ella sequer pestanejou já muito acostumada a sua esposa; ainda em silêncio, surrupiou um torrão de açúcar e enfiou na boca com um sorriso provocador.
- Não gosto que Alice fique andando pelo vilarejo – Alcina reforçou – Principalmente sem alguém para protegê-la.
- Ela estava com a irmã mais velha.
- E nós duas sabemos que a Judith sempre teve uma tendência a desobedecer.
- Verdade, mas ambas voltaram em segurança.
Levantou-se de sua cadeira e deu a volta na mesa para encontrar Alcina, logo abraçou seu pescoço e pressionou um beijo no rosto que tanto amava.
Como sempre, o perfume de Alcina a envolveu e inebriou.
- Amor – Ella falou com a voz doce – Não fique tão brava, ela está bem.
Pode sentir Alcina relaxar sob seu toque ainda que tentasse disfarçar, teimosa como era precisava tentar demonstrar alguma dominância mesmo que ínfima em sua relação.
- Além disso – continuou – Acho que Alice tem uma nova paixão.
Alcina grunhiu baixinho.
- E isso deveria fazer com que eu me sinta melhor?
- Pelo que Daniela me contou, é uma garota do vilarejo.
- Como isso é melhor?
- Podemos ficar felizes que ela não está mais correndo atrás do Adam como antes, além disso é bom que ela se sinta à vontade para nos contar sobre suas paixões.
Um curto silêncio se instaurou enquanto Alcina parecia pensar em suas palavras, levou a xícara de chá aos lábios e por fim meneou a cabeça em um aceno curto.
- Talvez – Alcina cedeu – Porém gostaria que Alice não gostasse tanto da companhia dessas pessoas do vilarejo, nunca haverá alguém bom para ela naquele lugar imundo.
Apesar do desdém nas palavras, Ella riu. Poderia ficar chateada com a esposa ou lhe dar uma lição, e jamais perderia a oportunidade.
- Amor, não se esqueça que vim de um lugar muito pior. Na verdade, eu dormia em um chão frio e você ainda desejou se casar comigo.
Alcina não deu o braço a torcer, pelo contrário, envolveu a cintura de Ella e a puxou até que estivesse em seu colo.
- Isso porque você me conquistou – disse ao pressionar um beijo no rosto de Ella – E agora você é Lady Elleanor Dimitrescu, minha esposa, meu amor...
- Minha vida – Ella sorriu ao beijar os lábios de Alcina – Deu certo pra nós duas, deu certo para nossas filhas mais velhas... – listou – Devemos dar a chance que nossa filha mais nova se apaixone e tenha as próprias experiências.
- Ela ainda é tão jovem – Alcina suspirou – Nossa menininha.
- Alice sempre vai ser sua menininha, todas elas ainda são, mas não podemos governar a vida dela e muito menos os sentimentos, seria bobagem tentar algo tão imprudente.
- Se eu fosse tão prudente, não teria me apaixonado por você – Alcina devolveu – Uma mulher que adora mandar em mim.
- E você ama cada segundo disso, meu amor.
Puxou Alcina para que se abaixasse o suficiente para beijá-la, enredeou os dedos pelos cachos escuros e sorriu ao senti-la suspirar contra seus lábios.
A verdade é que a paixão, com o tempo se torna amor; e o amor, se tiver a chance, se torna devoção.
Ella e Alcina não apenas se amavam, eram devotas uma à outra, como almas gêmeas destinadas a se reencontrarem não importa quantas vidas se passassem; nem mesmo os éons do universo seriam capazes de separá-las, tampouco uma força mundana.
Distribuiu rápidos beijos pelo rosto de Alcina, adorando a proximidade e como as mãos grandes e gentis seguravam sua cintura para impedi-la de se afastar.
A amava completamente, todas as partes, até mesmo as que Alcina considerava monstruosas; Ella a via como um ser quase inatingível, incrível demais para pertencer a este mundo, e mesmo após atingir a própria imortalidade não deixou de achá-la maravilhosa. Alcina era uma criatura cheia de dualidades, extremos tão afiados quanto aconchegantes, protetora e destrutiva em igual porcentagem, e ainda assim era tão fácil amá-la.
Ella estava disposta a fazer qualquer coisa por aquela mulher, por sua família, até mesmo corromper a própria alma caso fosse necessário.
[...]
O sol ainda não havia iniciado sua descida no horizonte quando a campainha soou pela segunda vez aquela tarde, a primeira foi para anunciar a chegada de Elyna que já se encontrava no quintal com Alice parecendo bastante animada para uma reunião de família, e dessa vez Claire pediu que abrisse a porta (depois de verificar quem estava do outro lado) antes de se encaminhar para a cozinha e deixá-la sozinha na sala.
Antes de abrir a porta verificou as câmeras de segurança que Alice havia espalhado ao redor da casa, era impossível entrar ou sair sem ser capturado por uma delas e pode ver Rebecca junto a porta, Jill logo atrás olhando nervosamente sobre o ombro e alguém saindo de um táxi; assim que reconheceu Chris se atrapalhando com as malas na calçada, a capinha soou novamente demonstrando a pressa das mulheres, ao que Ava se dirigiu até a porta e abriu mesmo sem entender o que estava acontecendo.
Assim que abriu uma fresta um braço forte a empurrou e Rebecca entrou, logo seguida por Jill que bateu a porta com força, passou a tranca de segurança e se recostou contra ela como para garantir que permaneceria fechada.
Ava não teve tempo de provocá-la com o “Valentine’s Day” como Claire mandou que fizesse, Chris bateu do outro lado.
- Que merda é essa, Valentine?! Me deixa entrar!
- Só se você prometer se comportar! – Jill gritou de volta e então se virou para Ava – Cadê suas mães?!
Novas batidas insistentes com Chris pedindo para entrar, mas Jill não se moveu.
- Não estou brincando, Valentine!
- Só se você se comportar, Redfield! – Jill devolveu e se voltou novamente para Ava – Onde elas estão?
Ava levou alguns segundos para entender o que estava acontecendo, não parecia mais com uma provocação entre irmãos teimosos como presenciou durante o feriado do natal, não apenas Jill parecia em modo de proteção como Rebecca tinha os olhos arregalados; além disso, o silêncio do outro lado da porta foi bastante suspeito.
- Elas estão nos fundos, mas ele pode chegar lá se for pela lateral da casa...
- Merda! – Jill praguejou ao se afastar da porta e correu em direção à cozinha cuja porta dava para os fundos da casa e gritou para ninguém em especial – Cuida dela!
- Tudo bem – tanto Ava quanto Rebecca responderam juntas.
As duas trocaram um olhar, a outra mulher parecia confusa e um pouco indignada.
- Jill me pediu para cuidar de você, não o contrário.
- Tem certeza? Você é pequena.
- Isso não quer dizer nada – Rebecca rebateu – Posso muito bem cuidar de mim mesma.
Ava deu de ombros mesmo não tendo tanta certeza disso, afinal de contas era pelo menos vinte centímetros mais alta e muito mais forte então por que precisaria ser cuidada?
A curiosidade levou a melhor sobre ela e decidiu ir até os fundos da casa para ver o que estava acontecendo, Rebecca a seguiu de perto e assim que chegaram à cozinha o som de vidro quebrando fez com que seus tímpanos zumbissem e mesmo assim se postou protetoramente diante da mulher mais baixa; vozes alteradas, porém abafadas como se Ava estivesse muito longe, chegaram até elas através da porta ainda fechada.
Rebecca tentou segurar seu pulso, mas Ava se livrou do aperto dela com um safanão e continuou em direção à porta deslizante de vidro. Precisava seguir pela lateral até os fundos da casa para encontrá-los, no entanto, as vozes alteradas chegaram assim que pisaram do lado de fora.
Um cachorro latiu no quintal do vizinho, o que fez Ava tampar os ouvidos com as mãos e até pensou em voltar para pegar seus fones mas logo recomeçaram a gritar e Rebecca passou por ela correndo; mandou o cuidado para o espaço e a seguiu, assim que fez a curva quase bateu na mulher mais baixa e teriam caído não fosse capaz de parar tão rápido.
Chris havia segurado Alice pelo colarinho e agora a pressionava contra a parede enquanto Claire gritava que ele deveria soltá-la imediatamente, por sua vez Jill afirmava que ele havia prometido manter a calma e conversar de forma civilizada e logo Rebecca se juntou ao coro pedindo que todos se acalmassem; Ava apertou as orelhas com mais força, aquele falatório todo pareceu ecoar dentro da sua cabeça juntando-se com o cachorro latindo e o zunido do vidro se quebrando que parecia se repetir de novo e de novo. Do outro lado do pátio Elyna permanecia sem saber o que fazer, metade de um cachorro quente na boca e a mão pingando sangue nos milhares de caquinhos de vidro ao seu redor.
“...a Umbrella!...”
“Chris!”
“Traidora!”
“...escuta...”
“...acalmem...”
“Não!”
“... solta...”
“...fui eu...”
“...a culpa...”
O zumbido em seus ouvidos cresceu, abafando tudo ao seu redor até que parecesse um rádio entrando e saindo da sintonia, só conseguiu captar uma palavra ou outra e sequer conseguiu identificar quem falava o que; de repente tudo ficou mais claro, como se o sol aumentasse sua intensidade da mesma forma que o zumbido incômodo, doeu e Ava precisou fechar os olhos com força e assim mesmo a luz avermelhada parecia penetrar através das pálpebras.
Sua cabeça doeu e se tornou uma grande confusão, a cacofonia se tornou cada vez mais insuportável, o zumbido produzido pelo vidro estridente se partindo, as vozes alteradas, o cachorro latindo, os carros da rua e parecia não ter fim; para piorar, parecia enxergar a cena perfeitamente ainda que com os olhos cerrados, pode ver Chris pressionando uma Alice rendida que parecia aceitar a punição, Claire e Jill gritando, Rebecca à certa distância pedindo que parassem com aquilo e Elyna dividida entre vir em sua direção e tentar apartar a briga.
Assim como os sons, a cena desenrolava-se em algum nível nas profundezas da sua mente até que não aguentou mais.
- PAREM COM ISSO!
A brancura tomou conta do seu ser, como mergulhar em um mar leitoso, e o zumbido aumentou de tal forma a consumir toda a cacofonia ao seu redor até que não existisse mais nada; a dor veio em seguida, excruciante como se alguém muito forte resolvesse torcer seu cérebro tal qual um pano velho, e Ava teve vaga noção de estar gritando. Não, seu corpo estava gritando, ela estava dentro da mente em frangalhos que se deteriorava até começar a derreter.
Era isso, seu cérebro estava derretendo e massa encefálica vertia pelo nariz.
Aos poucos o zunido diminuiu, como se alguém baixasse o volume gradativamente, e a brancura se desvaneceu até que não passasse de uma névoa, deixando Ava atordoada, assistindo a tudo como se estivesse muito longe do seu corpo.
Dois pares de mãos a seguravam, tentando mantê-la ao menos sentada no chão; Chris estava caído sentado junto à parede do galpão dos fundos à pelo menos cinco metros de distância de onde estava anteriormente, não parecia machucado apenas atordoado; Elyna estava perto dele, como se avaliasse se tentaria algo novamente; entre os dois e Ava, Alice se postou silenciosa e preocupada.
- Você está bem?
Ava olhou para sua direita, ainda boba e tonta, o zumbido em seus ouvidos desaparecendo, e Claire entrou em foco.
- Consegue me ouvir, querida?
Só conseguiu assentir bobamente, parecia não ter controle completo sobre seu corpo.
Outro par de mãos, dessa vez fortes e calejados, seguraram seu outro braço e alguém tocou seu rosto para que olhasse para frente.
- Quantos dedos tem aqui?
Imaginou que Jill estivesse erguendo alguns dedos à sua frente, mas não conseguiu olhar; a cabeça pendeu para baixo novamente e conseguiu enxergar a mancha vermelha brilhante que empapava a camiseta branca que estava vestindo para a ocasião.
- Aqui, limpa o rosto dela.
Parecia Rebecca. Um pano macio foi pressionado em seu rosto para limpá-la, ouviu-as murmurando sobre a quantidade de sangue que saiu de suas narinas e teve vontade de pedir que parassem com aquilo.
Ava levou à mão ao nariz e à diante dos olhos.
Vermelho brilhante.
Aos poucos o mundo começou a voltar ao normal, tudo entrou em foco e Ava se sentiu mais orientada em relação ao tempo e espaço; notou que tanto Elyna quanto Alice e Chris se aproximaram, suas diferenças esquecidas diante da pequena explosão de energia.
- O que aconteceu?
- Agora não, Chris – Claire mandou – Vamos para dentro.
- Ela me arremessou do outro lado do quintal?
- Aqui não – Jill grunhiu – Vamos levar ela lá para dentro.
Ava olhou novamente para a própria roupa.
- Preciso me trocar.
Elyna se ofereceu para carregá-la até lá em cima e Ava aceitou a oferta, não teria aceitado de qualquer um dos outros mas dela a ajuda foi bem-vinda; ainda assim a morena a esperou do lado de fora do banheiro e deixou que tivesse seu tempo se limpando, o sangue que escorreu no seu nariz foi mais do que uma pequena hemorragia e já secava em alguns pontos do pescoço e acima dos seios. Lavou-se da melhor maneira que pode, certificando-se de tirar cada manchinha de sangue em sua pele e deixou a camiseta suja no cesto, desejando mais do que tudo se afastar daquele cheiro; conseguiu vestir-se sozinha, embora Elyna continuasse pairando ao seu redor como se estivesse preocupada que Ava pudesse surtar novamente do nada, não podia culpá-la por isso quando nem entendia direito o que havia acontecido.
- Tá melhor agora?
Ava terminou de vestir a camiseta preta (Ramones, presente de Elyna), sem se importar com a presença da outra que corou e olhou para o outro lado.
- Estou. Me sinto eu mesma.
- Está pronta pra descer?
- Uhum.
Alguém bateu à porta e Elyna abriu para revelar Rebecca.
- Não quero incomodar, mas será que eu posso...
- Me examinar? – Ava perguntou desanimada e sentou-se na cama – É, você pode.
Rebecca entrou no quarto com uma pequena mala de mão a reboque, pelo menos não pediu que Elyna se retirasse, e começou a fazer os check-ups de rotina; mediu a pressão de Ava (normalmente acima da de um ser humano normal), ouviu seu coração, coletou amostra de tecidos e garantiu que faria a coleta de sangue em um outro dia para lhe dar a chance de se recuperar.
Ela foi gentil o tempo todo, de uma forma que os cientistas da Umbrella jamais seriam, e por fim insistiu em medir a altura de Ava.
- Um metro e oitenta e dois centímetros – Rebecca anunciou parecendo satisfeita – Pelo menos sabemos que você não está mais crescendo.
Ava tentou sorrir, o que foi até fácil depois de Elyna tentar aliviar o clima:
- Ainda bem, imagina se ela cresce ainda mais?! Não vai conseguir passar pela porta!
Conseguiu rir, mas apenas brevemente antes de se lembrar:
- Os outros não eram tão altos quanto eu, talvez não seja algo ligado ao t-vírus, talvez minha família biológica seja naturalmente alta.
- Pode ser – Rebecca concluiu – Não estou realmente preocupada com a sua altura, mas gosto de manter um registro dos seus parâmetros – então baixou a voz como se comentasse um segredo – Depois de estudar suas amostras de sangue fiquei confiante que posso criar uma vacina, acho que vai dar certo e poderemos salvar muitas pessoas.
- Isso seria incrível.
Queria sorrir de volta, realmente queria, mas a necessidade de uma vacina implicava na possibilidade de outra infecção em massa como em Raccon.
- Vamos descer – Rebecca chamou – Acho que vocês precisam fazer parte dessa conversa.
Saíram juntas do quarto e desceram as escadas, na sala de estar os adultos se sentaram nos sofás ao redor da mesa de centro e tinham uma conversa muito mais civilizada, ainda que tensa.
- Eu trabalhei para a Corporação Umbrella – Alice contou – Fui recrutada como segurança e logo subi de cargo, a confiança também aumentou e fui levada à colmeia; confesso que no início não tinha a intenção de fazer nada, o salário era bom e eu não tinha mais ninguém no mundo com quem me preocupar, então continuei meu trabalho dizendo a mim mesma que eles só faziam experimentos em animais e que isso era tão ruim quanto legalizado, e foi assim até conhecer Claire.
Sentada ao lado de Alice, Claire estendeu a mão para segurar a dela e indicou que Ava se sentasse do outro lado para que ficassem juntas, Rebecca assumiu o lugar ao lado de Jill e Elyna sentou-se de pernas cruzadas no chão, para ficar protetoramente ao lado de Ava.
- Conheci Claire em um café durante minha folga, ela estava em Raccon para visitar o irmão que era membro dos S.T.A.R.S e eu soube que queria vê-la todos os dias depois disso. Raccon não fica longe daqui, então foi fácil vir e passar o máximo de tempo possível, e aos poucos entendi que as coisas não podiam continuar como antes, que corporações como a Umbrella precisavam ser paradas e eu poderia fazer isso.
- Simples assim? – Chris perguntou.
- Não seria fácil e eu sabia disso, mas Claire merecia um lugar mais seguro sem a Umbrella nele e derrubar a corporação se tornou minha missão de vida.
Se um alfinete caísse no meio da sala ainda seria ouvido tamanho o silêncio, ali estavam todas as pessoas que sofreram perdas irreparáveis por causa da Umbrella e ainda assim Alice estava admitindo todos os seus erros da forma mais crua possível; Ava pode ver que Chris ainda carregava certa mágoa no olhar, Jill e Rebecca se recusavam a olhar para qualquer um dos dois, e Claire se manteve impassível.
- Confessei tudo a Claire e através do Salve a Terra conheci um grupo infiltrado na Umbrella, eu tinha senhas e chaves de segurança, poderia me infiltrar com mais facilidade e fiz isso enquanto tentava manter todos longe de Claire. Tem a minha palavra, ninguém da Umbrella me associou à Claire ou ouviu o nome dela.
- É melhor mesmo.
- Quando recebi a oportunidade de uma promoção, aceitei e fui transferida para uma sede na Rússia, quilômetros abaixo de uma geleira e muito maior do que a colmeia em Raccon City. A Umbrella não poupou gastos, investimentos altíssimos em armas virais e... – Alice fez uma pausa ao apontar para Ava – Soldados bem treinados.
- Crianças – Jill quase cuspiu – Malditos de merda!
- Pelos registros mais de cinco mil crianças foram raptadas ao redor do globo, somente seis sobreviveram aos experimentos e até onde sei Ava foi a primeira.
Chris voltou seus olhos para Ava e algo neles brilhou, não feroz quanto olhava para Alice mas algo como pena e foi pior.
- Então você não é sobrinha da Alice? – Chris perguntou e ela acenou negando – Sinto muito, garota.
Fez-se um novo silêncio constrangedor, cortado apenas por Alice que decidiu narrar todos os acontecimentos na colmeia e como o vírus vazou para Raccon City, vez ou outra Elyna completou com o que se lembrava e Ava deixou-a falar, não tinha grande interesse em participar da conversa.
- Sinto muito por ter perdido o controle – Chris disse por fim – Mas ainda não acho que seja a melhor pessoa para minha irmã...
- Eu sei disso.
- E não posso deixar de te culpar pelo que está acontecendo lá fora.
Todas, com exceção de Jill e Rebecca, se olharam de modo confuso.
Claire teve a coragem de perguntar:
- Como assim o que está acontecendo lá fora?
Seu irmão mais velho suspirou e esfregou os olhos, de repente parecendo muito cansado para qualquer coisa.
- Parece que alguém dentro da Umbrella conseguiu vender o vírus, tivemos outros seis focos de infecção até o momento, a maioria deles concentrados no Maine, Vermont e Detroit, mas tivemos um em Minnesota.
- Como? – Alice perguntou – E como isso não está na internet ou nos jornais?
- Estão abafando o caso – Rebecca contou – Qualquer material é apagado das redes, os sobreviventes estão sendo detidos ou coagidos. Não querem causar pânico.
Claire riu, incrédula.
- É brincadeira, né?
- Infelizmente, não – Jill respondeu – E achamos que só vai piorar.
- Foi assim que descobri parte da verdade – Chris contou – Estamos em contato com alguns sobreviventes, velhos amigos e até antigos membros do exército, o governo tem interesse em montar uma organização para lutar contra o que está chamando de bioterrorismo.
- Estou dentro – Alice disse imediatamente.
- Não é bem assim...
- Você não pode ir de novo!
Chris e Claire disseram ao mesmo tempo.
- Eu preciso, só assim vou conseguir começar a me redimir por tudo o que causei.
Uma pequena discussão se iniciou com Claire afirmando que Alice não tinha nada para redimir, que fez mais do que pode, e que tinham uma filha para criar e ela não poderia simplesmente sair por aí caçando bioterroristas.
Ava concordava em partes, jamais culpou Alice pelas atitudes da Umbrella e, dentre todos eles, ela teve as piores perdas e de acordo com seu próprio julgamento teria mais motivos para sentir raiva; ela sentia raiva, mas de outras pessoas. Além disso, apesar de achar louvável que Claire a visse como uma filha ser protegida, alguém que merecia ter uma vida calma e segura, sentiu-se culpada por estar no meio de uma discussão assim.
- Você estará aqui, Claire – Alice determinou – Eu não vou ficar fora o tempo todo, podemos revezar as viagens quando a Salve a Terra precisar de você. Ava não vai ficar sozinha, ela nos tem e somos uma família.
A discussão perdurou até que Rebecca intervisse e afirmasse que ainda não tinham ideia de o projeto B.S.A.A seria ou não aprovado, até lá teriam bastante tempo para ajeitar tudo e discutir as implicâncias do alistamento; apesar das diferenças, Chris precisou admitir que Alice seria um membro valioso na equipe, e Jill gostava de trabalhar em grupo, o que deixou Claire sozinha em uma discussão na qual Ava não queria se meter.
- Acho melhor fazer algo para comer – Rebecca disse por fim – As garotas não comeram nada e Ava perdeu muito sangue.
- Boa ideia – Jill concordou – Me prometeram hamburgueres.
Mesmo cansada e com a cabeça zumbindo com tantas informações, Ava se lembrou e não conseguiu se impedir de sorrir:
- Você merece, é Valentine’s Day!
Demorou dois ou três segundos, mas todos os outros pegaram a piada e riram, exceto Jill que permaneceu boquiaberta e chateada, até Claire pareceu esquecer que estava chateada dois segundos atrás.
- Sua merdinha atrevida – Jill grunhiu meio sorrindo e avançou em direção à Ava – Vou acabar com você quando te pegar.
Ava escapou de suas mãos e cantarolou:
- É Valentine’s day e Jill Valentine tem uma namorada. N-a-m-o-r-a-d-A!
A tensão se dissipou momentaneamente e todos voltaram para o quintal. Já estava escuro e tudo precisava ser limpo para que pudessem comer, mas funcionou de alguma forma, como uma família disfuncional.
Mais tarde, quando todos dormiam, Ava sussurrou para que apenas Elyna, deitada no colchão ao lado da sua cama, pudesse ouvir.
Lá embaixo Chris novamente estava apertado no sofá pequeno demais para um homem do seu tamanho; mais à frente no corredor, Jill e Rebecca dividiam uma cama no quarto de hóspedes e, mais adiante, Claire e Alice.
Ava não queria ser ouvido por nenhum deles.
- Acho que é hora de ir embora, vai ser mais fácil pra eles se eu não estiver aqui para atrapalhar.
Elyna se sentou.
- Como assim?
- Você viu como estavam preocupados com o que fazer comigo, então acho melhor ir embora.
- Elas não vão te deixar ir – Elyna cochichou como se fosse óbvio.
- Deixa essa parte comigo. Só sei que vai ser melhor ir, já tenho pensado nisso e agora tenho certeza, só estou contando porque quero saber se quer vir comigo.
- Pra onde você vai?
- Romênia.
Elyna sorriu e assentiu.
- Já estava na hora.
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