Depois de andar 30 quilômetros durante cinco horas, todos os semideuses estavam claramente cansados. Principalmente Nero que não fadigava-se apenas fisicamente, mas seu psicológico era como uma pedra intrusa no sapato. Tudo graças à visão e as palavras de Eve que, diferentemente de Nero, eram incansáveis, e faziam um trabalho exímio martelando em sua mente.
Por volta das seis horas da tarde, debateram e enfim declararam que até a manhã do dia seguinte, repousariam. Jogaram suas mochilas no chão e desabaram feito pedras rumo a sua matéria de origem.
Depois do encontro com Al, Leith e Eve, os seis semideuses pararam em uma lanchonete de estrada chamada Fries ‘n Ties e almoçaram. Quíron havia entregado até que bastante dinheiro mortal. Após comerem, partiram para a caminhada e não pararam até aquele instante.
- Que fome! - disse Lauren.
Era incrível o quanto aquela garota baixinha comia. No Fries ‘n Ties comera dois hambúrgueres e duas batatas fritas. Nero se perguntava como ela era tão magra mesmo assim.
- É melhor comermos - disse Sophie tomando a liderança do grupo. Quem ela achava que era? - Lauren e John vão buscar frutas, Henry e Thomas vão caçar coelhos enquanto eu busco lenha para a fogueira e Nero fica de vigia. Todos de acordo?
Todos assentiram, menos Nero.
- Lenha pode ser pesada demais para uma garota como você, docinho.
Todos o ignoraram. Aquilo estava irritando-o profundamente. Se limitou a bufar e a sentar em um tronco de árvore, impotentemente. E antes que sequer notasse todos os semideuses já haviam se dispersado; deixando Nero sozinho com seus pensamentos. Pensamentos esses que não eram realmente seus, afinal qualquer pensamento próprio havia sido inteiramente descartado para que Eve assumisse seu lugar.
Lembrou-se de quando a garota o puxou para outra parte da floresta, a fim de tirá-lo dali para que Leith não o atacasse. Quando estavam a uns 15 metros de onde todos os outros se situavam, pararam para recuperar o fôlego colocando as mãos no joelho.
- Ia ficar lá para morrer? - Eve brincou, rindo por cima de sua respiração ofegante.
- Eu com certeza não morreria - retrucou Nero que não via tanta graça. Ele recuperou a postura - Acontece que eu não preciso que alguém me proteja ou me impeça de morrer.
Eve ficou confusa e também se recompôs.
- Não precisa de amigos?
- O quê? - ele não entendia porque estava tendo esse tipo de conversa com uma recém conhecida. Se bem que aqueles olhos não lhe eram estranhos… - Eu tenho o que preciso.
- Ah, Nero - na transição de um segundo, ela parecia mais doce - Você precisa ser tratado como merece. Talvez não seja da minha conta, mas… Acho que essa sua atitude não vá dar certo.
Nero ponderou por alguns segundos antes de responder.
- Realmente, realmente… Isso não é da sua conta.
Eve revirou os olhos. Ele de fato conhecia-os, embora não soubesse de onde.
- Nunca percebeu como eles te tratam?
Nero já estava ficando sem paciência, porém manteve a calma.
- Defina “tratar”.
Eve bufou.
- Qual é, Nero! Eles sempre te ignoram e fingem que você nem existe!
Aquilo soava um tanto quanto convincente para Nero. Ele fechou os olhos e recostou-se em uma árvore.
- Você não vê como isso não está certo? - ela insistiu.
Nero já começava a ficar impaciente.
- Você quer que eu diga “sim”?
- Nero, eles te tratam como se você fosse um traidor! Algo que você não é, certo?
A perplexidade atingiu Nero como um raio quando ele não soube como respondê-la.
- Eu… Não! Eu… Não sou um traidor - a frase tinha sabor de mentira. O pior sabor que ele já provara.
- Você não é um traidor - ela afirmou - Mas eles não verão. Temos que consertar isso porque… - ela se interrompeu e balançou a cabeça. Quando voltou a falar, havia um brilho estranho em seus olhos - Você tem de deixá-los, Nero. Você não é um dos seis. Permanecer junto a eles não vai dar certo. Eles não são seus amigos.
- Você também não é.
A mágoa fuzilou os olhos previamente empolgados de Eve. Olhos esses que já o faziam perder a paciência.
- De onde você me conhece? - perguntou ele subitamente, interrompendo o silêncio de meio segundo.
Ela hesitou.
- Acho que deve estar novamente calmo na clareira. Devemos voltar - disse ela um tanto quanto alarmada.
E quando Nero preparava-se para retrucar a garota, tudo o que via era o completamente familiar rosto preocupado de um garoto loiro, que arrancou-o de seus devaneios.
- NERO, ROUBARAM NOSSAS COISAS!! - Henry gritou
Nero deu um pulo.
- O QUÊ??
- Ah, então você não teve uma paralisia cerebral! - Ele olhou por sobre o ombro para sua platéia de um homem só. - Senhoras e senhores não tivemos sorte hoje! - e rindo, ele se sentou ao lado do amigo.
- Pelo menos eu não dou em cima de tudo o que anda. - rebateu Nero docemente agressivo.
Henry voltou a rir.
- E em quem você dá em cima? - havia algo a mais em sua voz que Nero não conseguia identificar - Na mesma pessoa com quem você estava sonhando agora há pouco?
Nero franziu o cenho que já permanecia constantemente franzido.
- Cale a boca, Henry - ele disse soando cansado.
Henry bufou.
- Por que todo mundo continua me dizendo isso?
- Talvez você devesse começar a ouvir.
Henry se virou para Nero e mostrou a língua. A imagem era estranhamente reconfortante.
- De qualquer forma, caçamos cinco coelhos. Acha que dá? - interveio Thomas que observava a discussão dos dois com interesse e um sorriso no canto dos lábios. Nero se perguntou o que aquele sorriso significava.
- Provavelmente. Cada coelho pode ser dividido para duas pessoas. - Nero disse racionalmente.
Thomas o encarou por meio minuto antes de responder.
- Era uma pergunta retórica. Óbvio que vai dar, seu idiota.
Nero arqueou as sobrancelhas.
- Você não especifica e eu sou o idiota?
- Tudo bem, gente. Cheguei. - disse Sophie retornando enquanto arrastava consigo galhos atados com alguns cipós. - John sabe fazer fogo, assim que ele chegar acenderemos essa fogueira. Alguém contra?
Sophie liderar a missão ainda deixava Nero desconfortável. Mas não tinha por que se opor àquilo.
Não demorou muito para que todos os semideuses finalmente voltassem e, logo, todos desempenhavam os papeis sugeridos por Sophie: alguns organizavam a comida encontrada, outros a comida trazida do Acampamento, John se empenhava em deixar a fogueira sempre acesa, Thomas esfolava os coelhos, mas Nero, responsável pela guarnição e vigília, nem mesmo movera-se de seu tronco.
Quando tudo finalmente encaixou-se nos conformes o ocaso já havia se estabelecido. Nero sentou-se em volta da fogueira assim como os outros semideuses. Após todos jantarem, começaram a conversar sobre coisas aleatórias como jogos, música e livros, até que Lauren deu um pulo.
- Sophie! - ela chamou - Deixe-me ver seu escudo!
Sophie estranhou.
- Meu escudo? Por quê?
Lauren parecia impaciente.
- Apenas abra-o!
Sophie deu de ombros e obedeceu. Tocou o bracelete prateado que sempre vestia e gritou:
- Aegis!
No mesmo instante a pulseira se expandiu, assumindo a forma de um grande disco de bronze - um escudo com desenhos complexos nas bordas. No centro, forjado no metal como uma máscara da morte, havia um rosto tão horroroso que Nero teria corrido dele, se não soubesse que Sophie estava em sua equipe. Desviou o olhar, mas a imagem estava gravada em sua mente - cabelos de cobra, olhos arregalados e uma boca com presas à mostra; a cabeça de Medusa.
Nero notou que Thomas e Lauren estavam boquiabertos. O que diabos estava acontecendo? Era só um escudo - um escudo horroroso mas ainda assim um escudo.
- Não acredito! - exclamou Lauren - Percy vai pirar se vir!
- O que que tem meu escudo, gente? - perguntou Sophie, confusa.
- Sophie, esse é o Aegis, o escudo mais temido de todos os tempos - disse Thomas arqueando as sobrancelhas - Não sabe a quem este escudo pertenceu?
- Pelo o que Mercúrio me disse…
- Mercúrio? - interrompeu Nero. Um calafrio subiu-lhe pela espinha.
- Sim - respondeu John - o encontramos cerca de duas semanas antes de irmos para o Acampamento Júpiter. Por quê?
- Nada. Continue, Sophie.
Nero obviamente não iria dizer que nunca havia visto o pai e o quanto isso o deixava magoado.
- Bem, Mercúrio me disse que é o escudo mais temido de todos os tempos, que meu pai mandou pra mim e que pertenceu a uma irmã minha.
Lauren fechou os olhos por um instante, pensativa.
- Como eu imaginava - disse abrindo os olhos - Sim, esse escudo pertenceu a Thalia Grace, filha de Zeus.
Nero demorou alguns segundos para assimilar o que estava sendo dito naquele momento. Quando deduziu, um trovão ribombou no céu e um holograma azul de um raio apareceu acima da cabeça de Sophie, girando e cintilando.
Os seis semideuses ficaram boquiabertos. Thomas começou a se ajoelhar e todos, menos Sophie, seguiram seu exemplo, até mesmo Nero.
- Não sou o Quíron, mas vou ter de servir. Está determinado - anunciou Lauren.
- O que está determinado? Por que vocês estão fazendo isso? - perguntou Sophie.
- Seu pai, Zeus - disse Lauren - Senhor dos Trovões. Portador dos raios. Pai dos homens. Salve, Sophie Highwind, filha do Deus dos Céus.
Outro trovão ribombou no céu e o holograma sumiu gradativamente.
Sophie estava estagnada e olhava para o nada com uma cara de completa confusão e espanto.
- Eu to tentando descobrir quem é meu pai desde que eu tinha cinco anos e SÓ AGORA é que ele revela? - perguntou Sophie, incrédula - Tudo bem que eu sabia quem era ele até uns dois meses atrás, mas mesmo assim!
Os outros semideuses voltaram a se sentar.
- Sim, os deuses têm incrivelmente pouco tempo para se dedicar a nós. Tem sido assim desde o princípio, mas não ligue para isso - explicou Lauren - Agora deixe-me voltar a contar sobre o escudo. Ele foi feito com a pele de Amalteia, a cabra cujo leite amamentou Zeus quando bebê.
Sophie olhou para o escudo e voltou a encarar Lauren, com uma cara de nojo.
- Isso aqui foi feito de pele de cabra?
- Pela lenda sim. Thalia, sua irmã, achou o bracelete enquanto rumava ao Acampamento Meio-Sangue, com Luke. Ela tem uma história intrigante: Zeus a transformou em um pinheiro para evitar seu sacrifício quando ela, Luke e Annabeth chegaram ao Acampamento. Cerca de cinco anos depois, foi libertada do pinheiro pelo Velocino de Ouro e não muito tempo depois virou Caçadora de Ártemis. Era também irmã de Jason e acabou morrendo na guerra contra Gaia há 16 anos atrás, tentando protegê-lo.
- Uau - disse Nero - Intrigante é pouco. Eu diria aterrador.
- Concordo - disse Sophie que estava com uma expressão amedrontada.
- Mas relaxe, nem todos os filhos de Zeus têm um futuro trágico. Isso é característica dos semideuses em geral, mesmo - disse Nero, tentando tranquilizá-la sem muito sucesso.
Continuaram conversando e tirando as dúvidas de Sophie até às oito horas da noite, onde todos estenderam seus sacos de dormir visando um maior descanso para que pudessem acordar cedo no dia seguinte.
O descanso, entretanto, nunca vinha fácil para Nero. Talvez se todos soubessem o quão ruim é viver de noites mal dormidas, compreendessem o quão difícil era lutar contra o mal humor. Principalmente naquela noite... Ele se via obrigado a revirar-se no saco de dormir a cada vez que ouvia o eco das palavras de Eve: “Você não é um traidor, é?”
Era exaustivo tentar se lembrar do exato momento onde permitiu que a comiseração por dois gregos ultrapassasse todo o orgulho que tanto se esforçara para criar acerca do acampamento romano. Só agora revisava as consequências de seus atos e não conseguia definir o que era certo e o que era errado.
Mas Eve não desistiria tão fácil: "Você não é um traidor, é?"
Ele virou-se para a esquerda e depois, virou-se de bruços, voltou a deitar de costas olhando para o céu escuro, mas não havia posição que fizesse a mente mais confortável. Não sabia quanto tempo permanecera nessa troca frenética, mas quando finalmente virou-se para a direita pôde ver Henry ressonando baixinho em um sono profundo de sétimo nível.
Nero jamais dormira tão pacificamente e agora invejava o amigo. Amigo? Ao menos tinha a certeza de que tinha um amigo. Nero não poderia ser um traidor para Henry, certo? Ademais, Henry jamais seria um traidor, não quando o rapaz era, na maioria das vezes, a sensatez da consciência que Nero não tinha.
Henry… A única pessoa que ficou ao seu lado por tanto tempo. Única? Agora começava a lembrar de uma vaga lembrança de uma garota… Mas não importava. Henry lutava pela amizade dos dois desde que se conheceram há dois anos atrás.
Não havia sido um encontro dos mais agradáveis, mas talvez fosse exatamente por isso que a amizade viera a estabelecer-se. Nero lembra que não havia gostado do garoto loiro de início por causa de sua extrema beleza.
Não se lembrava do encontro em si, apenas de que o garoto ficara o atormentando por cerca de um mês até Nero se acostumar com sua presença. Foi exatamente aí que se tornaram melhores amigos.
Agora Nero começava a refletir sobre como fora um erro trazê-lo à missão. Henry sempre fora um amigo deveras melhor do que Nero merecia e era assim que Nero o agradecia? O oferecendo a traição de seu acampamento, de seu lar?
A culpa envenenou todas as veias de Nero de forma que, involuntariamente, cobriu o rosto com as próprias mãos, privando-se da imagem de Henry. Jamais havia se sentido tão confuso. Normalmente havia sempre alguém em quem pudesse colocar a culpa; mas essa era uma situação bem diferente das demais.
Aos poucos, enquanto o sono se recusava, a culpa foi se dissolvendo deixando-o todo em desordem. Henry o seguiria mesmo que estivesse agindo feito um traidor? Nero não achava que isso fosse possível. Henry era bom o suficiente para saber lidar com Nero a ponto de mostrá-lo como estava sendo injusto. Então por que não o fizera?
O Opitio deixara as mãos escorregarem para dentro do saco de dormir novamente e observava Henry como se a qualquer momento pudesse ler seus pensamentos e encontrar a resposta para sua pergunta. E, de alguma forma, encontrara.
Não. Ele não era um traidor. Não se isso significasse que Henry também o era. Afinal, Nero odiava traidores. E não era ódio o que sentia por Henry.
Imerso em pensamentos, Nero adormeceu e em menos de vinte minutos depois, ouviu um leve farfalhar na grama que anunciava chegada de alguém
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