Emma’s Pov
Em um misto de sensações estranhas e disformemente perturbadoras me aproximei do objeto que parecia reluzir irradiando uma luz quase ofuscante conforme eu ousava me aproximar ainda mais. Senti o olhar de Calipso sobre minha silhueta magra e estremeci, algo na forma com a qual ela me olhava não me cheirava muito bem, no entanto, resolvi relevar por ora, afinal, havia prioridades em minha mente. Com a mão esquerda relutantemente toquei o objeto identificando rapidamente sua textura e para minha surpresa ele pareceu se ajustar ao meu toque e ao formato de minha mão quase moldando-se a mim. Era verdade que sua forma não poderia ser classificada, uma vez que ele não possuía corpo definido, simplesmente fundia-se em contato com a pele do usuário, agora não se assemelhava nem um pouco a uma ampulheta, sua cor dourada envolvia minha mão esquerda quase como uma luva de ouro e para me certificar de que não estava delirando sacudi-a devagar observando Clepsydra permanecer exatamente aonde estava. Marilyn ergueu-se em um rompante e apanhou minha mão de maneira brusca passando a analisar cada centímetro da mesma como se não pudesse acreditar no que estava vendo, e sinceramente, eu também tinha minhas dúvidas. “Você encontrou, Emma”. Murmurou apenas, seus olhos acinzentados fixaram-se aos meus e pude sentir a intensidade de seu olhar. “Ótimo. Agora passe para cá, querida”. Calipso sorriu revelando dentes pontudos e afiados os quais eu não havia notado anteriormente. Relutante arrisquei uma última olhadela em direção a Marilyn que sutilmente sacudiu a cabeça em uma resposta negativa. Tentei pensar em uma saída, no entanto, não importava qual direção eu cogitasse seguir não havia escapatória, estávamos literalmente ilhados e isolados de qualquer civilização habitável, ou seja, não poderíamos contar com a ajuda de ninguém e abrir um portal para teletransporte não era uma tarefa tão simples assim. Barganhar foi a única opção que encontrei. “Você não deseja apenas reviver o Mar de Segrega, sei disso, não se trata de voltar à sua cabana, mas sim tê-lo de volta, não é? Mas me deixe fazer uma pergunta: como pode ter tanta certeza de que na posse de Clepsydra poderá reviver seu grande amor? Escute, eu não sou um demônio tão experiente, mas pelos relatos de Marilyn sei bem que toda magia possui um custo e na maioria das vezes ele é demasiadamente alto. Reviver uma criatura não é algo que acontece todos os dias, como pode ter plena convicção de que não estará invocando uma outra coisa? E se não for ele?”. Sustentei meu argumento o máximo que pude, enfatizando a parte de que esta decisão poderia lhe custar talvez a própria vida, mas pelo olhar que recebi em troca percebi que Calipso já havia cogitado essa possibilidade e não parecia estar disposta a ser dissuadida. “Garota tola. Realmente acreditou que eu estive presa aqui durante todos estes anos de maneira impotente? O motivo pelo qual nunca saí é bastante óbvio, foi escolha minha e estou segura aqui. Envenenei o Mar de Segrega para que nunca ninguém me encontrasse, os monstros do Tártaro me mantém protegida de qualquer sobrenatural que ouse por ventura cruzar meu caminho infeliz. E sim, você está correta, toda esta busca se resume à ele. Meu nome não é Calipso. Calipso foi uma bruxa amargurada e descontente que viveu isolada nesta ilha durante milênios até que eu a encontrei, exterminei e assumi seu lugar e identidade. Mas é óbvio que Anna Ksenia não poderia ter noção de uma coisa dessas, ninguém o tem. Suponho que seu demônio lhe tenha contado a triste história da vingativa Rainha Anna, não? E é claro, da bruxa do convés a qual ela se aliou e em seguida assassinou a sangue frio juntamente a seu marido e toda a tripulação de piratas desordeiros! Vadiazinha insolente, faz-me rir. O fato é que eu não morri naquela noite. A estaca não tinha poder o suficiente para paralisar meu coração de pedra e ela apenas facilitou a minha fuga ao atirar meu corpo ao mar sem piedade alguma, mas sejamos sinceras aqui, querida, eu também sei ser vingativa. Anna Ksenia pode não ter conseguido me matar, mas matou o grande amor da minha vida e por este motivo ela deve pagar, ah, sim, deve sim! E você vai me ajudar, meu bem”. A mulher cujo o nome agora eu desconhecia ampliou ainda mais seu sorriso maligno e estendeu a mão em minha direção fazendo-me estremecer, Marilyn envolveu-me em seus braços de maneira protetiva, mas ambos sabíamos que estávamos em apuros. “Não resista, não tente lutar, entregue Clepsydra a mim e em troca eu farei-lhe ainda o favor de lhe dar a estaca envenenada com a qual Anna Ksenia tentou me matar, é mais do que o suficiente para exterminar qualquer criatura que os esteja assombrando. Tudo o que peço é que me dê a ampulheta, Emma”. Suplicou novamente, seus olhos esverdeados faiscaram em minha direção e ela continuou a me encarar como se pudesse invadir minha mente e deturpar meus pensamentos. Eu me mantive estável, imóvel. “Se eu fizer isso, quem me garante que não vai tentar me matar? Você é uma bruxa e nem um pouco confiável como todos já sabemos, você pode muito bem me aprisionar aqui e tentar usar minhas habilidades a seu bel prazer. Sendo assim, não posso lhe entregar a ampulheta, sinto muito”. Cautelosamente recuei alguns passos. “Isso é algum tipo de piada? Você é a porcaria de um demônio nível 11, Emma Waterson! Não existem barreiras para você, meu bem, o Mar de Segrega vai se partir ao meio e abrir um caminho de sangue e ossos apenas para que trilhe. Eu não sou capaz de mantê-la presa aqui nem mesmo que quisesse e artefato algum que possuo em minha cabana seria capaz de machucá-la, todos são antigos demais e obsoletos. A própria estaca não faria nem cócegas em sua pele. É engraçado, você não tem a mais remota noção de sua capacidade, não é? Entenda, eu não desejo fazer de Vossa Majestade uma inimiga, pois correria o risco de ser dissolvida a pó a qualquer momento. Sou uma mulher apaixonada e estou desesperada para ter de volta aquele que mais amo e só você pode me ajudar a tê-lo de volta. Você consegue compreender, não consegue?”. Ela arriscou uma olhadela relutante em direção a Marilyn e em seguida voltamos a nos encarar com afinco, e eu pude ver compreensão em seus olhos e sabia que ela enxergava a mesma coisa nos meus. Eu a entendia, entendia melhor do que qualquer outra pessoa jamais seria capaz, afinal, eu sentia em meus ossos, em meu DNA e membranas mais profundas que faria o mesmo por Marilyn. Caso um dia necessitasse chegar a este ponto, eu não hesitaria, destruiria todos ao meu alcance apenas para poder vê-lo novamente. E este era o sentimento mais agridoce que já me invadira, afinal, aquela bruxa não era a mais nobre das criaturas e tentara enganar Anna Ksenia um dia, portanto, não deveria ser digna da minha compaixão quiçá de meu auxílio. Ainda assim em minha mente a decisão já havia sido tomada. “Tudo bem, vou ajudá-la. Mas vamos fazer isso do meu jeito, ok?”. Sentenciei. “Está certo”. Ela assentiu convicta meneando a cabeça para os lados em uma afirmação divertida.
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“Você por acaso perdeu a porra da razão, Emma? O que diabos está pensando em fazer? Ajudar essa bruxa não é a melhor opção por uma série de fatores que eu nem consigo enumerar sem ficar louco. Mas que tal: se trouxer de volta a vida o pirata infame Kalydos Nécrato e ajudar Niágrida Mirra a conseguir sua vingança só terá como recompensa o ódio eterno de Anna Ksenia caso ela sobreviva ao ataque? Niágrida não foi capaz de matá-la uma vez, que garantias você tem de que ela vai triunfar agora? Ok, ela tem uma estaca que serve para nossos propósitos, mas é só isso, a lista de contras é imensamente maior do que a de prós. Eu não sei o que mais posso falar para convencê-la de que isso é suicídio coletivo!”. Marilyn esbravejava, segurando com força meus dois ombros, sacudindo-me para a frente e para trás em um ritmo alucinante e intenso. Estávamos na barraca de Niágrida a cerca de uma hora e ela parecia imersa em seus dilemas procurando incessantemente pela tal estaca envenenada que seria capaz de matar a gárgula em nosso jardim. “Você pode, por favor, confiar em mim uma vez apenas? Eu sei o que estou fazendo, Marilyn. Pode parecer que não, mas eu realmente sei. E para responder a sua pergunta, a garantia que tenho de que vai dar certo desta vez é a seguinte: eu vou com ela e me certificarei disto”. Firmei meus pés com força no chão e observei Marilyn se aproximar ainda mais de um surto psicótico. “É isso, eu desisto. Não sei mais o que há de errado com você, Emma. Além de ter ficado completamente biruta da noite para o dia, agora você está disposta a por em risco as nossas vidas por motivos que eu sinceramente desconheço. Qual é o próximo passo? Nos atirarmos diretamente na boca do abismo e esperar Satã recolher nossos corpos em um ato de boa vontade, uh?”. Ele começou a gesticular freneticamente e a andar em círculos como um desgovernado lunático. E depois a louca sou eu, nossa! “Não precisamos nos desesperar agora, Marilyn. Eu tenho plena convicção de que Niágrida não é a melhor pessoa do mundo, longe disto, mas algo dentro de mim clama para que eu a ajude. Você sabe que eu faria o mesmo caso a situação fosse comigo, eu faria qualquer coisa para ter você de volta nem que tivesse de morrer para isso. Eu vejo a minha imagem refletida nos olhos dela e não posso ignorar este sinal, sinto muito. E… Eu não confio em Anna Ksenia, existe algo dentro dela, algo maligno. Foi por isso que o marido a deixou. Você tem razão, posso estar ficando maluca, mas pela primeira vez na minha vida eu sinto que preciso fazer alguma coisa, é mais forte do que eu, quase como um instinto animalesco. Então… Por favor, não tente me impedir porque não vai conseguir, eu vou me juntar à ela nesta jornada quer você queira ou não. E não estou colocando nossas vidas em risco, porque não quero que você vá junto, quero que volte para casa. E faça o que tem de fazer. Estou falando de Debbie e você compreende isso, estou te libertando, Marilyn. Libertando de mim. Eu te amo, mas amar acima de todas as coisas é abrir os olhos para a verdade e deixar que seu parceiro tome as próprias decisões. Sua mente está distante de mim agora e isto poderia lhe custar a própria vida, por isso quero que me deixe e vá atrás dela, porque ela precisa de você e é lá que seu coração lhe diz para estar agora. Assim como o meu está me dizendo para embarcar nessa doideira!”. As lágrimas amargas escorriam como fel por meu rosto alvo e sardento, a dor em meu peito era quase insuportável, mas eu sentia que estava fazendo a coisa certa. Eu não podia correr o risco de perder Marilyn por causa de uma fatalidade e desligado da maneira com a qual ele vinha agindo nas últimas 48 horas tudo poderia acontecer. Tudo de pior. Eu jamais me perdoaria caso algo lhe ocorresse e também não podia ser egoísta a ponto de exigir que ele fosse contra suas próprias convicções apenas para me apoiar em algo que sim, é um tanto bizarro. Ele precisava seguir seu caminho e eu o meu, mesmo que eles não se cruzassem agora, eu sabia que voltaríamos a nos ver cedo ou tarde e este era o meu maior conforto. “Capetinha estúpida! Acha mesmo que eu vou lhe deixar cruzar os sete mares sozinha? Acha mesmo que eu seria capaz de abandonar você com uma bruxa traiçoeira e velha? Porque se você acha isso, puta merda, alguma coisa está muito errada entre nós. E quando eu digo errada quero dizer errada para cacete! Ninguém nunca vai ser mais importante do que você na minha vida, Emma Waterson. Consegue colocar nessa sua cabecinha desmiolada e teimosa que nós dois vamos ficar juntos para sempre, não importam quais as circunstâncias? Eu não preciso de um maldito contrato de sangue para me prender a você, não preciso de mandinga, poção ou mau olhado, abriria mão de me tornar humano caso fosse necessário para mantê-la. Eu faria qualquer coisa que me pedissem por você, Emma, até as que mais me atormentam. Foda-se Debbie, sim, ela é importante e sempre vai ser. Mas eu não passaria a eternidade em um calabouço por ela se essa fosse a única opção de salvá-la, mas sabemos que eu o faria por você. Eu te amo e preferia perder tudo a perdê-la para sempre”. Nossos rostos colados, narizes se tocando, lágrimas mesclando-se, lábios roçando. O beijo que Marilyn me deu em seguida foi ainda melhor do que qualquer outro em toda a nossa história, porque nele eu pude sentir toda a intensidade de seu amor, toda a estrutura complexa por trás de sua mente se revelou ali a minha frente quando ele expôs seus sentimentos da forma mais linda e primitiva do mundo. E eu sentia o mesmo, mil vezes mais se fosse possível. E era por isso que eu não podia perdê-lo. “Eu te amo, Marilyn. Você é a melhor coisa que me aconteceu, nem em meus sonhos mais ilusórios eu poderia ter idealizado alguém como você. Você me completa em todos os sentidos, preenche minhas lacunas como se tivéssemos sido feitos um para o outro. Eu preferia ser dilacerada, flagelada em pedaços a perder você e é por este motivo que preciso fazer isso. Não me odeie, é para o seu próprio bem. Te encontro em breve. Do outro lado, meu amor”. Em meio as lágrimas de felicidade e lamúria eu o atirei com o máximo de força que consegui reunir em direção ao portal recém aberto que instruí Niágrida a invocar enquanto me dispunha a distrair meu demônio. Aconteceu rápido demais para que ele pudesse esboçar qualquer espécie de reação e tão logo o portal sugou Marilyn para dentro de seu formato ectoplasmático transportando-o para fora do Mar de Segrega de volta à praia a qual estivéramos anteriormente. Em segurança. Agora ele estava seguro. Niágrida caminhou até mim, tomou minhas mãos entre as suas e juntas soltamos um suspiro forte que traduziu toda a angústia dentro de nossos corações. Respirei fundo e quando finalmente me vi pronta para encarar qualquer coisa soltei as mãos da bruxa e me preparei mental fisicamente para o que estava por vir. “Tá legal, vamos acabar logo com tudo isso. Como fazemos para reviver Kalydos?”. Indaguei determinada. “Ora, primeiro precisamos ir até seu túmulo”. Ela sorriu esperançosa. “E o que estamos esperando? Vamos então!”. Apressei. “Você é um demônio e tanto, Emma Waterson. Nunca achei que diria uma coisa dessas, mas você merece todo o meu respeito. Vamos. Você já nasceu pronta para isso, garota”. Soltou uma gargalhada irônica e juntas nos pusemos a trilhar o caminho da vitória.
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Perdi a conta de quantos quilômetros de areia percorremos em cerca de 4 horas. O Mar de Segrega se estendia por muito mais território do que eu jamais poderia ter imaginado e após tanto tempo caminhando sem nenhum descanso eu estava começando a finalmente me sentir um pouco cansada. Em minha forma humana provavelmente eu teria desabado em menos de 30 minutos, mas em minha forma demoníaca o máximo que era capaz de detectar era um ligeiro desconforto nas costas e a isto eu me via extremamente grata. Ao meu lado Niágrida permanecia calada imersa em seus pensamentos, eu podia sentir o nervosismo, a ansiedade que exalava conforme nos aproximávamos mais e mais do túmulo de seu amado. Quando finalmente alcançamos nosso destino ela se atirou ao chão, desmanchando-se como o Muro de Berlim. O túmulo de Kalydos era modesto, no entanto, parecia muito bem cuidado ao longo dos anos, visto que toda a água salgada não fora capaz de danificar os intricados desenhos esculpidos a mão. Havia um vaso com flores amarelas que pareciam ter sido colhidas há pouco tempo e é claro, o mesmo colar de contas que Niágrida carregava em seu pescoço. “Venho aqui quase todos os dias. Troco a água das flores, substituo as flores quando elas morrem. Repinto todos os desenhos marítimos com tinta que fabrico a partir pigmentos naturais. A ilha não fornece muitos recursos, mas eu me viro do jeito que consigo. Eu me recuso a deixá-lo apodrecer em uma pocilga, ele não mereceria tamanha desonra. Kalydos era um homem gentil, o homem mais gentil que já conheci. Sua esposa, Anna Ksenia, era uma tirana da pior classe e o fazia sofrer. Seu conforto era o mar, as longas viagens de navio na companhia de seus amigos piratas. Ele tinha o sonho de conhecer os quatro cantos do mundo, mas como você pode imaginar não pôde realizar seu desejo enquanto ainda em vida. As histórias me relatam como a vilã maléfica, a amante amargurada e invejosa. Porém o que os livros não contam é que a rainha realizava experimentos em seu próprio marido a fim de torná-lo uma criatura sobrenatural. Não me culpe por amá-lo acima de todas as coisas e tentar livrá-lo das garras cruéis de sua esposa inescrupulosa, como você disse a seu demônio, eu faria qualquer coisa por Kalydos. Ele me tirou da pobreza, de um barraco esfarrapado que eu dividia com cães sarnentos correndo o risco de me infectar com a praga de febre tifóide que assolava meu vilarejo. Ele me reergueu e fez de mim a mulher forte que sou e por tal feito eu lhe devia minha vida em gratidão. Kalydos nunca quis fazer de mim sua amante, mas eu o desejava mais do que todas as coisas e por fim meu amor invadiu seu coração e quebrou todas as suas barreiras. Eu o amei como ele merecia, e Anna Ksenia o tirou de mim. Para sempre. E como se não bastasse ainda reclamou para si o título de pobre dama injustiçada, traída e machucada. Não sou vingativa, juro que nunca fui assim, mas as pessoas mudam por amor. E embora, eu não possa dizer que me orgulho disto, posso afirmar que não me arrependo também”. Niágrida confidenciou toda a sua estória de vida, e eu apenas obtive ainda mais certeza de que havia tomado a decisão correta. Afinal, nem tudo o que reluz é ouro e nem todas as pessoas são quem realmente dizem ser, cabe a nós escutar a voz de nosso coração e decidir qual caminho seguir. Eu escolhi o meu. “Bom. Diga-me o que fazer para trazê-lo de volta, existe algum cântico ou entoação que devamos recitar? O corpo necessita ser desenterrado, não?”. Depositei uma mão sobre seu ombro desnudo a fim de fornecer-lhe apoio emocional e recebi em troca um sorriso acanhado, ela não estava acostumada com demonstrações de afeto e interiormente julguei sua reação como sendo algo muito meigo. “Não precisamos desenterrar o corpo, afinal, são apenas ossos e poeira aí embaixo. Deposite Clepsydra sobre a terra e então iremos saber o que fazer a seguir, não é como se eu já tivesse feito algo parecido antes”. Niágrida parecia tão perdida quanto eu, então apenas fiz como ela instruiu. Alguns minutos se passaram e nada aconteceu, Clepsydra havia assumido a forma de grãos de areia dourados e apesar de sua luz ofuscante brilhar intensamente não havia muito mais além disso. Os minutos se tornaram horas e repentinamente Niágrida pôs-se a chorar, um choro amargo e sofrido acompanhado de soluços sufocantes que ela não fez questão alguma de ocultar. Esperei até que ela se acalmasse um pouco, ainda cogitando quais palavras deveria usar. “Tudo bem, acabou. Nem mesmo Clepsydra é capaz de reanimá-lo, nossos esforços foram em vão. Venha, vamos voltar à minha cabana. Não se preocupe, vou lhe dar a estaca e então você poderá retornar para seu demônio. Agradeço por sua ajuda do fundo de meu coração, Emma”. A bruxa tomou forças e apoiando-se levemente ao túmulo de seu falecido pirata ergueu-se sobre os dois pés novamente preparando-se para trilhar solenemente o longo caminho de volta. Insatisfeita, porém conformando-me com a situação, investi com a mão direita para apanhar o artefato antigo posicionado estrategicamente sobre a terra e neste exato momento uma explosão de luzes tomou conta de tudo ao nosso redor. Incapaz de suportar a luminosidade cobri os olhos e esperei que se desfizesse em seguida. Quando julguei seguro abrir os olhos novamente me deparei com um homem trajado em vestes gastas de pirata, uma longa cabeleira castanha e olhos extremamente verdes que me fitava como se eu fosse alguma espécie de monstro perigoso. Incerto ele desembainhou a espada pontuda e tornou a apontá-la em minha direção. “Demônio!”. Esbravejou valente colocando-se em posição de ataque. “Kalydos!”. Ao meu lado Niágrida se manifestou incrédula estendendo as mãos até o homem misterioso que paralisou completamente estático ao vê-la. “N-niágrida? Como é possível? E-eu…”. O homem gaguejou procurando a melhor maneira de se expressar, Niágrida não conseguiu se conter e atirou-se nos braços do amado abraçando-o com força extrema ao que ele correspondeu emocionado. “Meu amor, você está aqui. Está aqui de verdade. Comigo. Eu nunca mais vou deixar algo horrível lhe ocorrer novamente, nós vamos ficar juntos para sempre e não haverá quem nos separe. Eu prometo, eu juro. Ah, Kalydos, eu te amo tanto! Você voltou para mim”. E então ela o beijou. Por um instante senti uma forte pontada em meu peito imaginando meu último momento recente com Marilyn, sabendo que eu o tinha enganado meus olhos se encheram de lágrimas. Mas este era o preço a ser pago afinal de contas para mantê-lo seguro. Eu não podia correr o risco de perdê-lo também, e algo como um sexto sentido me dizia desde o início que Anna Ksenia não o deixaria partir caso viessem a se encontrar mais uma vez. Fitei o casal apaixonado à minha frente e sorri contente ao testemunhar seu amor.
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“Então você quer dizer que ela é um demônio, mas não vai me matar?”. Kalydos indagou confuso encarando com um semblante misterioso minha silhueta magra sentada à mesa da cabana de Niágrida. “Exatamente. Você não precisa se preocupar com ela, meu amor. Emma está aqui para ajudar. Ela é a chave para que consigamos nossa vingança contra Anna Ksenia”. Declarou a bruxa agora empolgada enquanto finalizava sua xícara de chá. “Você só pode estar brincando, Niágrida! Nós não vamos procurar vingança contra ninguém, que dirá Anna Ksenia! Por acaso não se lembra do que aconteceu da última vez que a enfrentamos? Pelo que entendi depois da explicação cansativa que me deram, eu padeci pelas mãos dela e se você não houvesse sido atirada ao mar provavelmente estaria morta também. Estes motivos são mais do que suficientes para que não cruzemos o caminho dela outra vez”. Bradou furioso. “E você espera que eu fique aqui sentada me escondendo para o resto da minha vida sabendo que ela está viva e livre no mundo exterior, praticando ações impiedosas contra sabe-se lá quantas pessoas inocentes? Kalydos, tenha dó, eu já sofri o suficiente durante todos estes anos sem a sua presença, se eu morrer agora ao menos morrerei feliz e vingada. Com a força e imponência de Emma à nossa disposição Anna Ksenia não terá escolha a não ser render-se, é um plano totalmente a prova de falhas, só você não consegue ver isto. Se conseguirmos matar a rainha Anna estaremos livres para vagar pelos quatro cantos do mundo como você sempre almejou, mas se a pouparmos, estaremos condenados e presos a este lugar por toda a eternidade. É isto que você deseja?”. Impiedosa Niágrida agarrou a xícara das mãos de Kalydos e atirou-a ao chão quebrando-a em milhares de pequenos pedaços. Ele pareceu refletir por alguns instantes e com delicadeza afagou as mãos da amada em um gesto reconfortante, em seguida desviou sua atenção a mim. “O que você ganha com isso? Por que está nos ajudando? Anna Ksenia não é uma ameaça para sua estabilidade sobrenatural, não tem motivos para desejar sua morte. Então… Quais suas intenções, demônio?”. Kalydos permanecia com suas desconfianças em relação a minha pessoa e honestamente eu não poderia culpá-lo, no mundo em que ele viveu durante toda a sua vida mortal criaturas como Marilyn e eu, de nossa espécie, sempre demonstraram intenções duvidosas seguidas de morte e sangue. Não me restava escolha além de ser sincera e tentar convencê-lo com ações de que eu era diferente de todos aqueles que representaram ser uma ameaça algum dia. “Eu não sei. Sinceramente, eu não faço a mínima ideia do porquê. O fato é que ela sabe algo sobre mim, sobre meu passado infame, afirma ter participado dele e conhece meu demônio há tempos, porém suas intenções não parecem ser as mais nobres e para mim isto basta. Afinal, ela me mandou até aqui para recuperar um item estranho denominado Chifre do Dragão de Tormenta que afirmava estar sob posse de sua irmã Calipso há muito desaparecida e morta. Quem me garante que ela não me enviou até aqui estando ciente da existência de Niágrida e esperando que ela fosse conspirar contra minha vida obrigando-me a exterminá-la a fim de satisfazer seus próprios objetivos, com a morte de sua maior inimiga ela se sairia muito bem, não? Sem nem ao menos ter de sujar suas mãos com sangue novamente. E quando eu retornasse a fim de obter a estaca envenenada, como poderia saber se ela não estaria determinada a obter fins de manter prisioneira ou pior entregar-me aos da morte que clamam por minha alma e em últimos casos matar o meu demônio? São apenas suposições, é claro, mas Anna Ksenia tem uma fama que a precede, uma manipuladora e tanto, certo? Você saberia dizer melhor do que eu, afinal, viveu a seu lado durante anos de sua vida mortal como pirata. O que denunciou tudo foi a frase que ela disse quando indaguei o motivo de estar disposta a me auxiliar: ‘bruxas servem a Seu Senhor’. Satanás. Meu pai. Se ela serve à ele estaria disposta a me entregar em suas mãos, portanto, sim, ela me é muito útil morta. Acontece, Kalydos, que você precisa tomar sua decisão rapidamente. Não quero ser egoísta, mas necessito deste favor, meu demônio está de volta ao local aonde nos encontramos com Anna Ksenia pela primeira vez, e se bem o conheço, deve estar recorrendo à mesma para tentar encontrar uma maneira de me resgatar daqui, e se ela possui más intenções certamente o ludibriará com suas mentiras astutas. O tempo joga contra mim. E resumindo toda a resposta para a sua pergunta, é como diz o ditado antigo: o inimigo de meu inimigo é meu amigo, certo?”. Estendi a mão para que ele apertasse em um acordo de paz e amizade temporária. Para minha surpresa ele gargalhou. “Gosto de você, garota. Sua mente trabalha rápido e não tem o medo para inibi-la. Está certo, vamos fazer isto, por você, por seu demônio, por meu tesouro, Niágrida, e por mim também, afinal, ninguém tem sangue de barata”. Sorriu amistoso e apertou com força minha mão selando o acordo. Eu assenti e Niágrida soltou um gritinho de empolgação.
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“Só temos um problema. Poderíamos abrir um portal que nos transportaria novamente para o mundo exterior com rapidez e facilidade, mas algo me diz que Anna Ksenia vai estar atenta a qualquer movimento e deve estar se baseando neste fato para preparar sua melhor emboscada. Ou seja, tomar o caminho mais óbvio é arriscado e poderia nos custar nossas vidas em vão. Deve haver alguma outra maneira de sair deste lugar, porém se há presumo que seja mais complexa”. Murmurei exausta após ingerir cinco xícaras de chá e devorar um bolo de cenoura mal cozido que me causou enjoo porém fingi adorar a fim de não fazer desfeita à cozinheira dedicada que Niágrida se esforçara para ser. Kalydos e eu trocamos olhares solidários enquanto ele comia seu pedaço também. “Bom, existe uma maneira sim e todos sabemos qual é”. Niágrida sentenciou voltando sua atenção por um instante a nós dois por uma fração de segundo antes de retornar ao árduo serviço de rechear um muffin de aparência duvidosa. “O Mar de Segrega”. Entoamos Kalydos e eu em uníssono. “Temos certeza de que você em toda a sua entidade demoníaca consegue cruzar o Mar de Segrega sem sofrer qualquer tipo de dano a sua estrutura como um todo, mas não podemos afirmar o mesmo em relação a mim e Kalydos. O mar se partiria ao meio abrindo um caminho de sangue e ossos para você trilhar, mas desconhecemos até que ponto é seguro mortais fazerem o mesmo. Não estou preocupada comigo, afinal, sou mais resistente por não ser exatamente humana e talvez a substância diferenciada que corre por minhas veias como um veneno possa me manter viva, mas Kalydos é de carne e osso e completamente mortal. Definitivamente estamos um problema e esse é dos grandes! Não podemos arriscar cruzar sem saber o que vai acontecer, poderíamos acabar mortos em instantes”. Niágrida parecia frustrada e finalmente havia desistido do muffin que provavelmente nenhum de nós se atreveria a comer, talvez Kalydos quem sabe por amor e consideração à ela. Droga! Não pude evitar pensar que se Marilyn estivesse aqui neste momento saberia o que fazer e as chances de conseguirmos alguma informação relevante sobre o Mar de Segrega dobrariam. Marilyn, se eu não me apressasse talvez nunca mais fosse capaz de vê-lo e isso me mataria por dentro e por fora. Mas não era hora para entrar em pânico, então fabriquei minha melhor expressão confiante e tentei obrigar meu cérebro abarrotado de informações inúteis a processar uma solução o mais rápido possível. “Bom, nunca vamos saber se não tentarmos, certo? O pior que poderia acontecer seria a minha morte pela segunda vez e não é como se não pudéssemos me trazer de volta, não é? Clepsydra se mostrou bastante competente neste quesito”. Kalydos tentou soar animado, mas era evidente o medo que comprometia sua voz fazendo-a falhar um pouco em algumas partes do discurso. “Não. Não podemos. Clepsydra reviveu você uma vez, e apenas porque Emma a tocou, não temos certeza de que poderíamos fazer isso de novo. E não vou arriscar perdê-lo novamente em um golpe de sorte, não seria capaz de aguentar tamanha tormenta. Deve haver um outro jeito que ainda não cogitamos. Livros! Livros, livros… Deve ter alguma coisa aqui sobre o Mar de Segrega, só precisamos encontrar”. A bruxa tornou a rodopiar pela cabana tropeçando em seus próprios objetos espalhados de modo displicente. Infelizmente não tínhamos tempo para isto também, esperar por uma resposta milagrosa em um livro de maneira rápida o suficiente era exigir muito da sorte que não possuíamos a nosso favor. Beirando uma síncope arrisquei uma olhadela em direção a Kalydos que para minha surpresa apanhou minha mão e a apertou com força tentando me reconfortar. Sorri agradecida, muito embora não adiantasse de nada. Alguns minutos de angústia se passaram até que Niágrida bradou: “Aqui! Achei!”. Saltitante ela caminhou até a mesa e posicionou o livro antigo e poeirento sobre a mesma para que pudéssemos ver o que a deixara tão esperançosa. No entanto, tão rápido quanto surgiu logo o sorriso morreu. “Um navio amaldiçoado?”. Recitei dubiamente. Arqueei uma sobrancelha incrédula. A vontade de gargalhar histericamente brotou repentinamente, só podia ser uma maldita piada de mau gosto! Como se não bastasse todas as dificuldades que Marilyn e eu enfrentáramos apenas para chegar até aqui, agora eu me via presa à este lugar podendo apenas salvar meus novos amigos com a ajuda de um navio amaldiçoado. Poderia soar um pouco mais normal caso estivéssemos no mundo exterior, mas eu me lembrava a cada instante que nesta ilha isolada de tudo e de todos não tínhamos a disposição muitos recursos e as únicas pessoas disponíveis éramos nós três, um trio esquizofrênico e maluco composto por: uma bruxa, um demônio nível 11 e um ex-pirata mortal recém ressuscitado. Que grande ironia, ha! As imagens contidas no livro esboçavam a figura de um navio rústico tomado por uma estranha névoa esverdeada que me lembrava a cor de vômito pastoso. Não muito agradável. “Para a vossa felicidade, caras damas, eu posso ter uma breve noção de como amaldiçoar um navio. A questão é… Precisamos arranjar um navio antes de tudo isso”. Declarou Kalydos receoso. Bom, em uma escala de coisas ruins, péssimas e horríveis, o conhecimento inesperado do pirata de como amaldiçoar uma embarcação marítima poderia ser classificado como: menos pior, talvez haja alguma esperança ainda. “Ah, talvez tenhamos um resquício de sorte a nosso favor afinal de contas. Acho que sei como posso encontrar um barco para todos nós”. Niágrida confidenciou animada e pude me sentir um pouco melhor, é claro, ainda tínhamos muito pela frente, mas ao menos agora poderíamos cruzar o Mar de Segrega sem correr o risco de sofrer perdas desnecessárias e quaisquer casualidades inúteis. “E aonde exatamente estaria este barco, querida?”. Kalydos expôs em palavra o grande ponto de interrogação que pairava em minha face. “Ora, você sabe! Eu não guardaria toda essa quantidade de garrafas apenas porque gosto de contemplar a poeira e as teias de aranha que se formam com o tempo, não é? As garrafas são a nossa salvação, bobinho”. A bruxa mostrou-lhe a língua faceira e brincalhona como se tivessem injetado em sua corrente sanguínea uma dose alta de adrenalina que culminara em hiperatividade. “Garrafas?”. Perguntei mais uma vez totalmente confusa e descrente. “Uma velha tradição pirata, Emma. Não poderíamos arriscar deixar nossos navios em qualquer lugar em alto mar a mercê de um ataque de saqueadores, não é mesmo? Bruxas são especialistas em preservar bens preciosos em locais seguros sendo eles pequenos ou grandes. Por isso a maioria de nós piratas acaba se envolvendo com uma bruxa em alguma etapa da vida e comigo não foi diferente, conheci Niágrida por acaso, mas foi ela quem armazenou minha embarcação secreta durante anos, afinal, não era apenas o Vingança da Rainha Anna que me pertencia. Quer dizer que você ainda o possuí, meu bem? Colossus!”. Kalydos exclamou contente enquanto pacientemente me explicava o motivo de sua namorada estar mencionando navios e garrafas como se fossem uma equação em comum. “Como poderia descartá-lo? Aquele navio é parte de você e sempre será, eu jamais o negligenciaria de maneira alguma sabendo o significado que carrega consigo em seu convés. É uma pena que necessitemos difamá-lo agora e sentenciá-lo a uma maldição cruel, mas se é essa nossa única chance, então vamos em frente!”. Niágrida proclamou nossa decisão unânime em alto e bom som, ergueu a garrafa majestosa e todos assentimos cientes do próximo passo a seguir.
[…]
“A maioria das relíquias aqui contidas são preciosas e possuem significado sagrado. Eu saqueei este navio com minha tripulação em uma expedição que realizamos até o Vaticano, terra religiosa e espiritual. As moedas foram embebidas em água benta, portanto, sugiro que não as toque, demônio, a menos que deseje se queimar. Para amaldiçoar o navio precisaremos profanar os itens que o compõem. Sugiro que comecemos agora mesmo”. Kalydos declarou após termos realizado minuciosamente o ritual místico que consista em recitar uma série de palavras em uma língua estranha, provavelmente latim, uma língua morta e superestimada tida como bela e refinada, que soava como qualquer outra asneira para mim. Após o exaustivo processo de repetição e entoação de cânticos melodiosamente maçantes seguimos até o lado exterior da cabana e contemplamos nossa gloriosa embarcação boiando perfeitamente estável sob as águas profanas e envenenadas do Mar de Segrega. Kalydos não pôde conter as lágrimas de emoção ao vivenciar aquele reencontro, no entanto, o processo de embarcar sem molhar-se nas águas mortais foi um tanto quanto complicado, mas felizmente não impossível. Agora no convés daquele navio antigo eu analisava os arredores adornados em ouro e pedras preciosas, definitivamente oriundos de um povo muito rico, e agora como eu o sabia, clérigos. “Para profanarmos estes itens vamos precisar de seu auxílio, Emma. O Vaticano é um território regido por anjos e portanto, apenas o simples fato de você estar pisando aqui dentro agora já é considerado uma espécie de blasfêmia de alto nível, infelizmente só isso não vai ser o suficiente. Precisamos que você recite as palavras deste livro três vezes e em seguida faça um pequeno corte em sua mão permitindo que seu sangue demoníaco infeste as paredes e vigas desta embarcação. Pronta?”. Niágrida se mostrou solícita ao me entregar o livro de capa preta e magistral com adornos de sinos e auréolas. Segurar aquele livro foi difícil, uma vez que por se propriedade angelical sua composição me era nociva e eu pude sentir minha pele arder em contato com o material abençoado pelas criaturas celestes. Repeti as palavras com rapidez e enunciação perfeita durante as três vezes que me foram solicitadas e em seguida abri o corte com precisão em minha mão esquerda permitindo que o sangue escarlate pingasse no chão do navio. O resultado foi instantâneo, pudemos sentir um cheiro suspeito de putrefação e então todos os itens dispostos antes em pleno estado de conservação começaram a se decompor como lixo velho e tóxico exalando um odor ainda mais insuportável que tomou conta de tudo. “Funcionou”. Decretei. “É, ao que parece funcionou muito bem”. Niágrida sorriu e tornou a encarar o pirata que parecia absorver com calma e paciência o que havia acabado de ocorrer a seu precioso navio. “E agora?”. Indaguei. Eu não possuía a menor experiência em navegação e muito embora estivesse amaldiçoado o navio não se guiaria sozinho, precisávamos da sabedoria e conhecimento de Kalydos para que aquilo desse certo. Mas ele parecia chocado demais até mesmo para raciocinar logicamente. “Benzinho?”. Murmurou docemente a bruxa. Por fim ele despertou de seu estado de torpor, ainda grogue e abalado, mas bem. “Agora nós navegamos, oras!”. Declarou Kalydos como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, e bem, de fato para ele era. “Como vamos saber qual direção seguir? E como teremos noção de que estamos indo na direção correta?”. Despejei sem a piedade as perguntas sobre o pobre homem amargurado. “Demônio. Eu sou um pirata, não zombe de mim. Posso ter morrido e passado séculos debaixo da terra me decompondo igualzinho a este navio aqui, mas nem isso foi o suficiente para apagar a minha identidade e essência. Eu nasci para o mar e padeci por ele, portanto, acredite, sei para onde vamos e como chegar até lá. E afinal de contas você precisa se perder para achar lugares que ninguém mais acha, do contrário, todos saberiam onde ficam. Mas por via das dúvidas, não tire seus olhos do horizonte!”. Apontou com o indicador, um sorriso astuto brotando em seus lábios ressecados pela insolação. E bem ali à minha frente presenciei o renascimento completo de um dos mais infames piratas já mencionados pela história dos sobrenaturais, dentro daquele navio mofado ele acabara de recuperar todas as partes de si. Uma vez pirata, para sempre pirata! Niágrida o abraçou com força e eu finalmente pude soltar aquela gargalhada.
Agarrei-me com força às cordas e fitei com esperança o horizonte.
Apenas um pouco de paciência. É Marilyn, aqui vou eu!
[…]
“Seu tempo está acabando, Emma Waterson. Tic tac, tic tac, faz o relógio! A garota demônio, a bruxa fura olho e o pirata idiota. Eu mal posso esperar por sua visita”. Contemplando o céu estrelado a Rainha Anna Ksenia esboçou seu sorriso mais perverso, as grandes unhas batucando contra as bordas de madeira gasta do navio encalhado produziam um ruído inquietante e perturbador. Ainda sorridente ela se voltou para o demônio nível 10 acorrentado ao convés de seu navio, a expressão de amargura em seus olhos foi o suficiente para que ela se deliciasse ainda mais com toda aquela situação. Afinal, ela teria o que tanto queria, ao entregar a garota nas mãos de Satanás que a sentenciaria aos anjos da morte, ela ganharia o respeito de seu Senhor das Trevas e poderia finalmente deixar para trás todos os sentimentos vingativos e amargos, abandonando de uma vez por todas o passado juntamente àquela praia decrépita.
A batalha final estava próxima.
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