Emma's Pov
Existem coisas que não podem ser explicadas. Elas simplesmente acontecem, assim sem mais e nem menos e quando você resolve prestar atenção já é tarde demais para se voltar atrás. Meu nome é Emma Waterson, e eu tenho dezesseis anos. Moro em Ohio, mais precisamente no condado de Canton. Aos dois anos de idade minha mãe me abandonou em frente ao orfanato de Collinswood, para descrever bem esse lugar digamos que não é preciso muito, só pense em alguma coisa triste e abandonada, então você já tem pelo menos a definição básica do que seria Collinswood. Então você se pergunta se eu nunca saí daqui. E eu lhe respondo que não, na verdade, a maioria das crianças que dá entrada em Collinswood dificilmente deixam esse inferno, para ser mais específica, este orfanato é para os loucos e excluídos e eu posso dizer que provavelmente me encaixo na primeira categoria. Eu vejo gente morta por todos os cantos, seja na cozinha, nos corredores, nos quartos, não importa. Eles estão sempre vagando por aí como se ainda pertencessem a esse mundo. Com o tempo fui adquirindo a mania de pensar em toda essa gente como se fossem meus amigos imaginários, mesmo que eu não possa entender o que eles dizem posso vê-los e também sentir sua presença. Mas os mortos não são tão ruins como você pensa, muitas vezes eles podem ser até mais civilizados do que seres humanos. Resumindo a minha fatídica situação, digamos que eu sou a pobre menina esquisitona de dezesseis anos que nunca foi adotada e cresceu atormentada por espíritos de gente que já morreu. Minha rotina consiste basicamente em acordar, comer, limpar, assistir os espíritos vagando por aí e dormir. Se eu já tentei o suicídio? Obviamente que sim, mas ao que parece sou mais inútil do que pensava ser, uma vez que, não fui nem capaz de tirar minha própria vida. E por essas e muitas outras decisões é que eu vivo nesse inferno, apenas esperando o dia em que vou conseguir sair daqui e partir para o mundo exterior. A segurança deste lugar é muito, mais muito reforçada mesmo, e é basicamente por isso que ninguém consegue fugir, até mesmo eu. Na verdade, eu não culpo os funcionários de Collinswood por tornarem nossa vida um inferno, culpo a nós mesmos, porque somos fracos demais para revidar.
Collinswood - Dia atual 05:30 A.M.
O despertador soa estridente. Posso me jogar da janela agora? Ops, eu me esqueci que nem para isso eu sirvo. Bem-vindo ao meu inferno particular, e adivinhe só? Hoje é dia de ajudar na limpeza! Se tem uma coisa que eu realmente detesto é limpar, e sabe por quê? Porque eu não sei limpar! A minha sorte é que aqui em Collinswood mesmo que o chão esteja uma gosma ninguém vai reclamar, porque isso simplesmente não faz diferença para as pessoas. Mas chega de me lamuriar, porque eu ainda preciso tomar banho e trocar de roupa. Entro no banheiro e faço minhas higienes matinais. Encaro meu reflexo no espelho e bufo com pesar. Meus cabelos ruivos caem sem vida sobre meus ombros, aliás, há quanto tempo eu não corto meu cabelo mesmo? Aqui no inferno é assim, não tem cabeleireiro não, se você quer cortar o cabelo, vai ter que cortar por si mesmo com a tesoura enferrujada que se encontra na cozinha, e isso quando você consegue encontrá-la. Por sorte eu tenho minha própria tesoura, uma vez que, raptei uma. Mas eu sobrevivo a mais um dia de pontas duplas, só de brincadeira, afinal, se pontas duplas fossem o meu único problema eu estaria muito feliz, pode acreditar. Meus olhos azuis estão levemente ofuscados pelas fundas olheiras que se formam abaixo. Minha boca seca e rachada deixa a desejar. Ah, e é isso aí... Se você mora em Collinswood vai ter que aprender a conviver com sua própria feiura. Brincos, pulseiras, ou qualquer tipo de jóias não são permitidos. Na verdade, essa regra surgiu de uns tempos para cá quando nosso interno mais famoso, Joel Bricks, tentou furar uma funcionária com sua pulseira de prata. A fama de Joel se deve ao fato de ele ser um completo arruaceiro que vive batendo de frente com os superiores do orfanato, o que não é bem o recomendado a se fazer. Eu me admiro que ele ainda esteja vivo. Deixo meu quarto trajando meu uniforme da limpeza, que nada mais é do que uma blusa meio encardida de molho e uma calça verde que fede a lixo. Outro detalhe: não usamos sapatos, e não me pergunte porquê, eu não vou saber te responder. Assim que atinjo o corredor apanho o esfregão e começo a massagear o chão com aquela coisa. Troco olhares como uma alma travessa que me cumprimenta com um sorriso maroto. Oh, é Travis. Sim, eu dou nome aos espíritos, acho que é uma forma de me divertir um pouco. Devolvo o sorriso a ele e continuo a esfregar o chão cantarolando uma canção desconhecida que sempre toca no rádio. Aliás, o rádio é mais uma das minhas conquistas obscuras. Eu tenho medo de ser cleptomaníaca, mas não acho que seja, afinal, eu só roubo porque preciso. A melodia contagiante de minha canção é a única coisa que se pode ouvir além dos gritos que ecoam pelo corredor. Mantenho meus olhos fixos ao chão e me concentro em eliminar uma sujeira que se recusa a sair.
"Bom dia, Emma...". Quase morro de susto. "Ah, sim... Bom dia, Sra. Lewis". A senhora Lewis é uma freira velha e gorda, responsável pelas adoções, ela quase nunca visita a a ala B, ou seja, a ala dos loucos e excluídos, a não ser que precise dar uma notícia trágica sobre algum falecimento, ou comunicar uma adoção, o que quase nunca acontece. "Ajudando na limpeza hoje, uh?". Afinal, o que essa velha quer comigo? "Sim senhora". Sorrio de maneira gentil. "Vim cuidar de Joel hoje". Ah, sim... Ela também costuma visitar Joel, alguns rumores dizem que ele é filho de sua irmã ou algo do tipo, mas nunca foi constatado. Eu só sei que toda vez que ela deixa o quarto dele, o Joel começa a gritar e a cantar um monte de cânticos religiosos, vai entender né? E sem dizer mais nada a senhora Lewis segue em frente adentrando o quarto do pobre Joel. Novamente me atenho à limpeza. Ouço passos próximos a escada, quem será desta vez? Ergo meu olhar cautelosamente e dou de cara com um homem enorme e extremamente branco, seus cabelos são de um preto intenso e brilhante, ele usa quilos de maquiagem no rosto e seus olhos são de um cinza marcante. Provavelmente ele não é daqui, afinal, está muito bem cuidado. "Com licença...". Sua voz áspera faz eco pelos corredores. Interrompo minha canção. "O senhor está falando comigo?". Paro o esfregão por um segundo. "Que seja, eu estou procurando a senhora Lewis, eu acho que é esse o nome daquela freira". Ele dá de ombros. Eu coro. De certa forma ele é atraente. "Ela está visitando um interno no momento e...". Antes que eu possa terminar de falar a senhora Lewis se materializa ao meu lado. "Sr. Manson". Ela sorri. O homem sombrio devolve o sorriso a ela. "Pronto para nossa visita?". A velha gesticula para que sigam em frente. Visita? Quem em sã consciência visitaria um lugar como Collinswood? O senhor Manson acena para mim em um ato de despedida e eu sorrio tímida, involuntariamente ajeitando minha blusa manchada, como se isso fosse melhorar em algo o meu aspecto deplorável. Às vezes, eu me acho tão fútil.
Depois de limpar todo o corredor e os banheiros do primeiro andar sigo para o refeitório, a fim de encher a minha barriga. Estou morta da fome. Assumo meu lugar habitual ao lado de Nate, meu único amigo naquele inferno. Nate não é de muitas palavras e o pouco que sei sobre ele já basta. Ele é russo e se mudou para os Estados Unidos com os pais quando tinha cinco anos, mas os pais o abandonaram aqui por falta de recursos para criá-lo, ambos concordamos que isso é apenas uma desculpa esfarrapada para justificar tal ato imoral. Quem seria capaz de abandonar o próprio filho, ainda mais em um lugar horrível como Collinswood? É mais um dos mistérios da vida. Encaro meu macarrão com salsicha e sorrio animada. Eu sei que você aí que está lendo isso agora deve estar pensando que macarrão com salsicha não é um manjar dos deuses, mas acredite, meu caro, para mim é sim. Levo a comida à boca e mastigo rapidamente, eu estou com tanta fome que seria capaz de comer qualquer coisa agora, mesmo que fosse o escondidinho surpresa de salmão da diretora Forbes, que caí entre nós, é a pior coisa que eu já experimentei, e olha que eu não sou fresca para comida. Assim que dou três garfadas em meu macarrão vejo a senhora Lewis passar pelas portas do refeitório com aquela bunda gorda e quadrada, se é que isso faz sentido. Ela limpa a garganta e toma o megafone sobre a mesa de madeira, que é notavelmente desnecessário, uma vez que, a sala por si só já faz um eco da porra.
"Senhorita Waterson, queira me acompanhar até a recepção, por favor". Quase engasgo com o macarrão, coisa boa isso não pode ser, só há duas opções, ou eu fiz algo errado e vou ser atirada aos lobos para ser dilacerada até a morte, ou alguém vai me tirar desse inferno, o que é tecnicamente impossível. Ah, merda! Estou ferrada.
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