Piscares de olhos. Um pé a bater contra o chão, num ritmo acelerado. Tensão nos ombros, mãos inquietas, e respiração pesada. Um cenário estranho, uma situação diferente, incerteza.
Preocupação geral, ânsia ou excitação? Sorrisos abertos, cabeças deitadas, conversas baixas e brincadeiras. Risos, suspiros.
Tudo isto numa única sala de aula.
Trinta alunos, claro que cada um era individual e diferente do que estava sentado ao seu lado, mas quem visse achava estranho. Todos mostraram reações diferentes à nova educadora, ninguém estava parecido com ninguém. Com duas exceções.
— Vamos dar-vos a folha de resposta, uma folha à parte, e um clip. Na folha à parte, escrevam o vosso nome onde isso é indicado, dobrem-na e prendam-na à principal com o clip. Quando terminarem, chamem-me e vou recolher, entenderam? — Sorriu minimamente, para poder acalmar a pequena parte de alunos que não estava a gostar do conceito do “teste” que iriam fazer. — Sejam muito sinceros, ninguém vai saber as vossas respostas sem ser nós. Se qualquer pergunta remeter a uma situação que desconhecem, deixem-na em branco, mas apenas nesses casos. Qualquer dúvida, é só chamar. Alguma pergunta para agora?
Uma aluna, com longos cabelos pretos, e olhos pequenos da mesma cor, levantou o braço. — Pode explicar de novo o objetivo disto?
— Só queremos ter a certeza de que todos vocês estão bem, apenas isso.
— Como é que sabem que ninguém está a mentir? — Perguntou outro jovem, este com uma camisa de flanela em tons de verde.
— Não podemos descobrir muito com respostas escritas, mas caso haja algo suspeito, que acreditem, conseguimos reconhecer, ou as respostas sejam compatíveis com alguns dos critérios, são chamados para conversas individuais. Por isso, não vale mesmo a pena mentir. Prontos? — Não.
— Sim. — Responderam, todos os alunos, em uníssono.
Todos têm formas diferentes de sentir. Alguns são mais sensíveis, e desabam mais facilmente ao serem expostos a um embaraço, e outros não se afetam tanto. O problema começa quando esses são levados ao extremo.
Os papéis e o clip chegaram a um rapaz de cabelos loiros, num tom mais escuro, quase acinzentado. Pele da cor da neve, e olhos pequenos e escuros. Este não estava, nem um pouco, feliz por ter de responder àquelas perguntas desnecessariamente invasivas. Com um passar de olhos pelo que estava escrito, conseguiu perceber que não era nada da conta de ninguém. Min Yoongi era o seu nome. Um caso intrigante.
O seu plano não era necessariamente mentir sobre as respostas, mas sim omiti-las. Não havia nada de errado, era como uma contestação contra o sistema. Não gostava daquelas perguntas, não tinha de responder-lhes, ponto final. Se só revelasse os hábitos diários ninguém podia fazer nada.
O que o incomodava sobre tudo aquilo? Não sabia. Assumia que apenas por parecer falta de respeito invadir a vida pessoal de alguém assim.
Lá no fundo, sabia que tudo aquilo tinha um propósito, mas não queria acreditar que o tinha para si. A verdade era o medo, já que a resposta era julgável para a maioria das perguntas, fosse de escolha múltipla ou não. Por um lado, não queria revelar, por outro, não queria mentir. Doido, estava a ficar doido, e tudo isto por olhar para um papel pouco preenchido. O som dos lápis e canetas dos seus colegas a escrever ficava mais alto, e o seu pé continuava a formar um ritmo irritante à medida que batia no chão, era uma mistura de sons odiáveis, mas não conseguia parar.
— Hey, Yoon! O que se passa? — Um loiro, com lábios carnudos e olhos expressivos, e que se sentava ao seu lado, perguntou. Park Jimin. — Não estás a escrever.
— Nada. Estava a pensar. — Respondeu, com a sua voz profunda, e virou a cara para a folha de novo.
Pegou na esferográfica, e respondeu a vinte e duas perguntas, em quarenta. As outras precisariam do melhor de si. Yoongi sentia demais. Sentia tanto que se tornava desconfortável e só o desesperava. Sentia tanto que por vezes, a única reação era perder o ar e ficar preso num círculo vicioso.
A sua boca ficava seca, os músculos tensos, e perdia o equilíbrio, às vezes. Não gostava de grandes emoções ou adrenalina, perguntava-se o que havia de errado consigo, e, porque é que não reagia normalmente às coisas.
Era só um teste.
Olhou para os lados, para trás, para cima e para baixo, e às onze lá estava o segundo caso intrigante. Casaco preto, cabelos da mesma cor, e olhos escuros como a noite. Jeon Jeongguk. Intrigante era palavra pouca, a verdade é que poucos, ou até mesmo ninguém, percebia o motivo para ele estar ali. Um génio, seria a resposta da maioria, não entrava na cabeça alguém tão novo ter completado três anos escolares no intervalo de tempo suficiente para um. Ali estava o filho de pessoas extremamente influentes, o produto de projetos intermináveis e impossíveis, e basicamente, uma criança que saltou dois anos da sua vida e está adiantada, até demais.
Foi dos únicos que não mostrou medo do teste. Que passou sem protestos e sem reclamações ou perguntas. Responder, não mentir, ser sincero. Conseguia fazer isso.
Não diria que concordava, isso seria mentir. Não gostava do que estava a fazer, mas sabia que tinha de o fazer. Os seus olhos pesavam, estava cansado. Não sabia o que fazer sem ser seguir as ordens que lhe tinham sido dadas: responder, não mentir, ser sincero. Não deixar respostas em branco a menos que seja estritamente necessário.
Jeongguk manteve-se na Terra pelo máximo de tempo possível, terminou de responder às perguntas o mais rápido que pode, juntou tudo com o clip, e voltou a deitar a cabeça na mesa para observar o seu colega de mesa. Face definida, lábios finos, simetria perfeita. Kim Taehyung, o seu pedaço de esperança, pelo menos, até onde era possível.
Sentiu-se quase a adormecer, a cabeça forrada na mesa, o seu nariz vermelho pela constipação que tinha apanhado destacava-se no meio da sua pele ligeiramente bronzeada. O sono era enorme, estava quase mesmo a apagar, até o seu amigo o chamar, cutucando a sua bochecha. — Gguk, posso ir entregar o teu? Não o leio.
— Sim. — Respondeu, com a voz rouca. Levantou-se de novo, e apoiou a cabeça na mão. A sua produtividade descia a cada dia e não era confortável, tinha de voltar a levantar o astral, e rápido. Antes que fosse tarde demais. — Voltei.
Taehyung riu, e despenteou os cabelos negros do mais novo da turma inteira. — Andas a dormir bem? Tens estado sempre cansado, já é frequente.
Deu de ombros. Pelo menos tinha acabado, e podia ir para a casa despachar todos os seus afazeres, tentar voltar a acordar para a vida, nem que fosse necessário beber bebidas energéticas.
Dias depois, estava tudo de novo na mesma sala de aula, com a mesma senhora desconhecida, a diferença sendo que agora o nervosismo ia durar pouco para alguns e demasiado para outros. Tudo tinha sido analisado, todos tinham os seus números, todos esperavam não ser chamados.
— Atenção! Os números que eu chamar vêm ter comigo ao gabinete central no intervalo, sim? — Declarou, depois de bater palmas para chamar a atenção. — Quero o 84, 87, 90, 93, e 97. Venham ter comigo ao toque.
Os cinco chamados foram os únicos que não procuraram mais ninguém. Era quase óbvio quem eram. Ou olhos arregalados, ou boca aberta, ou pura neutralidade. Todos os cinco confusos da mesma forma, mas todos a reagir de formas diferentes.
A aula acabou, todos se separaram. Todos tentaram apressar-se, para sair do ambiente pesado o mais rápido possível. Por acaso, conseguiram, cada um, um caminho diferente, e ninguém chocou. Isso até se verem no gabinete central. Nem puderam olhar bem, porque a senhora de antes, com alguns acompanhantes, voltou a aparecer e a falar por cima dos pensamentos complicados. — A maioria de vocês está aqui por falta de respostas ou confusão, mas há dois de vocês que têm problemas sérios. Vou separar-vos por salas, e em cada uma delas estará alguém à vossa espera, entendido? — Acenaram que sim.
Todos foram separados. Quase todos, na verdade. Os últimos dois, que assumiram que tinham de ocupar as últimas duas salas, tentaram também separar-se, até serem interrompidos. — Números 93 e 97, na sala D, por favor.
Os casos intrigantes. Min Yoongi e Jeon Jeongguk, eram os que, até agora, não tinham para aonde ir. Entreolharam-se. Nenhum dos dois sabia bem o que estava a fazer ali, só sabiam que não eram a maioria, o que só significava que provavelmente não havia nada de bom ali.
— Os dois? — Perguntou o loiro, impulsivamente. Ao perceber que tinha pensado em voz alta, deu um passo para trás, como mecanismo de defesa automático. Não estava a gostar. Só a parte de saber que não fazia parte do grupo que só lá estava para resolver as confusões mentais da parte dos adultos lhe dava náuseas, nem queria imaginar no que iria dar continuar ali.
— Sim, os dois. Concordámos que seria melhor assim.
Quando olhou para o lado, Jeongguk já se direcionava à sala, sem questionar mais nada. Apesar de ter achado estranho toda a situação, e ter a certeza que não estaria meigo ao sair daquela sala, decidiu seguir os passos do ligeiramente mais alto.
Apesar de parecer que não, o mais novo também se sentia apavorado. Não só estava completamente sozinho com desconhecidos, (apesar de tudo, raramente se tinham falado, pelo menos sem ser a típica conversa de “bom dia”) o que por si só já parecia uma grandessíssima loucura, mas também tinha a certeza que fosse o que fosse que saísse dali, só atrapalharia.
Jeongguk era obrigado a ter de lidar com problemas diariamente, e saber resolvê-los sozinho, mas sabia que provavelmente algo daquele tipo não seria tão fácil de se resolver. Especialmente por causa da sua muito recente queda de motivação para, digamos, fazer tudo.
Entraram na sala, juntos, evitando qualquer tipo de contacto visual, fosse ele o que fosse. Só viram, sentada numa mesa redonda com aparência recente, outra mulher, com um ar mais simpático do que a anterior, com alguns papéis na mão. — Podem entrar. Sentem-se. — Viu ambos os jovens a entrar na sala em absurdo silêncio. Ambos com expressões diferentes, mas que passavam a mesma emoção. Ao se sentarem, analisou as posturas de ambos, e pôde perceber rapidamente quem era quem. — Antes de qualquer coisa, só quero deixar claro que sou psicóloga, não escolar, mesmo psicóloga, confiem em mim. Têm alguma pergunta?
— Sim. Várias. — Yoongi, numa onda repentina de coragem, colocou as questões que estavam na cabeça de ambos desde que entraram. — Porque é que estamos os dois aqui? O que vamos fazer? Já agora, o que se passa connosco? — Jeongguk, que olhava atentamente para o loiro, virou o olhar para a mulher, também à espera das respostas. Ao invés disso, ela só suspirou, e entregou os envelopes a cada um deles.
— Antes de lerem! Mais vale responder. Vamos apenas conversar os três, Yoongi, nada mais. Isso para mim chega. — Sorriu. — Estão os dois juntos porque bom, deu para perceber, apesar de serem basicamente opostos em termos de personalidade, infelizmente encontram-se muito noutros sentidos. Vocês complementam-se, como Yin e Yang. Seriam uma boa ajuda um para o outro. — Jeongguk deixou a sua cabeça cair para o lado. Yoongi só olhou com confusão. Que conversa era aquela do nada? — Leiam.
Jeongguk não fez nada mais que espreitar o papel, e bastou ler duas frases para não querer mais. Voltou a fechar a folha, e guardá-la no envelope de onde tinha saído. Sentiu aflição, por uns poucos segundos. Metade de si só queria acreditar que era uma falha, a outra pensava em como resolveria aquilo. Era demais. — Viste, Jeongguk? — Perguntou a senhora, suavemente, para não assustar. Recebeu, como resposta, um aceno positivo lento. Depois de uns segundos, respirou fundo, e voltou. Não se deixaria derrubar, pelo menos não ali.
Olhou para o lado, não havia melhor. Yoongi leu tudo. Apesar de ser uma carta comprida, e ter sabido que o melhor mesmo seria ler, Jeongguk não se queria afetar mais à frente de outros. Yoongi não queria saber, só queria saber que se passava, mas quase que se arrependia de sequer ter lido. Os seus músculos estavam mais tensos do que nunca, usou o papel que tinha em mãos para fazer vento, estava calor? Viu a senhora mais velha a levantar-se. — Eu já venho. — Disse.
Não sabia o que se passava, parecia que todo o mundo ia cair. O ritmo da sua respiração tinha aumentado, aquilo sim era demais. Só tinha lido um papel.
Jeongguk observava, também a tentar manter a calma. Algo estava errado. Levantou-se também. Yoongi sentiu-se extremamente zangado por uns segundos, iam mesmo ignorar que algo estava errado? Olhando para o lado, percebeu que o mais novo não tinha saído da sala. — Que estás a fazer? — Perguntou o loiro, com um tom, acidentalmente, indelicado. Não era por mal, mas naquele momento tudo parecia estar contra si.
— Ventilar. — Colocou-se de bicos-de-pés para atingir uma janela mais alta, era alto para a idade, mas não um gigante. Era a última janela. Depois disso, voltou a sentar-se, logo depois de espreitar rapidamente o documento do mais velho, e finalmente perceber o porquê daquilo tudo. — Só queria ajudar... — O mais alto sentiu uma onda a passar por si. Culpa? Sentia-se inútil, tinha bloqueado.
Yoongi acenou que sim, e tentou respirar melhor. Agora percebia, Jeongguk tinha dois anos a menos, e tinha conseguido avançar tanto talvez pela maturidade? A maturidade que queria ter, na verdade.
Jeongguk só seguiu o instinto. Pouco sabia sobre o que tinha acontecido, mas sentiu que aquela era a forma de ajudar.
— Voltei, meninos, está tudo bem?
— Preciso de ir para casa cedo hoje. Posso…? — Questionou Jeongguk, dirigindo a palavra à senhora que tinha acabado de entrar.
— Sim! Tens aqui mais umas coisas, maioritariamente são receitas para te medicares um pouco, e algumas coisas para um dos teus pais assinarem. — Concordou com a cabeça, mas a rir mentalmente. Rir de nervosismo. Provavelmente pediria à governanta para assinar, quando esta decidisse aparecer. Os seus pais eram difíceis. Mesmo, muito difíceis. Quase impossíveis. Tentava acreditar que era fruto do stress, da pressão de ser nacionalmente influente, mas até essa mentira parecia irreal. — Espera! Precisamos de te ver uma vez por semana, por causa do sono e da alimentação, e outras coisas. Em que dia estás livre? Claro que caso não possas é só avisar e remarcamos.
— Precisam de quanto tempo?
— Uma hora, no máximo.
— Pode ser quarta-feira, às duas da tarde? Acho que não vai haver problema assim...
— Tudo bem, então, todas as quartas, duas da tarde. Não te esqueças dos medicamentos, e se conseguires, todos os dias escreve num caderno exatamente o que sentes, ok? Podes ir, boa sorte.
— Obrigado, com licença. — Saiu da sala a andar rápido, antes que Yoongi pudesse sequer dizer o que lhe passava pela cabeça, no caso, um agradecimento. Sentia que também teria a sua pequena crise a qualquer momento, e só queria ir embora rápido. A sua casa não era perto, mas chegou lá quase a correr.
Subiu as escadas intermináveis, entrou no seu quarto enorme, e deitou-se na cama, de onde não queria sair nos próximos tempos. Por um momento, o seu pequeno mundo caiu. Não sabia o que fazer. Em dois minutos tinha passado de um orgulho do país para a total desilusão da família. Tinha de ser uma falha do sistema, apenas isso, qualquer coisa a mais eram blasfémias.
Jeongguk, ali, perdeu os sentidos. E se fosse real? E se a falha no sistema fosse, na verdade, uma falha sua?
Em pensamentos como este, adormeceu profundamente, e consequentemente, agrafou-se à cama por todo o fim de semana.
Estavam metidos em maus lençóis, não tinham a menor dúvida disso.
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