Alcina deixou-se guiar pelo doce som da melodia, as palavras pareciam acariciar-lhe a alma embora não pudesse entender uma sequer. Sua caminhada foi momentaneamente interrompida pelas risadas de suas filhas e um rápido desvio de seu caminho foi o bastante para comprovar sua teoria, as três estavam sentadas ao redor de uma mesa na sala de jogos, Daniela e Cassandra pareciam no meio de uma partida acirrada de damas e Bela permanecia afastada com um livro nas mãos; vê-las juntas sempre fazia Alcina sorrir, suas meninas pareciam tão felizes depois que finalmente se começaram a adaptar-se a sua nova vida.
Daniela capturou uma peça de Cassandra e comemorou ao que a outra, em resposta, reclamou por estar perdendo. Alcina reparou que Bela parecia cansada, apática, e sequer lhe lançou um olhar, o que era atípico da filha mais velha que sempre parecia em busca de sua atenção.
- Mãe, vem jogar também! – Cassandra chamou – Você pode me ajudar.
- Não,Cassie! – Daniela reclamou – Estou ganhando e você só quer trapacear.
- Meninas – disse Alcina em tom firme – Vocês precisam se resolver sozinhas.
Aproximou-se lentamente de Bela e tocou seu rosto fazendo com que abandonasse o livro e erguesse os olhos em sua direção; a aparência cansada, com olheiras profundas, chamou a atenção de Alcina e a preocupou.
- Tudo bem, querida?
- Sim, mãe – Bela tentou sorrir – Apenas não consegui dormir bem nas últimas noites, acho que as tempestades de neve me deram pesadelos.
- Vamos dar um jeito nisso, meu amor – Alcina prometeu e sorriu ao acariciar o rosto da filha mais velha – Parou de nevar e você vai dormir melhor esta noite.
- Acho que sim...
- É claro que vai – Alcina sorriu e se inclinou para beijar a testa de Bela antes de se voltar para as outras duas – E vocês, comportem-se.
Beijou a testa de Daniela e depois Cassandra, ambas muito concentradas em seu jogo para fazer qualquer coisa além de acenar um adeus rápido.
Ao sair da sala de jogos e alcançar o salão principal, Alcina deparou-se com uma das criadas carregando um cesto com toalhas limpas, a jovem fez uma leve mesura em sua direção e sorriu educadamente.
- Boa noite, Lady Dimitrescu.
- Boa noite... – Alcina parou de andar ao notar a mão enfaixada da criada – O que aconteceu com sua mão?
- Apenas um acidente na cozinha, minha senhora, nada demais – a criada mostrou a mão enfaixada - E Lady Elora me ajudou, ela foi muito gentil. Agora se me der licença, levarei isto para cima.
Ao som do nome de sua noiva Alcina sorriu levemente.
- Pode ir.
Retomou o trajeto que fazia antes do seu pequeno desvio, o sorriso apenas aumentou em tamanho e intensidade ao voltar a ouvir a melodia suave; seguiu o som através do corredor até alcançar a grande estufa anexada ao castelo, o cheiro agradável das diversas ervas e plantas a atingiu, mas um muito específico se sobressaiu aos demais. As luzes bruxuleantes dançavam e produziam sombras inquietas nas vidraças, ainda assim foi fácil guiar-se através dos canteiros; havia flores das mais diversas cores, ervas medicinais, arbustos cheios de amoras selvagens, morangos tão vermelhos quanto o batom preferido de Alcina, e até mesmo uma macieira no centro de tudo.
Elora vinha falando sobre ter mais árvores, expandir a produção da sua estufa, e Alcina estava disposta a plantar um pomar inteiro se isso a fizesse sorrir.
Continuou caminhando ao seguir o som da melodia que levou-a até os fundos da estufa, onde Elora trabalhava junto à grande mesa de madeira. Sua noiva cantarolava distraidamente como sempre fazia, trabalhando incessantemente em alguma nova mistura que cheirava de forma refrescante e estranhamente calmante.
- Você pode ser silenciosa o quanto quiser, ainda sei que está aí.
Alcina sorriu e abraçou sua noiva por trás, plantou um beijo sobre sua cabeça e aspirou o cheiro reconfortante que emanava dos cachos escuros; não importava o quanto tentasse domesticar as madeixas, Elora sempre parecia indomável, tão selvagem quanto sua personalidade.
- Sabia que a encontraria aqui. Posso saber no que está trabalhando?
- Duas coisas – Elora respondeu ao despejar um pouco de pó de ferro dentro de um frasco de vidro já contendo sal grosso e algumas ervas – Isso é sal negro, leva uma mistura de ervas de banimento e pó de ferro que raspei do fundo do meu caldeirão... Aqui tem alecrim, pimenta preta, arruda e sálvia. É melhor se consagrado na lua minguante ou negra, mas hoje é noite de lua vermelha e sangue na lua é algo poderoso que não pode ser ignorado.
Impossível não sorrir ao ouvir a paixão na voz da sua noiva.
- E a outra coisa?
- Ah, sim... – Elora segurou a mão de Alcina e depositou um beijo rápido sobre a pela macia – É apenas uma mistura de ervas calmantes, estou preparando um banho especial para ajudar Bela a dormir melhor, a pobrezinha teve pesadelos terríveis nas últimas duas noites.
Alcina sabia bem, Bela havia praticamente saltado em sua cama, soluçando incontrolavelmente ao abraçá-las.
- E acho que Cassie vai gostar, assim como Daniela... E você precisa concordar comigo que um pouco a mais de calma não vai fazer mal algum à Dani, ela é muito agitada.
- É claro que não, Iubirea mea – Alcina riu baixinho – Tenho certeza que todas as nossas filhas tirarão proveito de um banho calmante.
- Talvez assim possamos passar algum tempo a sós.
- Não desejo nada além disso, meu amor.
Inclinando-se em direção a sua noiva e afastou os cabelos escuros para ter acesso ao seu pescoço, aplicou pequenos beijos carinhosos por toda a extensão da clavícula exposta e seguiu através da pele macia até mordiscar o ponto de pulso; não afundou as pressas, sua intenção não era perfurar a carne para se alimentar, apenas adorava sentir Elora estremecendo e vibrando sob seus toques e carícias.
- Alcina, nossas filhas podem aparecer a qualquer momento.
- Não estamos fazendo nada demais – Alcina sorriu e mordiscou seu pescoço mais uma vez, Elora cheirava a uma mistura de cravos, hortelã e algo mais profundo, como uma fogueira em chamas; sua noiva era inebriante em todos os sentidos, apaixonante e cativante – Mal posso esperar para chamá-la de minha esposa.
Elora suspirou e sorriu, completamente relaxada contra os braços de Alcina.
- Alguns meses, querida, e serei Elora Dimitrescu.
Alcina tomou sua mão esquerda e aplicou um beijo carinhoso em seus dedos, o belo anel de noivado repousava sobre seus dedos; a condessa teria preferido algo mais espalhafatoso a fim de demonstrar o poder da casa Dimitrescu, mas aquele anel era perfeito para Elora, feito com três fios de ouro branco entrelaçados entre si e encimado por três diamantes, sendo o do meio o maior deles e de coloração azulada; uma peça delicada, charmosa e que intrigante, exatamente como sua noiva.
Elora se agitou em seus braços e afastou-se o suficiente para virar-se, seus olhos se encontraram e Alcina sentiu o coração saltar contra o peito ao encontrar as íris azuis.
- Eu a amo tanto... – Alcina proferiu ao tocar o rosto de Elora – Meu amor... Meu único e verdadeiro amor.
- Minha companheira – Elora sorriu e pressionou o rosto contra a mão de Alcina – Tão doce...
- Apenas por você e para você.
Sorrindo daquele jeito que sempre causava borboletas no estômago de Alcina, como uma criança prestes a fazer uma travessura, Elora desvencilhou-se dela e voltou-se para sua bancada de trabalho; o som áspero de seus dedos acariciando a página do livro aberto a fez sorrir, tão ou mais antigo do que aquele castelo, o grimório fora passado de geração em geração até que chegasse às mãos da sua adorável noiva. Nem mesmo Alcina tinha permissão para tocar o livro, e suas filhas obedeciam-nas o suficiente para entender que aquele era o território exclusivo de sua mamãe, mas isso não a impedia de admirá-lo sempre que Elora precisava consultá-lo; contava com quase trinta centímetros de comprimento, páginas feitas de papel grosso, costuradas a mão – uma a uma, dissera Elora – para evitar que a tinta manchasse, contava com desenhos – perfeitos e imperfeitos – de ervas, raízes, metais precisos e alguns servindo de guias práticos para feitiços, sua capa dura parecia talhada na madeira – a grande árvore da vida, Alcina aprendeu – e encadernada com couro logo em seguida. Sua noiva possuía outro, um pessoal e que fora presente da própria condessa por ocasião em que conheceram-se, e que estava guardado em seus aposentos, mas mesmo Alcina era capaz de admitir que não chegava aos pés daquele.
Notou que Elora levava a mão repetidamente ao pescoço, brincando nervosamente com o cordão do medalhão que posava sobre seu peito. Um gesto que ela conhecia muito bem.
- Você parece preocupada, meu amor.
- É noite de lua de sangue. É poderosa – respondeu Elora ao folhear o livro – Grandes coisas acontecem durante uma lua de sangue, boas e terríveis. Um feitiço de proteção pode não ser uma má ideia.
Embora Alcina confiasse no talento de sua noiva, faltava-lhe convicção em um monte de ervas trituradas sob algumas palavras mágicas; achava-se muito mais eficaz ao protege-la e às suas filhas, não que alguém ousasse levantar um dedo contra sua família. Afinal de contas, Alcina ainda era um dos quatro lordes a governar aquele lugar e, não desejava mentir, tornara-se uma governante melhor desde que Elora entrara em sua vida; a condessa encontrara-se incapaz de negar qualquer pedido a sua noiva, inclusive ser benéfica para com o povo do vilarejo.
- Mãe Miranda convocou uma reunião, mas posso remarcar... – Alcina titubeou por um momento – Tenho certeza que ela entenderá.
Elora abandonou o livro e virou-se mais uma vez para Alcina.
- Não seja boba, meu amor – a bruxa sorriu e a chamas refletiram em seus belos olhos – Você não pode ausentar-se de uma reunião com Mãe Miranda. O que seus irmãos irão pensar? Que você escusa-se de seus compromissos para ficar com sua noiva?
- Isso seria uma reunião pessoal, minha vida – Alcina acariciou o rosto de Elora – Apenas Mãe Miranda e eu.
- Mais um motivo para não faltar. Além do mais, as garotas e eu ficaremos bem; elas não podem sair do castelo no meio do inverno e eu não deixarei nossas filhas sozinhas, serão apenas algumas horas sem sua gloriosa presença e, porquanto sentirei sua falta, acho que posso sobreviver a ela.
- Tem certeza disso? Eu posso...
- Meu amor – Elora a interrompeu – Por favor, acredite em mim.
Sem uma resposta verbal para dar, vez que mesmo confiando em sua noiva Alcina tivesse lá suas dúvidas sobre deixá-las sozinha aquela noite, ergueu Elora nos braços e absorveu sua aparência por um instante; traços marcantes, lábios grossos que sempre lhe presenteavam com os mais belos e cativantes sorrisos, e olhos tão azuis quanto o mais profundo oceano. Como Alcina adorava perder-se no mar revolto dos olhos de Elora!
- Eu acredito em você, minha vida – disse por fim – Apenas me preocupo...
- E eu a amo por isso, Alcina – Elora pousou a mão em seu rosto e o acariciou ternamente. A condessa fechou os olhos e estremeceu sob o toque leve de sua noiva – Não fosse por você, não sei o que seria de mim... Dizem que todos nós temos uma alma gêmea, alguém a quem voltamos a encontrar de novo e de novo, em cada nova vida, para viver um grande amor. Você é minha alma gêmea, tenho completa certeza disso, e sabe o que isso quer dizer?
- O que?
- Que eu sempre voltarei para você, sempre buscarei seus braços e seu coração.
A declaração não passou de um sussurro, mas as palavras pareceram queimadas a fogo e ferro no peito de Alcina.
- Você não vai a lugar algum para precisar voltar, meu amor.
Elora riu e Alcina, mais uma vez, teve certeza de que jamais se cansaria de ouvir sua risada.
- É claro que não, amor.
Alcina inclinou-se para capturar seus lábios e Elora a encontrou no meio do caminho, seus lábios se conectaram em um beijo apaixonado; a condessa encontrava-se completamente tomada, entregue à mulher que agora abraçava seu pescoço em busca de algum apoio. Elora era inebriante, selvagem como as chamas de um incêndio, indomável e dona do maior coração com que já se deparou em toda sua vida. Mordiscou o lábio inferior da bruxa e sorriu ao sentir o gemido que arranhou sua garganta.
Afastaram-se lentamente, como se nenhuma delas quisesse perder o contato. Alcina poderia ficar assim para sempre, ter Elora em seus braços para sempre.
- Eu te amo, Alci – Elora sorriu – Você não pode imaginar o quanto.
- É claro que eu posso – Alcina sorriu e pressionou seus lábios juntos mais uma vez – Eu a amo do mesmo jeito.
Passou o nariz pela curva macia do pescoço de Elora mais uma vez, aspirou seu cheiro familiar e reconfortante ao tentar gravá-lo em sua alma; num breve lampejo, tão rápido que mal se deu conta de onde veio antes que desaparecesse por completo, Alcina desejou poder se lembrar deste momento para sempre, do contato perfeito entre sua pele e a de Elora, do seu cheiro, seus olhos que brilhavam como safiras, o timbre perfeito da sua voz... Mas seria o olhar, acima de tudo, que a acompanharia pelo resto dos seus dias. Não dizem que os olhos são as janelas da alma? Pois os de Elora se abriam para um universo completamente novo.
- Mal posso esperar para que torne Lady Elora Dimitrescu – Alcina proferiu novamente – Falarei sobre a cerimônia com Mãe Miranda, talvez possamos adiantar...
- Tão ansiosa – Elora zombou e sorriu – Fale com ela e podemos realizar a cerimônia quando for possível, eu também mal posso esperar para ser sua esposa. Mas agora é melhor ir, Mãe Miranda não vai ficar feliz se você se atrasar.
Alcina roubou mais um beijo antes de colocá-la em seus próprios pés.
- Volto assim que puder.
Elora a acompanhou até o salão principal, suas mãos não se soltaram em momento algum da curta caminhada, e ajudou-a a vestir as luvas; Alcina havia acabado de colocar o chapéu quando Bela irrompeu através da porta lateral.
- Mãe, mamãe... – Bela ofegou – Vão sair?
- Apenas sua mãe – Elora respondeu – Ela tem uma reunião com Mãe Miranda.
Bela guinchou e se lançou em direção a Alcina, agarrou seu vestido como se buscasse uma tábua de salvação.
- Não! Mãe, não vá! – Bela pediu – Precisamos de você aqui!
- Não vou demorar, querida – Alcina acariciou os cabelos loiros da filha mais velha – Qual o problema, Bela?
- E-eu não sei... É como no meu sonho, você não estava aqui... E então mamãe também não estava – Bela choramingou – Você precisa ficar, só é seguro quando está aqui!
- Querida...
Elora se aproximou da filha e a puxou para um abraço carinhoso fazendo com que deitasse a cabeça em seu ombro, ela era sempre boa e carinhosa ao lidar com cada uma das garotas, e Bela relaxou instantaneamente sob seu toque.
- Sua mãe precisa ir, mas ficaremos bem e não vou a lugar algum... Na verdade, o que acha de passarmos o tempo juntas? Assim as horas passarão ainda mais rápido até o retorno da sua mãe.
- Pode ser... – Bela suspirou e assentiu rapidamente – Isso é bom.
- Claro que é, querida – Elora sorriu e beijou o topo da cabeça da filha – E estarei cuidando de vocês o tempo todo, nada de ruim vai acontecer.
Elora estendeu o dedo mindinho da mãe direita para Bela que o enlaçou em seu próprio.
- Promessa de mamãe – Elora sorriu docemente – É melhor assim?
- Sim, mamãe.
Alcina sorriu e as abraçou, incapaz de se conter após o desenrolar da cena. Sua família, suas garotas e noiva, era o que havia de mais importante em sua vida.
- Ei, nós também queremos!
Cassandra e Daniela atrapalharam-se ao avançarem juntas, ambas oscilando entre a forma humana e transformar-se em uma nuvem de moscas; as três ainda não haviam se conseguido dominar totalmente suas habilidades, mas Alcina tinha certeza de que em breve conseguiriam.
- Venham aqui, pequenas – Alcina chamou.
As duas se adiantaram em direção às mães e lançaram-se como puderam em seus braços. Tê-las ali todas ali, junto ao seu peito, era impossível descrever com simples palavras; Alcina desconfiou que não havia escritor no mundo capaz de traduzir um sentimento tão profundo e singelo com meros caracteres criados por uma raça tão falha.
- Vamos, vamos... – Elora chamou ao se afastar levemente, ainda que Bela não conseguisse soltá-la – Sua mãe logo estará de volta, mas ela precisa ir agora.
- Sua mamãe está certa – disse Alcina – Voltarei assim que possível.
Alcina beijou o topo da cabeça de cada uma das filhas e então os lábios da noiva. Não gostava de deixá-las durante o inverno, ainda mais tão próximo ao anoitecer, mas precisava cumprir com suas responsabilidades como braço direito de Mãe Miranda.
Bela agarrou-se ao seu vestido mais uma vez e Alcina esfregou suas costas.
- Volto em breve, querida.
Alcina jogou o sobretudo de pele sobre o vestido e caminhou alguns passos até a porta, parou antes de atravessá-la e olhou para trás; Elora sorriu e seus olhos de safira faiscaram, Bela ainda estava em seus braços com a cabeça pousada na altura do coração enquanto Cassandra e Daniela a ladeavam.
Seu olhar demorou-se nelas por mais alguns segundos até que pudesse absorver a cena, só então saiu para a noite fria e fechou a porta atrás de si.
[...]
Elora sorriu ao acariciar os cabelos molhados de Bela, principalmente ao notar o sorriso feliz e relaxado da filha mais velha; ali do banheiro podia ouvir as outras duas correndo por seus aposentos após se cansarem de pularem na cama, provavelmente perseguindo uma a outra após precisar afastá-las para deixar Bela em paz em seu banho.
- Bela? Como está se sentindo, querida?
- Melhor, mamãe – Bela suspirou – Mas ainda quero que mãe volte logo.
- Eu também, filha.
Preocupava-se com a filha mais velha, das três, Bela era a mais sensível e apegada ela e Alcina, enquanto Cassandra tinha dificuldade em se abrir e demonstrar sentimentos e Daniela era a mais agitada; Bela já demonstrava uma grande necessidade em agradar suas mães, mas Dani parecia uma eterna criança.
Elora ajudou a filha a sair do banheiro e a se enxugar. Foi difícil convencer as outras duas a abandonarem a grande cama de Alcina, mas bastou prometer contar uma história para as que as três se acotovelassem para sair do quarto e correr até a biblioteca, Bela gritando que a esperasse já que precisava ir até seu quarto e se trocar. A cena a fez sorrir sozinha, podiam ser três mulheres feitas mas pareciam eternas crianças.
Ao descer as escadas, já ouvindo as garotas se movimentando no andar debaixo, Elora tomou algum tempo para verificar se todas as portas estavam devidamente fechadas, morreria se algo acontecesse a qualquer uma delas. Aquele era o primeiro inverno das suas filhas no castelo e elas descobriram da pior forma possível que elas eram sensíveis ao frio, Alcina e Elora estavam tomando chá na biblioteca, o da sua noiva contendo a dose de sangue usual, quando Daniela começou a gritar como se estivesse sendo atacada por lobos; encontraram-na aninhando o punho junto ao peito, chorando copiosamente ao se adiantar em sua direção. Elora conseguiu tratar o que parecia uma queimadura horrível causada pelo frio depois que Alcina conseguiu segurar Daniela, mas passaram a tomar cuidado triplicado para proteger suas filhas.
Elora estava lá quando as garotas despertaram após o experimento de Mãe Miranda e acompanhou todo o processo ao lado de Alcina, então naturalmente considerava-se sua mãe tanto quanto sua noiva.
Miranda disse a Alcina que poderia ficar com as garotas, fazer o que quisesse com elas, e saiu como se não fosse nada demais. Ver os olhos de Bela a fez ter certeza de aquela era sua filha, por sorte Alcina pensou o mesmo e acabaram não com uma, mas três filhas; quando Daniela saltou sobre os braços de sua noiva, que até aquele momento ainda não tratava-se de um compromisso oficial, e Cassandra se acalmou o suficiente para que Elora pudesse acariciar seus cabelos, sua família só ficou mais completa.
Encontrou suas garotas na biblioteca esperando ansiosamente por sua chegada; três pares de olhos dourados e exultantes viraram-se em sua direção, tão semelhantes aos de Alcina ainda que não tivessem qualquer ligação de sague que Elora perguntou-se como seria ter mais uma criança, uma que pudesse carregar em seu ventre e ver crescer ao lado da sua esposa e filhas mais velhas; embora não passasse de um sonho fantasioso, tinha certeza de que Daniela adoraria brincar com o bebê, Bela passaria horas lendo histórias e Cassandra tentaria ensiná-la a caçar assim que dominasse os primeiros passos. Elora não esperava nada além de coisas boas vindas de suas filhas, as três eram perfeitas aos seus olhos ainda que precisassem de disciplina.
- Eu quero sentar do lado da mamãe – Daniela reclamou – É minha vez.
- Eu irei me sentar ao lado dela! – Bela disse em tom mandão – Vocês estão sempre do lado dela.
- Porque você não se desgruda da mãe – Cassandra acusou – Sempre no colo dela!
- Garotas, já basta – Elora mandou suave, porém firmemente – Ficarei no meio das três.
Quando Alcina estava presente se tornava um pouco mais fácil dividir as atenções, mas com a ausência da noiva precisava dividir-se entre as filhas; Daniela era a mais apegada a ela e, enquanto Cassandra tentava fingir não querer atenção das mães, a do meio sempre deleitava-se ao ter o longo cabelo escuro penteado por Elora; e era verdade que Bela tinha preferência pela atenção de Alcina, sempre tentando agradá-la, mas havia momentos em que sua filha mais velha só queria deitar a cabeça em seu colo e receber carinho, o que ela estava muito feliz em proporcionar.
Assim, acabou sentando-se no sofá com Bela a sua direita, Daniela à esquerda e Cassandra sentou-se aos seus pés, pousando a cabeça em seu colo.
- Filhas – Elora riu ao seu abraçada por Bela e Daniela, acariciou distraidamente os cabelos de Cassandra antes de continuar – Vocês não me deram um livro, como contarei uma história?
- Conte aquela das almas gêmeas – Bela pediu – Eu gosto daquela.
Como as outras duas aquiesceram, Elora ficou feliz por chegarem a um consenso tão rápido e se pôs a contar a história que Bela escolheu.
- Há muito tempo atrás, quando o mundo era muito diferente do que é hoje, as pessoas eram menos solitárias, todas eram felizes e viviam em completa harmonia – recitou em voz baixa e profunda como costumava fazer, suas meninas sempre prestavam atenção redobrada como se não quisessem perder um detalhe sequer – Todas as pessoas tinham duas cabeças, dois pares de braços e pernas, mas dividiam um único coração e alma.
- Eram almas gêmeas.
- Isso mesmo, Bela, e por isso eram tão felizes e o mundo um lugar próspero, cada um estava ligado à sua alma gêmea. Mas isso causou inveja nos deuses que lançaram raios para separar as pessoas, desde então cada um vaga por aí com apenas uma cabeça, um par de braços e pernas, e apenas metade de um coração e alma – Elora sorriu quando Daniela suspirou dramaticamente – Nos tornamos solitários, amargos e brigamos uns com os outros, isso porque passamos a vida toda procurando pela metade da qual fomos separados.
- As almas gêmeas! – Daniela ofegou – Como você e mãe!
Elora riu suavemente, enquanto falava revezava-se ao acariciar os rostos das três filhas.
- Como sua mãe e eu, Dani.
- Conta essa também – Bela pediu – Por favor, mamãe.
Impossível negar um pedido daqueles, ainda mais com três pares de olhos a encarando em expectativa embora já tivessem ouvido aquela história dezenas de vezes.
- Lá estava eu, vagando pela floresta em busca de todo tipo de coisas que vocês podem imaginar, desde raízes até cascas de árvores e cristais; o verão estava no auge, a temperatura agradável, e por isso resolvi não usar sapatos, afinal de contas eles são superestimados nessa situação em particular. Mas enquanto eu não tinha medo de cobras ou qualquer inseto, não contava que a própria floresta poderia me pregar uma peça e eu caí.
As garotas gargalharam, sempre riam ao ouvir essa parte da história.
- É, podem rir, mas eu não me arrependo de nada. O que aconteceu foi que tropecei e rolei morro abaixo, me transformei em uma confusão de arranhões, cabelos despenteados e um vestido amassado e sujo de terra, mas o pior foi o meu pé... – Elora fez uma pausa dramática – Prendi o tornozelo ferido em uma raiz exposta e fiquei de ponta cabeça, a dor não deixava que me movesse muito sem querer gritar e por isso não consegui me soltar sozinha. Fiquei lá por horas até ouvir uma carruagem se aproximando pela estrada, então gritei com todas as minhas forças e sua mãe veio até mim; ela riu ao ver meu estado, e mais ainda quando confidenciei a preocupação com os itens que havia coletado para um novo terrário; Alcina disse, e isso são suas próprias palavras, que eu era uma criatura peculiar, e fiquei sem saber se era devido a minha aparência ou falta de sapatos.
- Talvez o terrário – Cassandra argumentou.
- Talvez as coisas que estava coletando – Bela riu baixinho – É estranho.
- Sua pequena atrevida! – Elora castigou em brincadeira – Mas sim, pode ser um pouco estranho. Sua mãe soltou meu pé e me segurou em seus braços, ao olhar em seus olhos dourados tive certeza absoluta de que ela era minha alma gêmea.
- Rápido assim? – Daniela perguntou.
- Rápido assim, para sua mãe foi um pouco mais demorado. Ela me trouxe para o castelo e cuidou de mim, só quando melhorei e podia ir embora Alcina notou que não desejava minha partida – sorriu ao lembrar-se de como tudo acontecera – O destino nos uniu, hoje acredito nisso; sua mãe disse que não pretendia passar por aquele caminho e quando ela me levou de volta a carruagem, percebi que dificilmente ela me ouviria daquela distância.
- Então o que houve?
Cassandra perguntou interessada, nunca haviam chegado nessa parte da história antes.
- Eu não sei – Elora admitiu – Minha avó dizia que toda floresta tem um espírito guardião, alguém que vaga para proteger a natureza... Talvez, seja quem for, tenha se apiedado de mim aquela tarde e chamou a atenção de sua mãe.
Ao pensar na noiva, Elora brincou com o medalhão de prata em seu pescoço, o polegar acariciando a pedra azul no centro da peça ovalada; Alcina lhe dera no momento em que a pedira em casamento, se o abrisse seria contemplada com o idioma céltico, as palavras estrangeiras que lhe eram tão familiares quanto o próprio romeno diziam “As brumas turquesas, guardiãs do entre mundos...” na parte de trás continuava com “... num sussurrar de cânticos antigos, o véu é rompido” e AD & EV, suas iniciais; Elora sabia reconhecer o trabalho que Alcina tivera para conseguir aquilo, o que a deixou mais feliz com o pedido de casamento.
As meninas se aconchegaram mais junto a ela, como se buscassem a quentura do seu corpo mesmo que a lareira produzisse calor suficiente para aquecê-las, as chamas lançando uma luz bruxuleante sobre seus rostos. Estavam aquecidas e confortáveis, não foi difícil fechar os olhos e relaxar, apenas um pouco...
Elora levantou-se com um pulo, havia caído no sono ao esperar por Alcina e suas filhas estavam longe de serem vistas. As chamas que outrora queimaram na lareira, agora não passavam de brasas incandescentes e a biblioteca estava envolta em penumbra, o que demonstrava que algum tempo devia ter passado desde começara a cochilar. Elora olhou ao redor, não havia qualquer sinal das garotas, e lhe pareceu estranho que tivessem ido para a cama sem despertá-la.
Um grito seguido de um rosnado muito familiar fizeram todos os pelinhos do seu corpo se arrepiaram, Elora só conseguia imaginar que suas filhas estavam em perigo e correu sem pensar duas vezes; outros gritos se seguiram, vozes masculinas alteradas e sons de vidro se quebrando, sua casa estava sendo invadida. Derrapou pelo corredor ao encontrar uma criada parecendo aterrorizada, reconheceu-a brevemente como Luna, a quem ajudara mais cedo, e agarrou seus braços.
- O que está acontecendo?
- Alguém invadiu! – Luna tremeu – Quebraram as janelas e abriram as portas da frente.
Elora sentiu o sangue congelar em suas veias, suas meninas estavam em perigo.
- E Alcina?
- A Senhora ainda não retornou.
- Me escuta bem – Elora apertou seus ombros para chamar sua atenção – Eu vou distraí-los e você leva as garotas para um lugar seguro, a biblioteca ou o ateliê... Entendeu? Mantenha minhas filhas a salvo e aquecidas, e eu me livrarei deles.
- S-Sim, Lady Elora.
- Espere aqui e só vá buscá-las quando eu os levar para longe!
Voltou a correr sem esperar por uma resposta. Ao entrar no salão principal seu olhar recaiu imediatamente sobre Bela, Cassandra e Daniela, as três encurraladas contra o corrimão da escada enquanto pelo menos seis homens grandes tentavam se aproximar; Bela brandiu uma faca, mas parecia ser a única armada, e seus movimentos já pareciam erráticos e fracos, ao que Elora notou que as grandes portas de carvalho permaneciam abertas e o ar frio da noite, tão prejudicial para suas meninas, entrava livremente no Castelo Dimitrescu.
Tomada por um ódio cego, Elora pegou o castiçal que jazia sobre a mesa e avançou sobre o homem mais próximo, acertando-lhe a nuca repetidamente até que caísse ao chão.
- É ela, é a bruxa! – outro deles gritou – Peguem-na!
- Peguem a bruxa!
- Bruxa maldita!
- Caleb está ferido!
- Mamãe!
O castelo se tornou uma cacofonia, tomado por gritos de ódio e medo, e Elora se deu conta de que não estavam ali pelas garotas, ninguém sabia da existência delas até então, e ela era o alvo.
- Venham me pegar, deixem as garotas em paz – berrou com todas as suas forças, brandindo o castiçal como podia, se ao menos conseguisse retardá-los até a chegada de Alcina – Elas são inocentes e vocês querem a mim!
Dois deles se aproximaram como lobos espreitando a presa, seus olhos estavam tomados de raiva e loucura, praticamente espumavam pela boca e pareciam possuídos por algo maligno; Elora poderia acreditar nisso, que uma força sobrenatural se apossava daqueles homens que se consideravam bons, mas sabia que era apenas sua natureza agindo sobre eles, apenas a maldade e preconceito enraizados em suas crenças pessoais.
- Deixem as garotas – repetiu em tom ameaçador – Elas são inocentes.
Sem que percebesse um deles esgueirou-se por trás e agarrou seus cabelos, enlaçou seu pescoço com o braço e a imobilizou.
- Vamos levar a bruxa! – o homem gritou – Ela vai pagar por trazer o demônio ao nosso vilarejo, por cometer heresia e manchar nossas terras com o sangue dos inocentes!
Os homens gritaram em concordância. Bela fez menção de se aproximar, mas gemeu de dor e parou quando a brisa fria atingiu sua pele sensível.
- Não! – Elora gritou – Bela, fique aí, querida! Não se mexa...
- Quem são? – Um deles perguntou interessado pelas garotas, se aproximou lentamente para tocar o rosto de Bela que guinchou e cortou as costas de sua mão com a faca – Maldita!
- São criadas – Elora respondeu com um gemido, começava a ficar tonta com o oxigênio limitado – São inocentes.
- Não estamos aqui para fazer mal a inocentes – disse um que até o momento permanecera em silêncio – Viemos buscar a bruxa e a pegamos, deixem as garotas em paz.
Onde estava Alcina?! Sua noiva precisava chegar logo, Bela estava certa ao afirmar que só seria seguro com sua mãe no castelo. Elora precisava tirá-los dali, precisava levá-los para longe de suas filhas o mais rápido possível.
- Se estão com ela devem ser bruxas também! – acusou o que tivera a mão cortada – A ruiva a chamou de mamãe...
Elora pisou com toda a força no pé daquele que a segurava e em seguida acertou sua barriga com o cotovelo sem que qualquer um conseguisse lhe segurar a tempo, chutou o joelho do que estava à sua frente e correu, desvencilhou-se rapidamente dos outros dois e avançou em direção às portas abertas. Ganhou o ar gélido da noite e correu o mais rápido que pode, seus pés afundaram-se na neve gelada que retardou seu avanço e precisou redobrar as forças. Tudo em que conseguia pensar era em manter as filhas seguras, e notou com prazer que todos os homens partiram em seu encalço e abandonaram o castelo sem olhar para trás.
Alcina! Alcina, volte! Preciso de você, preciso da sua ajuda! Por favor, meu amor, me encontre, eu sei que você sempre vai encontrar o caminho para mim, me encontre! Alcina. Alcina. ALCINA!
Era tudo em que Elora conseguia pensar ao sentir os pulmões queimando a cada respiração, seus músculos começaram a protestar contra a fadiga que se abatera sobre ela. Precisava seguir em frente, precisava encontrar Alcina...
Algo pesado acertou sua nuca e tudo se apagou.
Elora acordou ao ser arrastada pela neve, o céu noturno estendia-se sobre ela salpicado de estrelas. Sua cabeça doía terrivelmente como se estivesse prestes a rachar, ou talvez já estivesse quebrada; tudo parecia girar ao seu redor, sequer era capaz de distinguir o que estava acima ou abaixo e precisou lutar para manter os olhos abertos e continuar consciente.
- Ela acordou, a bruxa está acordada – um dos homens cuspiu em seu rosto – Você vai pagar, bruxa! Vai pagar por todos os bebês mortos... Meu filho morreu e a culpa é sua, você preparou a poção para minha esposa e meu filho nasceu morto.
- E-eu tentei a-ajudar – Elora balbuciou – Era apenas chá...
- Mentirosa! Bruxa mentirosa, esposa de satã... Sacrificando pequenos inocentes em nome do demônio!
Tentou pensar em algo, qualquer coisa, um feitiço que fosse, mas mal conseguia manter os olhos abertos. Reuniu todas as forças que tinha para mentalizar sua noiva, Alcina, e rogar um pranto silencioso em seu nome.
“Alci, você precisa ter voltado ao castelo, precisa estar com nossas filhas. Nossas meninas precisam de você – chorou silenciosamente – Esqueça de mim, elas precisam mais de você agora... Elas...”
Seus pensamentos foram interrompidos ao ser erguida, suas pernas falharam e um par de braços fortes e opressivos a seguraram.
- Onde está a fogueira?!
- Não dá tempo! – outro respondeu – Aquela coisa que a faz dormir já acabou, temos que ser rápidos.
Não foi apenas a pancada, Elora pensou, é claro que não. Forçou-se a abrir os olhos e a viu. Estavam em uma clareira onde um grande carvalho estendia seus galhos em todas as direções, era uma bela árvore e Elora lembrava-se de ter levado suas filhas ali para um passeio; a lembrança a fez sorrir mesmo quando notou a corda amarrada em um dos galhos centrais, suas filhas pareciam tão felizes aquele dia e se fosse partir era disso que gostaria de se lembrar.
- Levanta ela!
Foi colocada sobre um caixote e um dos homens a manteve de pé enquanto outro passava a corda pelo seu pescoço.
- Você, bruxa, está sendo condenada por seus atos. Prática de bruxaria, mortes de inocentes ainda no ventre de suas mães...
- Você pode me matar, Caleb, mas sabe que não sou esse ser que está dizendo – Elora praticamente cuspiu – Pode me matar, mas não terá paz enquanto viver, assim como sua família e amigos, sabe que Lady Dimitrescu não terá piedade de nenhum deles!
- Cale a boca, sua maldida!
- Eu voltarei – Elora prometeu ao olhar para cima em direção as estrelas – Eu voltarei para você, Alcina, para você e nossas filhas... Eu as amo mais do que qualquer outra coisa e prometo que voltarei para vocês... Eu a amo, Alcina Dimitrescu.
- Bruxa imunda!
Outros gritos de raiva se seguiram ao primeiro enquanto Elora continuava sua prece silenciosa, murmurando promessas à Alcina e suas filhas.
- ELORA!
O grito de seu cunhado Karl soou como uma esperança, mesmo que ínfima, no coração de Elora.
- KARL! – gritou com todas as suas forças.
- ELORA! Grite de novo, vou encontrar você!
Por um breve momento, Elora pensou se devia pedir por socorro ou gritar para que Karl fosse atrás das garotas.
- KARL, AS GAROT...
Tudo ficou escuro novamente.
[...]
Alcina notou algo de errado assim que alcançou as portas do castelo. Um dos lycanos de Karl estava parado junto às portas e seu irmão sabia que nenhum deles era bem-vindo em sua propriedade, o bicho não se moveu com sua aproximação e mal levantou os olhos quando passou por ele; mas assim que adentrou seu castelo, os gritos e lamúrias a atingiram quase no mesmo instante em que suas filhas saltaram sobre ela.
- Eles levaram a mamãe!
- Não pudemos fazer nada...
- A chamaram de bruxa!
- Silêncio! – Alcina ordenou, uma parte de si não querendo acreditar no que ouvia – O que aconteceu, Bela?
- Invadiram o castelo e levaram mamãe, tio Karl chegou e então foi atrás dela – Bela chorou e Alcina notou que suas três filhas pareciam descabeladas e aos prantos – Não pudemos ajudar!
- Fiquem aqui, não saiam de jeito nenhum – Alcina ordenou ao sair – Me esperem, vou buscar a mãe de vocês.
Alcina saiu correndo sem se importar com mais nada além de fechar as portas para manter suas filhas seguras, o casaco foi dispensado ao chão sem cerimônia alguma enquanto avançava em direção aos portões; seus instintos mais primordiais pareceram guiá-la até a trilha na neve fofa, algo em seu coração a fazia seguir a direção certa até o amor da sua vida.
“Por favor, esteja viva! Estou chegando, meu amor. Espere por mim, seja forte e espere por mim!”
Repetiu as palavras como um mantra ao seguir a trilha, tentando acalmar-se. Elora era uma mulher forte, capaz, que faria de tudo para proteger as filhas e permanecer viva até a chegada de Alcina.
“Vamos, Karl, você precisa estar com ela! Me diga que você a encontrou, irmão, me diga que ela está bem com você!”
Avançou tão rápido quanto podia, seus pés afundando pesadamente na neve gelada, os pensamentos vagando de forma incoerente entre Elora e Karl. O frio a envolvia como uma mortalha pesando sobre seus ombros como se o mundo todo desabasse sobre ela, Alcina mal podia respirar e o coração batia descontrolado no peito; esforçava-se ao máximo para manter-se coerente, sua mente tinha que continuar apurada, mas os pensamentos ruins voltavam sem parar como um rato raivoso pronto para morder o que visse pela frente. Trancou o maldito rato na gaiola e respirou fundo, haveria tempo para vingança assim que seu amor estivesse segura em seus braços e Alcina faria cada um deles pagar.
- Por favor...
A voz chegou até ela fraca e cheia de medo, seguida por um grunhido que Alcina reconheceu como sendo do irmão e aumentou a velocidade ao ver uma clareira.
- Karl...
Seu irmão estava parado no que parecia ser um banho de sangue, seu martelo jazia sobre a cabeça amassada de um dos homens, os miolos do bastardo manchavam a neve imaculada. Outros cinco corpos jaziam espalhados, todos em semelhante estado de desmembramento, pelo menos três cabeças foram esmagadas até que se parecessem com gelatina, e um lycan se alimentava do que pareciam ser os intestinos de um dos mortos.
O olhar de Alcina vagou pela carnificina pelo menos duas vezes ao buscar Elora, o coração quase parado no peito, a mente em branco de tal modo que nem mesmo o rato raivoso ousou lutar contra sua gaiola. Isso é, até que a viu.
- Sinto muito, Alcina. Não fui rápido o bastante...
Elora, o amor da sua vida, a pessoa mais doce que já pisara naquele lugar miserável, o único ser capaz de manter a luz dentro de Alcina... Elora, que adotou três filhas crescidas como se fossem dela e as tratava como garotinhas. Elora, que aceitou ser sua esposa, que a amava em igual intensidade...
Seu corpo pendurado na árvore balançava levemente com a brisa noturna, o pescoço torcido em um ângulo estranho e antinatural, mas o pior eram os olhos abertos e vazios fitando o céu escuro pela vez derradeira.
- Fui ao castelo à procura dela, um dos meus lycans feriu a pata e Elora sempre foi boa com eles... – a voz de Karl falhou – As meninas estavam desesperadas, pobrezinhas, e me explicaram o que puderam.
Alcina sentia-se fora do corpo o caminhar lentamente até o corpo de Elora e mal conseguia levantar os pés, as palavras de Karl chegavam até ela como se estivesse muito longe, separados por uma barreira ou talvez pelo mundo todo. Parecia assistir a tudo como se fosse outra pessoa, viu-se estendendo as garras e cortando a corda, amparando o corpo de Elora e a embalando como se fosse uma criança.
Seus joelhos falharam e Alcina caiu contra a neve, embora mal sentisse o gelo entranhando-se pelo seu vestido. O berro inumano rasgou seu peito, sua garganta, e ganhou à noite carregado de dor e desespero; outro se seguiu ao primeiro, e então mais um e outro... Até que sua garganta parecia queimar como se alguém houvesse enfiado uma barra de ferro quente através da sua boca, queimando tudo dentro dela no processo; a dor irradiou-se por todo seu ser, física, mental e emocionalmente enquanto soluçava sobre o corpo inerte em seus braços. Elora parecia tão leve quanto uma folha de papel, sua ínfima existência esvaíra-se antes que Alcina pudesse chegar até ela e salvá-la. O rato raivoso soltou-se da gaiola e correu mordendo tudo o que via pela frente, fazendo Alcina culpar-se, culpar Elora por sair e Karl por não alcançá-la a tempo ainda que soubesse que os verdadeiros culpados estavam mortos.
O choro convulsivo roubou-lhe o fôlego e amorteceu o coração que parecia recusar-se a continuar a bater sem a mulher que amava perdidamente, como se a vida não valesse a pena sem ela.
Lentamente as lágrimas secaram, ainda que o desespero e a dor da perda continuassem latentes e palpáveis. Alcina não soube precisar quanto tempo se passara, tampouco notara quando Karl se aproximara das duas e manteve-se de pé ao seu lado; seu corpo todo doía, se pelo frio ou pela dor da perda não fazia ideia e tampouco interessava-lhe descobrir, sentia-se tão tomada por aquele sentimento que teve medo de ficar completamente vazia sem ele.
Alcina respirou fundo algumas vezes e fitou o rosto da sua amada. Os olhos de safira continuavam abertos, vazios de qualquer forma de consciência, fitando algo muito além do céu sobre suas cabeças, mas faltavam-lhes o brilho, a vida e Alcina sentiu-se morrer ao encará-los.
- Vamos tirar isso dela – Karl disse suavemente e se ajoelhou ao seu lado – Prometo que terei cuidado.
Cumprindo sua promessa, Karl puxou o pedaço que corta que ainda estava ao redor do pescoço de Elora e o retirou cuidadosamente, descartando-o em seguida.
Alcina retirou as luvas e tocou seu belo rosto, sua pele encontrava-se tão fria quanto a neve em que estava ajoelhada; os lábios de Elora começavam a ficar azulados como nunca deveriam ser, abertos em um grito silencioso pelo socorro que nunca veio.
- Ela está tão fria, Karl – a voz de Alcina saiu fraca, trêmula – Elora sempre foi tão quente, mas agora está gelada.
Alguns flocos de neve caíram lentamente, balançando de um lado para o outro de forma preguiçosa como se dançassem uma valsa e pousaram sobre o peito de Elora, bem próximo ao seu medalhão.
- Aqui, vamos cobri-la, certo? – Karl tirou o próprio casaco e cobriu o corpo inerte de Elora, deixando apenas seu belo rosto à vista – Pronto, querida, assim é melhor.
As lágrimas voltaram, caíram e mancharam o rosto de Elora quando Alcina não conseguiu contê-las. Dessa vez o choro foi baixinho, dolorido, cheio de tristeza que não podia segurar em suas mãos.
- Por que fez isso comigo, meu amor?– Alcina perguntou entre lágrimas e pressionou o rosto contra a testa de Elora – Você me deixou sozinha. Como pôde fazer isso comigo? Como vou contar às nossas filhas que mamãe não voltará para casa?
A tristeza a consumiu de uma forma que jamais pensou ser possível. Era desesperador saber que não havia lugar para fugir, tampouco qualquer esconderijo possível. Desejou ardentemente que não passasse de um sonho, um pesadelo, e que bastaria abrir os olhos e tatear sobre a cama para encontrar Elora; talvez a cama estivesse vazia, mas bastaria ir até o corredor para que as risadas das filhas, ou a melodia que seu amor estava sempre cantarolando, chegassem até ela. Mas não era um sonho, Elora jamais cantaria novamente, jamais abraçaria suas filhas ou brincaria ao seu lado, não haveria outra chance para trançar os cabelos de Cassandra, ler para Daniela ou tocar com Bela; Alcina jamais a abraçaria mais uma vez, jamais sentiria o calor da sua pele ou o toque dos seus lábios, e por mais que dissesse a si mesma que não esqueceria, sabia que aos poucos o cheiro de Elora também a abandonaria.
Deu-se conta de que na última vez que viu sua amada com vida ela estava sorrindo, rodeada pelas filhas que a abraçavam. Aquela era uma boa memória a ser mantida para sempre, trancada em seu coração e mente.
Aos poucos o choro foi-se novamente e Alcina conseguiu respirar fundo, a memória de Elora acenando em sua direção pareceu acalmá-la o suficiente para pensar com clareza.
- Providenciarei o funeral de Elora. Karl, ela adorava flores... Pode pedir a Donna que arranje algumas? Acho que não consigo.
- É claro, irmã. Qualquer coisa.
- Após prestar as devidas homenagens a Elora, quero que cada família do vilarejo envie uma donzela para meu castelo e esse será o novo tributo a ser pago – disse sem emoção alguma na voz – Não nos alimentamos dessas pessoas a pedido dela e olha o que fizeram em retribuição a sua bondade.
- Tem certeza disso, irmã?
Alcina virou-se para Karl e rosnou, a tristeza começava a dividir o espaço dentro dela com algo mais forte, uma raiva cega. A lua cheia brilhava completamente vermelha, cheia de sangue e maldade.
- Eles têm que saber, Karl.
- O que?
- Que mataram a última parte humana que havia dentro de mim.
Lady Alcina Dimitrescu não seria mais tão benevolente e eles pagariam caro por sua perda.
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