32. Uma chance ou uma maldição?
Quando eu acordei no dia seguinte, minha mente era um vazio assustador preenchido por um silêncio pior ainda. Minha cabeça doía, claro, e meu corpo reclamava do esforço que fiz para levantar, mas não tanto ao ponto de ser insuportável e ultrapassar o desconforto revirando meu estômago.
Meus olhos levaram longos segundos para conseguirem se ajustar a leve iluminação oferecida pelas brechas da cortina e a falta do corpo ao meu lado só me deixou mais desnorteada, uma vez que já tinha me acostumado em acordar com Tiffany confortável em cima de mim. O zumbido em meus ouvidos me fizeram respirar fundo para não me irritar tão precocemente e com muito custo consegui sentar na beirada da cama, olhando para tudo e para nada ao mesmo tempo numa falha tentativa de me situar.
Eu não fazia ideia de que horas eram, apesar de o calor indicar que estava bem longe de serem as primeiras horas da manhã, da mesma forma que não me lembrava do momento em que tomei banho e coloquei meu pijama. Mesmo forçando minha mente, tudo o que conseguia trazer de volta eram os momentos antes de eu e Yixing chegarmos no bar e a ideia do que tinha acontecido depois disso começava, exponencialmente, a me preocupar.
— Passei do limite. — Realizei baixinho, passando a mão pelo rosto em agonia. — Não deveria ser assim. — Suspirei, decepcionada.
— Que bom que sabe. — A voz firme me tirou de meus pensamentos e ao olhar para trás meu coração tropeçou um punhado de batidas.
Tiffany estava encostada na porta fechada atrás de si, mas o que me encontrou não foi o costumeiro olhar carinhoso ou o sorriso feliz que tanto mexia comigo. Sua postura era mais rígida do que me recordava e a forma como seus dedos batucavam na madeira em suas costas, em conjunto com a sobrancelha erguida, avisava que ela não estava em seu bom humor comum. Tinha algo de incômodo em seus olhos — eles também não estavam tão brilhantes como em todas as manhãs — e a parte mais sensível de mim alertava desesperadamente que novas barreiras tinham se construído entre nós.
A simples presença dela pesou o ar do quarto e meus dedos automaticamente ficaram inquietos ao me dar conta de que não conseguiria ler a castanha com a mesma facilidade a qual tinha me acostumado. Ela parecia disposta a não me deixar descobrir por conta própria o que estava acontecendo e eu, ainda atordoada pela ressaca e pelo lapso de memória, só conseguia engolir em seco e pedir que o que quer que eu tivesse feito que não tivesse sido muito grave.
— Tiffany. — Murmurei, a encarando sem saber ao certo o que falar. — Hm, bom dia.
— Boa tarde. — Respondeu ainda me analisando de cima a baixo. — Nós temos que conversar, mas vou deixar você se trocar e comer primeiro. — Uma rachadura surgiu na armadura que cobria sua figura e eu assenti, descartando a possibilidade de questionar ou ir contra seu comando. — Estarei te esperando lá embaixo. — E saiu, sem falar mais nada, me deixando para trás com minha preocupação e ansiedade.
Ao me ver sozinha, fiz minha higiene, tomei o remédio deixado por ela na mesinha e me troquei com tanta rapidez que ao terminar me encontrei sem ar. Minha noção de tempo tinha sido afetada e a falta da família Kwon fazendo barulho pelos cantos me trazia a sensação de estranheza, fazendo com que a incômodo em meu peito e em meu estômago piorassem.
Minha primeira refeição do dia não foi feita no melhor dos climas e Tiffany não me acompanhou, preferindo me esperar na sala e me deixar a sós com meus próprios pensamentos por mais algum tempo. Depois de satisfeita respirei fundo algumas vezes e segui até ela, sentando a uma distância que considerei confortável na medida do possível e que mantinha nossos espaços pessoais intactos, diferente de como vínhamos agindo nos últimos dias.
A castanha desligou a televisão com calma e, depois de refletir um pouco, se virou em minha direção, os olhos voltando a adotar o caráter analítico que fazia arrepios cortarem meu corpo.
— Você se lembra de alguma coisa de ontem? — Incrivelmente seu tom não estava tão frio quanto antes, mas a seriedade aumentou inegavelmente.
— Não, não lembro nem como cheguei aqui. — Passei a mão pelo cabelo e torci que ela não desse muitas voltas no assunto, pois eu não conseguiria segurar a barra por muito tempo.
Eu poderia estar morrendo de medo por dentro, entretanto, quanto mais rápido as cartas fossem colocadas na mesa, mais rápido nós poderíamos conversar e resolver a questão.
Bom, quanto a isso, eu deveria ter mais cuidado com meus próprios desejos.
— Eu sabia que você era imprevisível, mas me pedir em casamento enquanto bêbada definitivamente não estava na minha lista de surpresas possíveis. — Ela pronunciou cada palavra de um jeito lento, como quem ainda duvida da própria verdade, e um tanto irônico, me encarando ao final da frase apenas para voltar a subir a sobrancelha e deixar claro que ela não queria desculpas.
Ela queria explicações.
Queria explicações e eu mal conseguia processar direito o que tinha acabado de ouvir.
O que diabos eu tinha feito?
++
Quando criança, eu costumava assistir os aviões atravessando o céu e me perguntar para onde as pessoas dentro dele estavam indo. Me perguntava como seria sair daquele lugar em que vivi por, basicamente, minha vida toda e como seria respirar ares completamente diferentes daqueles aos quais já conhecia tão bem.
Quando mais jovens, eu e Jessica costumávamos idealizar como nossas vidas seriam assim que a escola acabasse e em nossos planos sempre existiam inúmeras viagens para diferentes países, nas quais nós viveríamos histórias ala Hollywood e que seriam lembradas para sempre. Nós tínhamos uma lista imensa de lugares que deveríamos visitar antes de morrer e diversas foram as vezes que narramos, em meio a sorrisos sonhadores e crenças quebradas, como queríamos que as coisas fossem.
A gente só não contava que, de uma hora para outra, um desses sonhos esquecido entre as responsabilidades do dia a dia e a cruel realidade iria se tornar realidade.
No dia do jantar na casa dos meus pais era mais que óbvio que algo estava inquietando Taeyeon — esse parecia um dos traços que ela dificilmente conseguia esconder: quando algo importante a inquietava — e mais tarde, quando o convite veio, jurei que ela estava brincando, falando da boca para fora, e que eventualmente esqueceria que sequer cogitou a ideia.
Porém, no melhor jeito Taeyeon, ela fez questão de deixar claro que não estava mentindo e tinha toda a intenção de me carregar nem que fosse nas costas para sua terra natal como se nos conhecêssemos a vida inteira. Nem mesmo Jessica, e suas complicações, vindo na bagagem a impediu de seguir adiante com seu projeto inicial e eu, em êxtase, pouco pude fazer para mudar as ideias teimosas nessa mente tão confusa.
Dizer que não passei dias me questionando sobre o assunto seria mentira da minha parte. Cheguei até mesmo a passar uma ou duas noites pensando incessantemente sobre ela, sobre a viagem e sobre tudo que estávamos construindo. Ao não chegar em nenhuma conclusão satisfatória e me enrolar demais em sentimentos e pensamentos que em nada me ajudavam, o que me restou foi seguir em frente, aceitando o que viesse, absorvendo o que acontecia e aproveitando as oportunidades que, por algum motivo, a vida tinha escolhido Taeyeon para me proporcionar.
E então a viagem veio, mesmo com todos os problemas e as dificuldades que minha querida irmã trazia propositalmente com ela. De repente eu não estava mais no chão assistindo o avião fazendo seu trabalho tranquilamente, mas sim dentro dele, seguindo para um país completamente diferente e tendo minha irmã do meu lado, assim como a loira que parecia disposta a virar meu mundo de cabeça para baixo até a última instância.
Ao chegar em terras brasileiras, tudo parecia um sonho. A sensação de estar presa dentro de uma ilusão criada pela minha mente ficou comigo até o momento em que seguimos em busca do nosso táxi, pois além de ser recebida um dos inúmeros conhecidos da Kim, esse foi o momento em que senti o ar diferente me tocar pela primeira vez, que realizei que estava sim longe de casa, mas que aquele nem de longe se parecia com um lugar estranho.
A sensação de familiaridade era grande o suficiente para me ajudar em meu ajuste e me causar perplexidade, pois não fazia o mínimo sentido. Era como se meu corpo reconhecesse algo que eu não conseguia entender, como se meus pés já tivessem andando por aquelas ruas que portavam tanta luz e tanta solidão ao mesmo tempo e como se minha alma se adaptasse a algo muito maior do que palavras pudessem definir por mim.
Cada dia passado na grande metrópole foi uma experiência diferente, marcante a seu jeito, e Sunny só deixou as coisas ainda melhores. A forma como ela recebeu e acolheu a mim e a Jessica fazia parecer que éramos da família; para ela pouco importava se éramos meramente amigas de Taeyeon e suas acompanhantes de viagem ou que ela não nos conhecia direito, ela nos tratava com o mesmo cuidado e carinho que tratava a amiga de longa data e talvez esse tenha sido um dos fatores que fez minha irmã, logo ela, cair de amores pela Lee como se não houvesse amanhã.
E falando nela, as mudanças em Jung, especialmente após a presença de Sunny, eram no mínimo interessantes de se observar.
Aos poucos ela foi deixando a constante defensiva de lado para dar espaço para um pouco mais de calor para si e os outros ao redor, sem o medo para fazê-la recuar. Suas implicâncias com Taeyeon foram diminuindo gradativamente e até mesmo a forma como ela encarava as pessoas começou a mudar depois de algumas conversas entre ela e a Lee.
Elas se davam bem, simples assim, e era como se a amizade que aflorou tão de repente, tão rápido e num lugar tão inesperado tivesse sido planejada desde o começo.
Os dias passaram e cada nova manhã era um sopro de vida nesse coração que já tinha desaprendido a bater em ansiedade. Cada visita, cada curiosidade descoberta e cada sensação tão distinta era uma linha nova no diário interno que eu mantinha, narrando aquele período que nunca voltaria e que significaria para mim muito mais do que apenas uma viagem.
Significaria muito mais…
Muito mais.
As coisas começaram a sair dos trilhos quando a briga entre Taeyeon e Jessica aconteceu, e trato como briga pois qualquer ser com o mínimo de percepção seria capaz de dizer que elas tinham brigado feio antes de chegarem no apartamento de Yixing. Elas não admitiram nada sobre o assunto, sequer tocaram nele ao contar a grande descoberta que fizeram, mas eu, Yixing e Sunny não éramos burros e sabíamos que tinha muita coisa que elas estavam escondendo propositalmente de nós.
Aquela noite por si só foi cansativa para todos, sem exceção. Enquanto parte de mim aproveitou até a última gota do dia, a outra parte não conseguiu focar em outra coisa que não fosse a distância dolorosa que Taeyeon estabeleceu entre nós numa tentativa de lidar com o que se passava em seu interior e na proximidade quase vulnerável de Jessica que nada falava, mas aparentava drenada por algum motivo que ela não estava disposta a verbalizar.
No dia seguinte, após termos que lidar como uma Jessica sem suas necessárias horas de sono e uma Taeyeon excessivamente pensativa, veio a revelação que fez meu mundo ruir.
— Taeyeon, o que aconteceu com a sua marca? — Foi o que meus ouvidos captaram antes de entrarem em alerta para a cena disposta a minha frente.
A marca que eu tinha visto apenas de relance algumas vezes e que Taeyeon quase nunca citava tinha desaparecido… E aparecido no peito da minha irmã. A ideia do que aquela troca podia significar fez meu corpo tremer dos pés a cabeça e juro que por um segundo senti que não conseguia respirar direito, nem meu coração batendo como um louco em meus ouvidos foi o suficiente para me trazer de volta a terra firme e para longe do redemoinho de pensamentos que seguia para destinos que eu não tinha estômago para aguentar.
Depois daqui, as coisas começaram a ficar estranhas. Agora Jessica e Taeyeon tinham que superar as próprias diferenças e aceitar que estavam presas a muito mais do que apenas a minha existência em suas vidas. De um dia para o outro Jessica decidiu que não seguiria com o plano tão bem definido por si e que queria passar mais uma semana com Sunny, que não questionou e apenas aceitou, ignorando todas as vezes que deixou claro que faria o possível para não dar muito tempo a sós para mim e para a Kim. Yixing parecia saber de coisas que só as estrelas podiam deduzir e me olhava com um brilho extremamente específico nos olhos, ao mesmo tempo que aparentava se questionar a veracidade de coisas ainda mais confusas.
E tinha Taeyeon, é claro.
A mulher que preferia o silêncio e a observação ao barulho e agitação da cidade que tanto lhe interessava, mas pouco seduzia os olhos treinados. Ela que não media esforços para me fazer sentir como uma espécie de ser excessivamente especial e que só faltava chorar de frustração quando eu queria retribuir tudo que ela fazia por mim. Ela que me seguia sem perguntar para onde estávamos indo, que faria qualquer coisa que eu pedisse e que não demorava a ceder aos meus desejos, por menores que fossem, só pelo gosto de me ver genuinamente feliz.
Ela que via o mundo passar em cores diferentes e que lentamente ia deixando eu embarcar consigo no barco que por muito tempo ela viajou sozinha, acompanhada apenas pela voz de Hyoyeon e guiada pelo brilho daqueles ao qual lhe importavam.
Ela que guardava coisas demais perto de seu peito, que fazia mais do que deveria e que se apoiava em palavras tão instáveis que chegava a ser engraçado assistir seu malabarismo para se manter de pé.
Essa última parte era a que mais me intrigava desde o dia em que nos conhecemos, porque, mesmo com todo o tempo passado, ela nunca tinha deixado de passar a sensação de que tentava demais. Quando a viagem para o Rio chegou, sua inquietação deu sinal de vida ainda antes de sairmos do aeroporto e só foi aumentando a medida que os minutos iam passando e a presença de Jessica não estava mais junto para ofuscar seus gestos repetitivos e olhares alarmados que ela soltava vez ou outra quando pega desprevenida.
Passei dias me dividindo entre aproveitar tudo que acontecia e refletir sobre Taeyeon. As vezes, quando ela não estava olhando ou estava distraída com algo, eu a encarava e me perguntava qual seria verdade que ela se esforçava para esconder e qual seria a real motivação de tudo aquilo que ela fazia e não explicava para ninguém, nem para ela mesma. Sempre que podia tentava a coagir a verbalizar os pensamentos que povoavam sua mente e vez ou outra funcionava, contudo, as respostas que eu mais queria saber pareciam ser justamente as que ela não pretendia dar tão cedo e isso me frustrava profundamente.
Logo, tendo esse cenário em vista, não foi surpresa eu ter ficado a própria definição de confusão quando, em meio a um dia que estava próximo do perfeito, ela simplesmente decidiu que precisava de Yixing e de distância da minha pessoa. Mesmo não questionando e deixando que ela seguisse com o que achava melhor, o caminho inteiro de volta a casa dos Kwon foi feito comigo me perguntando o que diabos estava acontecendo para ela estar agindo estranho desde o começo da semana e se tal coisa não seria um sinal do mundo para que eu me preparasse.
Acredito agora que sim e que eu deveria ter olhos mais atentos para os sinais estranhos que a vida adora dar.
As horas depois de minha partida se passaram em preocupação, especialmente porque Yuri não pôde ficar muito comigo depois de chegar do trabalho e os Kwon terem ficado até de madrugada no bar, me deixando sozinha e a mercê de meus próprios pensamentos. Confiar no Zhang não era o suficiente para tirar de mim a sensação de que algo estava muito errado e nem mesmo as horas conversando com minha irmã e amigos conseguiu acalmar o coração batendo em meu peito.
Passada a meia noite, a campainha ressoou pela casa e a imagem que encontrei ao abrir a porta era impressionante na mesma medida que era cômica.
Zhang e Kim estavam a minha espera, mas não da forma mais convencional. Yixing tinha uma expressão levemente estressada enquanto tentava se manter parado no lugar e também manter a calma enquanto uma Taeyeon extremamente bêbada se pendurava em si com tudo que tinha. Ele se esforçava para não deixá-la cair e para ela isso pouco importava já que o brinco que ele usava parecia bem mais interessante para seus dedos e olhos do que todo o trabalho que ele estava tendo para mantê-la longe de uma queda dolorosa.
— Tiffany! Ainda bem! — Ele agradeceu para ninguém específico ao mesmo tempo que sorria tímido. — Ela passou da conta, mesmo eu tentando regular e manter ela na linha. Desculpe pelo transtorno e te deixo me xingar depois se ela te irritar demais. — A forma como ele falou a última parte dava a entender que o real transtorno não tinha nem começado ainda. — Preciso ir agora, se puder coloque o celular dela para carregar que a essa altura ele deve estar morto. Ligo amanhã pra saber se está tudo bem, ok? — Me olhou com cuidado e ao receber meu aceno ele suspirou.
Ele cutucou a loira pendurada em seu braço e apontou para mim, indicando que ela deveria vir em minha direção.
— Fany! — Seu rosto clareou ao me perceber e seu corpo já estava com meio caminho andado em direção ao meu abraço quando algo aconteceu e seu humor despencou bruscamente. — Fany, que bom te ver. — Ela murmurou ao se apoiar em mim e Yixing negou com a cabeça ao observá-la com atenção, rindo pela respiração.
— Não dê trabalho para ela, Taengoo. Se comporte e não se arrependa. — Pediu e acariciou o rosto corado levemente antes de apertar meu ombro e se afastar, a ruga de preocupação em sua testa inegavelmente óbvia. — Se cuide, Tiffany, nos vemos depois. — Acenou sorrindo e correu em direção ao táxi que o esperava.
Assisti o carro sumir de vista e depois olhei para Taeyeon extremamente próxima de mim.
— O que eu faço com você? — Murmurei com ar de riso, aliviada que ela estava a salvo, mas curiosa com o que teria levado a tão controlada Kim a ficar naquele estado.
— Boa pergunta, porque eu também não sei o que fazer comigo. — Respondeu com um bico gigantesco nos lábios.
— Vamos começar pelo básico então.
Pedindo que ela firmasse seu aperto em mim, consegui nos afastar da porta e nos guiar para o sofá mais próximo, escutando ela resmungar coisas desconexas durante todo o caminho. Ao se sentar, e sem me dar tempo para respirar, Taeyeon começou a protestar minha decisão, dizendo firmemente — da forma que podia — que queria subir para o quarto de todo jeito e que se recusava a ficar na sala com o risco de qualquer um dos Kwon chegar e vê-la naquele estado. Eu até tentei negar e mostrar o risco que seria subirmos, porém ela não aceitaria “não” como resposta e no fim tive que ceder a seu desejo.
— Fany, você sabe que eu gosto muito de você, não é? — A ponta de seu dedo cutucou minha bochecha e eu ri de seu tom, segurando mais firme sua cintura na hora de subirmos o último degrau. — Se eu pudesse eu faria tudo por você. — Sua fala se embolava de tempos em tempos, o que era engraçado e fofo.
— Você não precisa fazer tudo por mim, Taeyeon. — Respondi calmamente, suspirando em agradecimento ao conseguir abrir a porta e nos empurrar para dentro do quarto.
— Mas eu deveria! — Bateu o pé no chão, parando nossa caminhada. — Você é especial. — Nossos olhos se encontraram e a seriedade nos dela chegou a me assustar.
— Não me trate como um ser de outro mundo, Kim. — Acariciei a pele sob meus dedos e a puxei em direção a cama, engolindo em seco o cansaço quando o corpo dela caiu no colchão num baque mudo. — Vai me contar o que aconteceu para beber tanto ou vou ter que descobrir por conta própria? — Inquiri com a mesma tranquilidade de antes, me movendo para a extremidade da cama para tirar seus tênis e depois seguir a instrução do Zhang.
Taeyeon, com a cabeça enfiada no colchão, ponderou por longos segundos em total silêncio, me deixando cumprir com minha tarefa sem atrapalhar.
— Lidar com uma ressaca é melhor do que lidar com o inferno na minha cabeça. — Foi o que ela me ofereceu de resposta e eu franzi o cenho.
— Achei que estávamos aqui para nos divertir. — Comentei e ela grunhiu, se virando para encarar o teto.
— Isso não me impede de fazer o que faço de melhor: pensar demais e estragar tudo. — O mau humor de sua própria fala aparentemente a impressionou pois seus olhos se arregalaram e depois ela caiu na risada, presa em seu mundinho. Ao fim do riso ela se virou em minha direção e me olhou atentamente, tentando focar sua visão afetada em minha figura com a mesma dedicação usava para observar o céu. — Você é linda.
Ri baixo de sua expressão e dispensei o elogio, reprimindo a gargalhada que queria fugir ao notar ela bufar irritada por minha ação.
— Por que não me conta o que aconteceu de verdade ao invés de ficar falando essas coisas, hum? — Assisti ela se sentar na cama e tirar a camisa debilmente, tendo seu cenho a franzir cada vez mais. O cabelo bagunçado e a expressão cansada dava um ar pesado para ela. — Tem um monte de coisa que você não me conta e acha que eu não percebo, mas tenho uma má notícia pra dar; eu percebo sim. — Sentei ao seu lado na cama e Taeyeon manteve seus olhos em mim sem falar nada, compenetrada em pensar, ou pelo menos tentar. — Não vai conseguir fugir de mim para sempre.
— Me diz uma vez que eu consegui fugir de você. — Riu sem muita vontade.
— Me diz uma vez que você não fugiu de mim. — Devolvi num tom mais leve, começando a reconsiderar minha decisão de dar ouvidos e, pior, de conversar com a bêbada ao meu lado.
Outra pausa foi feita e a loira passou a mão no rosto.
— Em outros tempos eu pediria para você não me odiar. — Torceu os lábios, o tom baixo, lento e sério como eu não esperava. — Mas eu me odiaria no seu lugar, então não é como se eu pudesse esperar o contrário de você.
A agressividade mal contida em suas palavras me causou surpresa, mas preferi não pontuar isso, tentada demais a ver o rumo aquilo teria para dar motivos para ela mudar de assunto. — E por que eu te odiaria? Não há motivos. — Incentivei, prestando atenção em tudo que pudesse explicar aquela noite estranha e aquela Taeyeon.
— Porque Jessica está certa. — Ela desviou o olhar ao pronunciar tais palavras e eu pendi a cabeça, escutando ela engolir em seco. — Não trouxe você comigo só porque sou uma boa amiga, tem outro motivo. — Murmurou, começando a encolher no lugar.
Aquela confirmação não foi necessariamente uma surpresa. Um baque sim, pois era a confirmação de minhas suspeitas vinda diretamente da boca da própria Kim, mas dificilmente uma surpresa.
Eu nunca confiei cem por cento nela, afinal.
— E qual seria o motivo? — Não mudei meu tom nem minha postura, queria que ela fosse honesta e se prendesse menos, e para isso eu precisaria deixar meus próprios sentimentos de lado um pouquinho.
Taeyeon, depois de criar coragem, me olhou e ficou na mesma posição por tempos, prestes a explodir como uma bomba relógio em contagem regressiva e aparentando enfrentar o maior dilema de sua vida. Seus olhos tremiam e seus dedos apertavam tanto o lençol que não levaria muito mais para que eles rasgassem o tecido.
Por fim, com um suspiro pesado e dolorido, ela pendeu a cabeça para trás, fechou os olhos e tomou fôlego para pronunciar a seguinte sentença:
— Preciso te pedir em casamento.
Pisquei algumas vezes para ter certeza de que tinha escutado certo e franzi o cenho.
— Acho que eu não escutei isso certo… Casamento?! — Meu corpo inteiro demonstrou meu choque e ela se encolheu ainda mais no lugar, quase virando uma bolinha humana.
A solitária e, beirando a gélida, sentença ficou dando voltas e mais voltas em minha mente até que essas cinco palavras parassem de fazer sentido. De repente, encarando a expressão perdida e afetada por tudo que tinha acontecido, me vi incapaz de realmente acreditar naquilo que ela falava com tanta convicção e isso ficou claro quando, sem querer, o ar de divertimento voltou como meu companheiro e meus ombros relaxaram.
— O quanto você bebeu, ein? Não pode fazer assim, Taeyeon. — Me esforcei para pronunciar a frase que Yixing tinha me ensinado dias atrás e suspirei tranquilamente, não dando credibilidade ao que tinha acabado de ouvir.
A questão é que a Taeyeon que antes se encolhia em diversos sentimentos embaralhados, de um segundo para o outro, se tornou a Taeyeon de sobrancelhas franzidas e olhos intensos, me encarando como se eu tivesse acabado de ofendê-la.
— Você não está acreditando? — Questionou baixo, quase refletindo meu próprio tom, mesmo que não fosse bem isso que seu corpo demonstrava.
Taeyeon ficava estranha quando bêbada.
— Não sei, você pode estar falando isso porque está alterada. — Dei de ombros, meio incerta, e ela, ao perceber minha hesitação, decidiu que seria uma ótima ideia deixar a cama.
— Não estou brincando, Fany. — Riu rapidamente. — E para provar isso, porque eu vou provar... — Se apoiou na cama quando quase caiu e dispensou minha ajuda para seguir cambaleando em direção ao celular carregando em cima da mesa. — Vou te mostrar meu trabalho. — Mais resmungou do que falou.
Depois de passar algum tempo ligando o aparelho e mexendo no mesmo em busca de algo, Taeyeon veio ainda cambaleando em minha direção. Ao cair ao meu lado ela me entregou o aparelho e um leve rubor tomou conta de suas bochechas ao indicar que eu me atentasse a ele.
— Eu não sou poeta, mas fiz o meu melhor. — Se explicou e depois riu mais, porém acho que dessa vez foi de desespero. — Não ria de mim, por favor. Deixe essa parte comigo.
A observei em hesitação antes de finalmente me focar no que reconheci ser um texto enorme em seu bloco de notas. Desde nossa chegada no Rio, Taeyeon tinha aumentado o tempo que passava no celular e quando menos se esperava lá estava ela, apoiada ou sentada em algum lugar digitando furiosamente enquanto aparentava extremo foco e um pouco de estresse. Tal detalhe não passou despercebido por mim e minha língua coçava para perguntar o que ela tanto fazia ali… Bem, a resposta estava em minhas mãos naquele momento.
O texto começava com diversos pedidos de desculpa, como já estava virando moda. Os primeiros parágrafos eram inteiramente dedicados a se desculpar, expressar o quanto aquilo também não a agradava e, supostamente, tentar explicar os motivos que a levariam a me pedir em casamento. Ela falou sobre a pressão e as ações do pai, falou das mensagens, convites e flertes que precisava ignorar e das ligações que se recusava a atender. Contou sobre sua preocupação com a saúde do Kim mais velho e sobre sua ciência de que tanto ele quanto a mãe escondiam o frágil estado de saúde dele para não preocupá-la.
Tendo essa parte explicada, o resto se resumia a uma Taeyeon muito vulnerável, eu diria, tentando me explicar que suas intenções, apesar de não tão nobres quanto ela fazia parecer desde o início, não tinham a mínima intenção de afetar de modo ruim a mim e a minha vida e que ela não se impressionaria caso eu a chutasse para fora da minha vida depois daquilo. Ela pedia, suplicava praticamente, ao longo do fim de seu texto que eu não duvidasse da veracidade de seus sentimentos e que cada coisa que ela fez e disse até ali tinha mais fundo de verdade do que eu seria capaz de compreender. Afirmava com todas as letras que sua vida tinha melhorado desde minha chegada e que se no fim eu decidisse dizer “não” e ignorar sua existência, que pelo menos eu não esquecesse das memórias que fizemos e soubesse valorizar quaisquer que tenham sido as coisas boas que nos envolviam.
Para fechar, suas últimas palavras foram as seguintes:
“Eu posso ter caído como uma piada da vida para você e talvez eu realmente não te mereça, mas, quem sabe, certas oportunidades só chegam até nós uma vez para nunca mais. Você vai escolher encarar isso como uma chance ou como uma maldição?”
O completo choque me impedia de falar e durante minha leitura tinha sido como se o mundo tivesse parado por alguns minutos. Os olhos de Taeyeon estavam longe de mim e parte de mim agradecia que o teto era mais interessante para ela do que eu, porque naquele estado eu provavelmente desmontaria sob seu olhar.
— Fany… — A voz baixa e cautelosa chamou. — Eu sei que você tá ocupada, mas eu sinto que vou desmaiar de sono. — Ela contou com os olhos fechados e a expressão demonstrando que não estava exagerando.
Meu corpo, que não estava conseguindo digerir tudo que eu tinha acabado de ler, automaticamente se pôs a trabalhar, mantendo o silêncio enquanto a ajudava a se despir para tomar banho e seguia as grogues instruções que ela dava vez ou outra. Minutos depois Taeyeon estava perfeitamente arrumada em seu pijama e apagada na cama, dormindo como uma criança que brincou a tarde inteira e desbravou reinos que só viviam em sua imaginação. E se por um lado ela aproveitava seu sono, eu ficava sozinha para lidar com tudo que, indiretamente, ela tinha me dito.
Muitas coisas começavam lentamente a fazer sentido e muitas peças que outrora faltavam nos quebra cabeça que Taeyeon introduzia em meu coração iam mostrando sua localização, denunciando existência em lugares que eu nunca imaginaria conseguir encontrá-las. As falas ensaiadas faziam sentido agora, bem como a estranha calma que ela exibia por aí se mostrava uma mera fachada para todo o caos que vivia em constante movimento em seu universo. Os olhares nervosos não mais soavam como simples impressões erradas que eu pudesse ter tido. A preocupação excessiva, a gentileza quase vinda de um livro de fantasias, todas as vezes que ela se assemelhou a um personagem estranho num cenário conhecido e tantos outros detalhes iam se clareando, assumindo explicações e desconstruindo tudo aquilo que eu acreditava saber sobre ela, sobre nós e sobre mim.
Naquela noite eu não dormi muito, se é que dormi realmente. Ao deitar ao lado da loira ressonando baixinho ao meu lado, a inquietude que ela evidenciou durante longos dias agora era o fantasma que mantinha meus olhos abertos, esses que se recusavam a focar em outra coisa que não a imagem dela.
As perguntas continuavam ali, me cutucando e me torturando, mas era a voz sussurrando no meu ouvido para não me apressar e cantarolando melodias que somente minha alma seria capaz de entender que me fazia encará-la numa tentativa de compreender mais do que interrogar.
Eu tinha muito a falar e muito a escutar. O amanhã não demoraria a bater na porta e algo me dizia que no fim não adiantava eu tentar esperar pelo momento certo para questioná-la, já que ele não viria, e pelo menos uma de nós deveria ter coragem o suficiente para encarar as coisas como elas eram.
Minha mente estava desestabilizada e meu coração enfrentava batalhas que causavam caretas doloridas em meu rosto, mas no fundo, mesmo a contragosto, eu sabia minha resposta, assim como lentamente era obrigada a aceitar certas verdade que por um longo tempo zombariam de mim.
++
Quando a última palavra deixou os lábios de Tiffany, o silêncio era a única coisa capaz de ser ouvida além da minha respiração errática. O processo de clareamento das memórias que ficaram escondidas até o momento não só era levemente doloroso como vinha num pacote cheio de sentimentos, desde o arrependimento por passar da conta até o pavor das consequências do que tinha feito.
Minhas mãos correram pelo meu rosto algumas vezes e Tiffany não interrompeu minha pausa de realização. Eu não saberia dizer o que passava na cabeça dela, muito menos o que ela estaria sentindo para estar tão quieta, todavia, não é como se eu pudesse fazer muita coisa pra mudar a situação.
— Tiffany, eu… — Tentei, mas minha voz se recusava a sair corretamente.
Depois de respirar fundo algumas vezes e engolir em seco já pronta para receber qualquer que fosse a reação dela, ajeitei minha postura e a encarei. Nossos olhos se prenderam uns nos outros e o silêncio incerto se estendeu.
Sem saber o que fazer, abri minha boca para tentar perguntar alguma coisa coerente, mas contrariando minhas expectativas, a armadura de Tiffany se rachou em algum momento e se desmontou no instante em que seus ombros caíram, seus olhos se fecharam e um suspiro sôfrego escapou de seus lábios.
— Você está chateada? — Questionei baixinho quando achei seguro, a observando com cautela numa tentativa de compreender o que estava acontecendo a minha frente.
— Honestamente? Eu estou mais chateada com o fato de você não confiar em mim e ter dado toda essa volta quando poderia simplesmente ter conversado comigo. — As palavras dela me impressionaram, entretanto, a decepção em seu tom não me permitia ficar feliz.
Hwang apertou as pálpebras levemente e depois me olhou, cruzando as pernas em cima do sofá e entrelaçando os próprios dedos, sua atenção completamente voltada para mim.
— Eu não te negaria ajuda, Taeyeon, mesmo numa situação dessas. — Torceu os lábios, contrastando com a seriedade e honestidade de sua fala. — Eu não sei ao certo o quão ruim é essa situação entre você e seu pai, mas se você precisava de uma mão amiga, por que não me pediu? Por que mentiu? Por que passou por tudo isso em silêncio? — Foi a vez dela de passar a mão pelo cabelo em estresse. Ela estava realmente chateada. — Você achou mesmo que para eu aceitar você teria que me levar em uma viagem? Gastar horrores comigo e com a minha irmã? Você realmente acha… — Ela se interrompeu forçadamente no meio da frase e respirou fundo, tentando retomar a calma. — Desde quando você está planejando isso?
Me sentei de frente para ela, copiando sua posição, e encarei minhas mãos ansiosamente.
— Faz um tempo, desde um pouco antes do jantar na sua casa. — Menti sem olhar em seus olhos. Eu não seria doida de citar Hyoyeon. — As coisas começaram a piorar mesmo depois da visita do meu pai e eu… Entrei em pânico. — Subi os ombros, incapaz de levantar o olhar.
— Ele está te obrigando a ficar com alguém?
— Ele está tentando. — Comecei a brincar com os dedos. — E eu não entendo o motivo. Ele sempre me respeitou muito e sempre respeitou igualmente minhas relações pessoais, não faz o tipo dele esse comportamento, mas… Talvez eu não o conheça tão bem quanto pensava. — Sorri com um pouco de tristeza, eu procurava não pensar nisso justamente por causa dessa parte.
— Foi por isso que você bebeu ontem? — Tiffany perguntou com ar mais calmo e eu acenei.
— Hora ou outra eu teria que falar com você e isso estava me comendo por dentro. Eu não sei se aguentaria ver o arrependimento ou a decepção no seu rosto quando eu falasse a verdade. — Murmurei tentando esconder o quanto a mera ideia disso acontecer me afetava. — Sei que não posso te pedir tanto e sempre soube dos riscos de propor algo assim, eu só não queria te perder tão fácil. — Franzi o cenho ao sentir meu peito apertar e minha visão oscilar.
A próxima pergunta não veio. O que veio, em contrapartida, foi o toque da destra da castanha em meu rosto o levantando para que ela pudesse me olhar sem impedimentos.
— Oh, Taeyeon, por que você gosta tanto de complicar as coisas? — Ela acariciou minha pele com delicadeza e sorriu de lado antes de me puxar para um abraço meio desajeitado que acabou resultando em nossa queda, comigo em cima de seu corpo e ela bem confortável no sofá.
Toda a tensão que eu vinha sentindo nos últimos tempos se esvaiu assim que senti os braços de Tiffany enlaçando minha cintura e o calor de sua pele contra a minha. Era alívio misturado a surpresa pelo rumo inesperado que os acontecimentos tomaram, era temor por tudo aquilo que eu evidenciei através de minhas atitudes misturada a noção de que se ela me desse uma chance eu faria as coisas direito, a todo e qualquer custo.
— Você ainda tem muita explicação a dar, mas por ora acho que é justo que eu te dê uma resposta já que noite passada alguém estava bêbada demais para sequer ficar de pé, certo? — O tom brincalhão fez meu coração acelerar, confirmando que apesar de sua chateação ela não iria me afastar de imediato, e por pouco a primeira parte não passou batido por mim.
Acenei incerta e me afastei de seu pescoço para olhá-la, incapaz de dizer qual seria seu veredito.
Ela me analisou brevemente e riu baixinho de minha expressão antes de apertar minha bochecha de leve e aproximar ainda mais nossos rostos, me deixando três vezes mais nervosa.
— É melhor que seja capaz de me aturar a longo prazo, Kim. — Beijou a ponta do meu nariz e meu queixo caiu. Que bom que eu já estava deitada, caso contrário minha queda teria sido bem dolorosa.
— Isso é um “sim”?! — Murmurei em puro choque e ela acenou com um suspiro baixo, como se estivesse realizando junto comigo o peso de sua resposta e decisão.
E foi assim que eu me dei conta que o mundo não dá voltas, colegas, ele capota.
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