Salém, outubro de 1692.
Estava cercada por fogo. Os gritos pavorosos de centenas de mulheres eram claramente ouvidos, e Sehun soube que era seu fim. Não conseguiria correr mais. Seus pés estavam queimados, seu corpo suava e tudo que havia dentro de si gritava por água – e por ajuda, socorro, piedade. Quis saber se o Deus que tanto falavam era mesmo tão misericordioso, se tinha bondade suficiente para perdoá-la por algo que sequer era culpada. Quem sabe, se existisse, o controle que tinha para com os ventos não era dádiva presenteada por tal homem?
Não tinha mais forças para usar de seus poderes. Não podia pedir por mais, mas se fosse de sua capacidade, aquela cidade seria puro escombro. Traria os ventos do Leste e do Oeste, do Norte e do Sul, tudo que a tornasse capaz de defender a própria vida. Mas não era; já não tinha a tal da dádiva quiçá dada pelo Protetor que os assassinos da vila tanto falavam.
Quando sentiu os joelhos machucados entrarem em contato com a terra macia, se deixou chorar. Ouvia os gritos, sentia o calor das tochas perto de si. Sabia que estava morta e que, daquela vez, não haveria poder ou distração capaz de fazê-la fugir da fogueira. Ao ver os olhos castanhos e a pele morena do xerife da cidade, não ousou desviar; daquela vez, pelo menos, saberia morrer.
— Alguma palavra, bruxa? — o homem perguntou, desafiador.
— Te encontro no inferno, xerife.
— Queimem-na!
No dia trinta de outubro de mil seiscentos e noventa e dois, a última coisa que Sehun viu foi o olhar raivoso do xerife da cidade. As tochas jogadas em si foram testemunhas do sorriso desesperado que dera ao homem. Sussurrou um tchau inaudível em meio à tanta gritaria e, então, fechou os olhos para que pudesse se contentar diante de seu fim.
[...]
Salém, outubro de 1977.
— Sabe por que usamos fantasia, Jongin? — a garota perguntou, risonha, testando uma das máscaras que via pela loja.
— Por que, Chrystal? — Sorriu de volta, contagiado com a felicidade da melhor amiga.
— Porque é quando os mortos voltam à vida. Eles caminham pela cidade, e devemos nos fantasiar para que se confundam e achem que somos um deles. — Pegou duas fantasias da arara, virando para o amigo e fugindo do assunto. — Mulher Maravilha ou Elvira?
— Mulher Maravilha.
— Vou provar as duas. Enfim, não se sabe ao certo porque voltam. Alguns vêm ver a família, outros buscam vingança… É incerto. — Piscou. — Agora vamos, pegue a droga da fantasia de xerife e venha experimentar. A festa é hoje, Jongin. Hoje!
[...]
Constance era uma senhora muito bondosa. Filha de escravos, acabou por se casar com Hyunseok, um dos herdeiros de uma grande fortuna acumulada ao longo dos anos. De família rica, o homem descendia dos fundadores de Salém; era tataraneto de Yeolmin, um imigrante coreano que acabou por chegar na cidade em meados de mil e seiscentos. A família de Jongin era formada por uma linhagem de xerifes: o fundador e seu avô foram, seu pai era e ele, em breve, acabaria por se tornar.
Não havia fantasia mais óbvia – porém prestigiosa – que a de xerife, afinal.
A senhora sorriu ao ver o neto fantasiado, não se contendo e deixando as lágrimas passarem pelos sinais de idade. Acariciou os fios negros, logo movendo a mão pela pele macia.
— Você está igual ao seu avô, Jongin.
— A senhora acha? Papai sempre me diz que lembro o tataravô Yeol.
— Bom, eu não o conheci. Mas sem dúvidas, todos nessa família são meio parecidos. Você está virando um homem, Jongin! Estou tão orgulhosa de você!
— Virando? Devo lhe lembrar que tenho vinte e um, vovó?
— Não! Não me lembre, por favor. É demais para mim, meu netinho.
Gargalhou, dando um beijo na testa da idosa e se dirigindo à sala de estar. Encarou os retratos dos patriarcas da família, dedicando sua atenção a um em particular:
— Yeolmin Kim, vitória contra as bruxas. Trinta e um de Outubro de mil seiscentos e noventa e dois.
Não podia negar que, de fato, eram semelhantes. Se nunca houvesse falado do tataravô de Hyunseok, acreditaria ser uma pintura feita de si mesmo. Passou as mãos pelo vidro delicado que cobria a relíquia familiar, se atentando à estrela refletindo no peito do homem.
— Gostaria de saber o que você fez com aquelas mulheres, tataravô. Pobres coitadas.
[…]
Kim Jongin jamais vira mulher tão bonita. Em vinte e um anos de vida, não estivera diante de beleza tão peculiar. Ela parecia pálida demais para alguém possivelmente vivo e o vestido branco estava rasgado. Riu da ideia maluca de Chrystal, talvez a moça estivesse vestida de fantasma.
— Morta, aham — falou, desdenhoso.
Quando Dancing Queen tocava no volume máximo, aproveitou para observar a garota. Embora sua cara estivesse fechada, se movimentava pela discoteca com louvor. Aproximou-se da desconhecida, tocando delicadamente no ombro gelado.
Estranhou o espanto no rosto da moça ao que virou para si, mas logo se agraciou com o sorriso esboçado. Pegou a mão, que também estava gelada, e pôde jurar sentir uma ventania tomar conta do local fechado. Ao guiá-la para uma dança, estranhou ao ver certas manchas na pele branca. Vermelhas, como cicatrizes.
— Posso saber seu nome?
— Sehun Oh — respondeu, deixando-se ser guiada por ele.
— Belo nome. Eu me chamo–
— Como se eu não soubesse, xerife. Você que parece não se lembrar de mim. Vamos dançar, hm?
[…]
“Não se sabe ao certo porque voltam. Alguns vêm ver a família, outros buscam vingança.”
Do latim vingtare, a palavra vingança significa libertar, clamar, tomar desforra. Há mais de duzentos anos, Sehun planejava se vingar. Prometera que veria o maldito xerife Yeolmin no inferno e cá estava, levando-o para onde merecia estar. Não fora difícil identificá-lo, continuava o mesmo. Com os mesmos olhos bonitos pelos quais ela, tola, se apaixonara. Com o mesmo sorriso galanteador que, na inocência de suas dezoito primaveras, conquistou o coração e fez as borboletas em seu estômago voarem. Com a porcaria da voz rouca que lhe chamara de bruxa, aberração.
E, naquela dança, a última do homem antes de ganhar o passe livre que merecia em direção à solidão atribuída no Limbo. E, à meia noite em ponto, quando, com aquele beijo, sugava todo o ar do causador de sua morte, sorriu vitoriosa.
— Eu disse que te encontraria no inferno, xerife Minyeol.
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