“Sentamos e assistimos guarda-chuvas voarem. Estou tentando manter meu jornal seco. Ouço-me dizer: meu barco está partindo agora. Então apertamos as mãos e choramos, tenho que dar adeus. Sabe... não quero chorar, dizer adeus, fugir ou competir com esta dor. Nunca verei sua face novamente. Partimos enquanto dizem adeus. Passei a depender do olhar nos olhos deles. Meu sangue é doce para a dor. O vento e a chuva trazem de volta palavras de uma canção.”
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MAIO, 2009
Após dois meses de recuperação e reabilitação de seu estado crítico, Jill Valentine recebera a liberação médica do hospital onde fora acompanhada por uma equipe de especialistas que conseguiram reestabelecer afortunadamente sua saúde antes do prazo estimado. Caminhando sozinha porta afora do prédio por onde residira desde que retornara para seu país natal, ela admirava a imensidão do céu límpido ao olhar para cima. Intuía que logo poderia chover enquanto observava a formação de nuvens negras no meio daquela tarde de brisas agradáveis. Em seguida, passou a observar a esquina de onde viria o carro que seu parceiro prometeu buscar para os levar embora, na esperança de que ele não demorasse para retornar, pois sua presença a mantinha em uma segura estabilidade emocional.
Chris Redfield era o parceiro que a tinha resgatado de seu sequestro conturbado, acompanhado sua recuperação e cuidado diariamente dela desde que abriu os olhos. Ele era a pessoa a quem Jill confidenciava e confiava sua vida, tal como quando fazia antes daquele pesadelo. Estar perto dele era necessário desde que encontrar-se só era motivo de angústia, pois suas lembranças ruins costumavam regressar em tempos ociosos. Chris era seu alívio e sua tranquilidade, o motivo que não a deixaria enlouquecer como quase lhe ocorreu. Contudo, ainda preferia esconder dele algumas das consequências de seu sofrimento, porque sabia que já tinha sido o motivo de muito sofrimento para ele estando ausente. Tudo o que esperava era que seu retorno resgatasse ambos das tragédias vivenciadas, por mais que ela ainda causasse duras marcas que preferia esconder.
As pessoas que passavam de um lado para o outro naquela calçada movimentada a intimidavam. Pessoas desconhecidas lhe traziam sentimentos inquietos de estresse e medo, tal como a incidência de luzes acesas mesmo na claridade do dia. Em contrapartida, a presença de rostos familiares e espaços acautelados a consolavam da dor de ter visto seu corpo fazer coisas que ela não queria ter feito, coisas que ela abominava. Apesar de saber que já tinha controle sobre seu corpo e que jamais voltaria a machucar ou executar as pessoas desconhecidas ao redor, algo nela ainda a deixava duvidosa sobre seus comportamentos em sociedade. Por mais que ainda tivesse memórias intactas de sua vida antes do controle mental, Jill se deparava dentro do corpo de uma nova pessoa, como uma folha em branco, chegando a pensar que jamais voltaria a ser como antes e lamentava encontrar-se no dilema das novas perspectivas sobre si, como se auto avaliasse constantemente.
Incomodada o suficiente com pensamentos pessimistas ao mesmo tempo em que constatava uma mudança na sociedade nova-iorquina ao redor por ter estado um tempo ausente, Jill sentia uma ansiedade à flor da pele. Em busca de calma para manter-se em temperança, seus olhos instintivamente procuraram uma distração imediata para se apegar enquanto aguardava Chris. Observando um canteiro próximo à mureta do hospital, virou-se contra os demais enquanto se aproximava dali, contemplando a cor radiante das flores de primavera. Curvando-se, procurava sentir o perfume que exalava dos narcisos dourados à medida que notava as gotículas, que começavam a cair do céu já parcialmente nublado, derramando-se sobre a terra molhada. O cheiro de natureza a transportava de volta à sua infância, onde por vezes corria livremente na chuva pelos campos todos os anos em que se reunia na fazenda da família. Aquele singelo fenômeno presenteava Jill com o que ela nunca mais havia sentido nos últimos tempos: uma sensação de liberdade.
Enquanto arrastava suavemente seus dedos sobre pétalas aveludadas, sentia-se graciosamente orvalhada com pequenas gotas do alto sobre as partes expostas de sua pele, embora bem agasalhada em um sobretudo escuro. Seus cabelos, presos com um elástico, molhavam-se gradualmente pela chuva que também umedecia sua pele cálida.
Analisando seu entorno, podia perceber que a chuva afastara as pessoas de perto dela, deixando-a em uma momentânea e tranquila solitude. Observando o que presenciava em volta, Jill refletia sobre a fragilidade humana ao observar que as pessoas procuravam abrigar-se de gotas inofensivas sob marquises e toldos. Nisto, lembrou-se do clima que enfrentava diariamente no calor intenso de Kijuju. Molhada pela chuva depois de um bom tempo sem provar daquela sensação evidenciava sua sensibilidade humana. Era como se aquela água, tal como a que escorria de seus olhos, lavasse sua alma das manchas sombrias que atormentavam sua mente, como um remédio contra a dor que ela mesma se permitia sofrer pela culpa que remanescia de seus atos infames.
De repente, um carro acelerado freara bruscamente por trás de Jill, arrastando uma enxurrada de poça sobre a calçada e quase aos pés dela. Quando se virou para averiguar o carro, sabia que era chegada a hora de partir. Quando ela entrou no veículo com o rosto e as mãos encharcadas, Chris imediatamente ligou o aquecedor no painel e tirou do porta luvas uma caixa de lenços para entrega-la.
– É impressão minha ou você tomava um banho de chuva de propósito? – Chris indagou com uma das mãos no volante, assistindo-a prender o cinto de segurança sobre si.
– Quem me dera. – Jill secava seu próprio rosto que brilhava de tão molhado. – Quem sabe me tirava um pouco desse cheiro hospitalar.
– Acredite em mim, esse seu cheiro inebriante continua o mesmo. – Ele sentia o perfume agradável dela naquele carro depois de anos. Atenciosamente, olhou para trás afim de encontrar um tecido seco para enroupa-la. – Meu casaco está bem ali atrás, se quiser...
– Tudo bem, ainda estou bem aquecida por dentro do sobretudo. – Agradecia pelo cuidado. – Não me incomodo por estar molhada, de fato até me sinto mais refrescada. Afinal, minha pele tem andado tão quente desde então. – Comentou infeliz com a constância que seu corpo apresentava em altas temperaturas, já livrando-se dos lenços molhados enquanto observava Chris assentindo apreensivo.
– Você ainda está em recuperação e vai melhorar aos poucos. – Observou-a brevemente. Logo atentou-se a pista, acelerando o veiculo para posicioná-lo na faixa. Parando no sinal de trânsito, voltou-se para ela novamente, notando seu desânimo. – Aonde você gostaria de ir agora?
Mostrando uma face pensativa, Jill se atordoava. Recentemente, todas as perguntas pessoais que lhe eram feitas, demandando dela uma opinião pessoal, causava uma confusão que transparecia a insegurança dela. Ela estava reaprendendo paulatinamente a retomar seu próprio livre arbítrio. Voltar a ser dona de suas próprias escolhas, após sua mente ter sido controlada e vulnerável à vontade de terceiros, não aconteceria da noite para o dia.
– Me surpreenda. – Usou aquela desculpa como um desabafo.
Chris assentiu atento. Por mais que soubesse que Jill sempre fora naturalmente indecisa, estranhava aquelas respostas vacilantes. Era nítido o temor que uma simples pergunta boba lhe causava. Não era para ela desarmar uma bomba ou tentar escapar de um território inimigo, mas parecia que usar suas decisões lhe gastavam o mesmo esforço. Portanto, gentilmente pensou em um lugar que ela jamais rejeitaria em outros tempos. Aproximando-se do estabelecimento, encontrou uma vaga perfeita para estacionar na frente dele e por mais que aquele local estivesse lotado, sabia que por serem clientes há anos, conseguiria uma mesa para dois de última hora.
– Que tal pizza? – Indagou-a enquanto observava Jill maravilhada com a nova fachada da pizzaria, enquanto o cheiro agradável do alimento adornava as expressões do rosto dela. – Como hoje é por minha conta, pode escolher a mais cara do cardápio.
– Bons tempos. – Ela esboçava um sorriso de canto enquanto recordava-se da frase que ele costumava usar quando comiam pizza juntos em Raccoon. Antes que desligasse o veículo já desatando o cinto de segurança, Chris pode ouvir um riso contido de Jill e ao observá-la, ela o encarava ainda risonha. – Apesar de querer comer uma pizza inteira sozinha, porque você me conhece bem pra saber que consigo, não me incomodaria de dividi-la com você.
– Ainda lembra disso? – Especulou surpreso. – Daquele dia em que...
– Me lembro de tudo, Chris. – Admitiu sorridente, embora também soubesse da realidade dura que aquela mesma frase otimista carregava.
Sutilmente abatida de súbito, ela olhou para dentro do restaurante. Enquanto assistia a quantidade de pessoas desconhecidas naquele ambiente enquanto o carro era desligado, os assassinatos em massa que cometera contra algumas vítimas em ambientes semelhantes foram excruciantemente relembrados em flashes por ela. Quando não as executava friamente, os infectava, ouvindo-as agonizar até que o mal consumisse seus corpos dolorosamente. As memórias de ter matado em um estalar de dedos uma quantidade absurda de inocentes lhe embrulharam o estomago e ela teve que se conter para não vomitar dentro do carro.
Perdida em seus devaneios, mal notou quando Chris a chamava de volta à realidade enquanto acariciava sua nuca. Instintivamente, ela pressionou o botão de travamento da porta do veiculo ofegando assustada enquanto lentamente olhava para o homem ao lado. Notando que Jill usava uma das mãos para apertar seu próprio estômago, enquanto a outra tapava sua boca, Chris expressava estranhamento e antes que dissesse algo ou a indagasse sobre aquelas reações, ela quebrou o contato visual, mostrando-se cabisbaixa.
– Desculpe. – Confessava constrangida, já relaxando suas mãos. – Acho que ainda não estou pronta. – Explicou com uma voz fragilizada.
– Tudo bem, Jill. – Chris correu sua mão que outrora se agarrava carinhosamente em seu braço até encontrar suas mãos frias que se encontravam entrelaçadas sobre sua coxa, envolvendo-as porque no fundo compreendia a causa daquele possível mal estar. – Não precisa se desculpar. Eu sei que retornar à sociedade demanda tempo e a gente vai lidar com isso juntos, ok? – Concluiu observando que ela finalmente o encarava para concordar. – Que tal se eu pegar uma pizza pra comermos em casa como sempre preferimos fazer?
– Vou te esperar aqui. – Assentia enquanto dissipava seu rosto rígido, transformando-o em um rosto mais confiante. Ele tomou a liberdade de levar uma das mãos dela até seus lábios para um beijo consolador sobre seus dedos e em seguida, deixou o veículo.
Aguardando seu pedido, Chris observava seu carro pela janela do estabelecimento, compreendendo totalmente que os desafios ainda não tinham acabado com o retorno de Jill. Sabia que as atitudes desconfiadas, estranhas e hesitantes dela eram reações colaterais do trauma e por isso, ela passou a apresentar aquela constância de motivos preocupantes. Portanto, ir para casa não seria uma má ideia desde que ele havia preparado uma surpresa naquele lugar enquanto ela estava internada. Quando retornou ao carro, grato por vê-la tranquila, repousou a pizza gigante de seu sabor favorito sobre sua coxa e ela espontaneamente abriu uma brecha para satisfazer-se com o cheiro delicioso do conteúdo. No fundo, Chris entendia que Jill, mesmo diferente, ainda tinha dentro de si sua verdadeira essência anterior, que precisava urgentemente ser invocada e devolvida a ela.
Chegando à um bairro diferente de onde residiam, a cancela da garagem subterrânea de um edifício em uma rua movimentada identificou o veículo na qual se encontravam e abriu passagem de imediato. Quando estacionou o carro próximo ao elevador, Jill já apresentava desconfiança sobre aquela localização.
– Achei que iriamos para casa. – Protestou ao vê-lo desligar o veículo.
– Estamos em casa. Na nossa nova casa. – Observava os olhos arregalados dela. – Desde que você precisará continuar com os tratamentos no laboratório da BSAA, que fica a uma quadra daqui, pensei em conseguir um lar mais próximo para sua comodidade.
– Ah! Claro. Os “tratamentos por tempo indeterminado”. – Jill recordou-se do fato sentindo-se visivelmente incomodada. – Obrigada por tornar tudo isso mais confortável.
Caminhando lado a lado com Chris, podia notar que as sessões intensas de fisioterapias já haviam recuperado completamente sua mobilidade, porquanto ela já andava perfeitamente. Chris, que portava a pizza em uma das mãos enquanto envolvia a mulher ao lado, observava atentamente cada micro expressão dela sobre aquela surpresa, desde que ela ainda apresentava desconfiança. Quando adentraram ao elevador imenso, os olhos dela analisavam cada detalhe da decoração clássica que subentendia um luxo na qual não estava acostumada, enquanto Chris colocava sua digital sobre um dos botões do painel sem que ela percebesse.
As portas se fecharam e o elevador já estava em movimento quando o ambiente cercado de espelhos fazia Jill refletir sobre sua própria imagem. Puxando suas madeixas úmidas da chuva para frente, onde repousavam acima seus ombros, contemplava com indignação aquela nova imagem que ela transmitia visualmente.
– Você... – Perguntava constrangida, referindo-se à uma tinta de cabelo escura. – Você comprou aquilo que eu te pedi?
– Sim. Eu já a deixei no banheiro. – Chris atentava-se ao incomodo dela diante do espelho. – Mas... você sabe que sempre vai precisar tingi-los daqui pra frente, né?
– Eu só quero voltar a ser como antes. – Afirmava insegura enquanto Chris, sendo bem mais alto que ela, se aproximava por trás, observando os folículos capilares na raiz de seus cabelos. – É que... eu não era assim antes.
– Claro. Mas agora você é assim. Os cabelos claros estão nascendo de dentro de você, eles fazem parte do seu corpo. Esse fator externo não altera nada na Jill que está aí dentro. Encare isso como uma nova fase. Além disso, eu gosto do seu cabelo assim. – Chris argumentou envolvendo-a por trás ao passar seu braço livre na frente da cintura dela. Deixando um beijo no topo de sua cabeça, ele observou um sorriso acanhado dela pelo reflexo. – Como você consegue ser tão linda?
– Você sempre me diz isso. – Jill lembrava-se momentaneamente grata pelas inúmeras vezes em que já tinha ouvido aquela mesma fala dele. Mas abaixou sua cabeça em desânimo por saber que, daquela vez, mudar não uma opção dela. – Eu preciso me livrar disso porque... não tenho boas lembranças de mim desde quando me vi com esse cabelo.
– Bem... já eu tenho. – Chris ergueu seu braço que já a envolvia e levantou o queixo dela com o dedo para que ela voltasse a se encarar no espelho. – Você estava exatamente assim quando eu finalmente encontrei você... e nunca vou me esquecer daquele momento.
Enquanto ambos emocionados consolavam-se com a reminiscência, por trás deles, a porta do elevador se abria. Saindo da frente da visão de Jill, ele observava o choque dela enquanto notava que o elevador apontava diretamente para um apartamento e não à um corredor tal como esperava. O lado de dentro daquela casa iluminava-se automaticamente aos poucos, revelando um lar magnífico e inteiramente convidativo.
Na visão que vinha do elevador, ambos se deparavam com uma residência de ambiente amplo. A cozinha do lado esquerdo, conjuntamente com a área de refeição era conectada com a sala de estar do lado direito em um mesmo ambiente. As paredes eram enormes janelas de cortinas acetinadas, com vistas espetaculares para o norte, oeste e sul, onde do alto, a Ilha de Manhattan era completamente visível através do crepúsculo, embora a chuva do lado de fora continuasse inalterável. Receosa em deixar o elevador, ainda processando a ideia de que aquele poderia ser o novo lar na qual Chris mencionara, Jill imaginava que tudo não passava de um ledo engano.
– Acho que... – Empalidecia observando ao óbvio. – Você pressionou o botão errado?
– Não. – Chris se deleitava com as expressões de Jill. Quando apontou para o leitor de impressão digital, compreendeu que ela só havia se dado conta daquele detalhe naquele momento. – Ninguém consegue acessar esse andar a não ser o dono. Isso leva a crer que... esse é o nosso novo lar mesmo. – Admirava o espanto ainda presente na face adorável dela. Ao perceber que ela continuava paralisada, pensou em um incentivo. – Quer que eu te carregue como fazem nos filmes para a gente entrar na nossa casa?
– Não! – Estremecida, trocou o espanto por um riso enfraquecido. – Você já me carregou demais nos últimos meses. Melhor deixarmos isso para quando eu me tornar uma Redfield.
– Você nunca precisou de papel pra isso. – Provocou-a usando um tom aveludado que fez o rosto dela ruborizar suavemente. – Primeiro as damas.
Risonha ao escutar o jargão de sempre, Jill adentrou ao novo apartamento enquanto contemplava um ambiente aconchegante. Era realmente um lar bem espaçoso, sem divisórias entre a sala, a cozinha e a mesa de jantar. Era impossível não se impressionar com as bancadas de pedra e pisos de madeira laminada que refletiam os demais objetos como um espelho. Elegantes luminárias, extravagantes artigos de luxo como decoração, além da arquitetura do prédio que era trazia a sensação de amplitude de maneira fabulosa. Mas o que mais a maravilhava era ver os antigos itens de seu antigo apartamento adornando e combinando com aquele lugar porque isso deixava uma identidade acolhedora ao redor, a identidade que ela tanto precisava naquele momento de reencontro consigo mesma. Achegando-se próximo às longas janelas, adornadas pelas gotas de chuva, caminhava rente a elas para observar os vários ângulos de visão do apartamento. Logo, encontrou uma porta de acesso à sacada, com vista para o grandioso Central Park.
– Como conseguiu uma cobertura assim? – Estupefata, questionou gaguejando enquanto observava Chris na cozinha, preparando a bancada para degustarem da pizza. – Esse lugar é uma fortuna! – Soando mais séria e receosa, erguia as sobrancelhas na direção dele. – Por favor, só me diz que conseguiu tudo isso de maneira honesta.
– Bem... – Chris tentava se recompor dos próprios risos causados pelas teorias investigativas de Jill, sabendo que ela jamais encontraria paz enquanto não desvendasse sua curiosidade. – Como você sabe, eu não parei de trabalhar nos últimos anos. Na verdade, eu nunca trabalhei tanto em vida, chegando até mesmo a trabalhar sem remuneração. Afinal, cada missão era uma chance de te encontrar. – Ele pausou sua fala, notando a comoção no rosto de Jill. – Desse jeito, acabei conhecendo muita gente com grana que acabei ajudando sem pretensões e eles sempre me ofereciam outros tipos de ganhos ou regalias. Numa dessas, um empresário me ofereceu essa cobertura para uma estadia ilimitada. Agora que tenho você aqui comigo, resolvi aproveitar-me disso pra nós.
– Impressionante. – Jill se aproximava piscando os olhos em deslumbramento. – Tenho certeza que é meritório. Sem dúvidas, você realmente merece isso. Mas você sabe que não precisamos de tanto, não é? Sem querer desfazer dessa maravilha... – Ela parava para admirar uma escultura opulenta. – Olha para esse lugar! É belíssimo e aconchegante, mas nunca conseguiríamos arcar com essa vida... não somos acostumados com essas coisas.
– Você não acha que já pensei nisso? – Chris usava o cortador sobre a pizza para dividi-la em pedaços. – Bom, quando você estava entre a vida e a morte no hospital, eu parei para analisar minha vida e pensei em tudo o que eu poderia ter proporcionado pra você que não pude, por causa da rotina corrida e estressante que sempre tivemos. Logo, cheguei à conclusão de que tinha que fazer tudo diferente quando você abrisse os olhos. – Ele cessou seus movimentos ao erguer os olhos para ela, já do outro lado da bancada. – Você sempre se dispôs ao meu favor e da última vez em que fez isso, quase morreu por mim. Pensando em tudo o que já passamos desde quando começamos, só eu e você, lembrei do dia em que eu te encontrei naquele apartamento minúsculo em Paris, sem comida na dispensa e lavando pratos para pagar a conta de energia atrasada. – Ele sentiu momentaneamente seu peito arder com tamanha admiração pela mulher que o encarava. – Jill... você merece o melhor que posso oferecer e se eu puder te proporcionar coisas ainda maiores, eu o farei com todo meu esforço. Será um prazer te recompensar por tudo.
– Obrigada. – Jill se emocionava à medida em que aquele breve discurso a fez se recordar de coisas que há anos não se lembrava. – Mas então, nesse caso, nós dois merecemos isso. – Os olhares de ambos se iluminavam naquela troca onde tudo o que viam eram um ao outro como o item de maior valor naquele ambiente valioso. Ela sentia gratidão por tudo o que ele tinha feito por ela. Ele mal podia acreditar que estava diante dela outra vez.
Enquanto sentavam-se ao lado do outro sobre a bancada para degustarem da pizza, tal como sempre faziam desde bem jovens, ambos tentavam se lembrar dos assuntos inacabados de 2006 para dali tomarem um ponto de partida para as decisões futuras. Coincidentemente, o assunto era sobre a compra de um imóvel para uma possível aposentadoria das missões de campo. Portanto, decidiram que retomariam aquele objetivo enquanto morariam temporariamente naquele lar ao mesmo tempo em que Jill estivesse em seu processo de recuperação. Antes que o assunto se esvaísse, Jill lembrou-se de algo.
– Já se decidiu sobre o que você pretende fazer nesse meio tempo com sua carreira? – Ela deixava a borda do último pedaço sobre a bandeja enquanto observava atenta as expressões dele assumindo uma preocupação. – Ou melhor, já tomou uma decisão sobre aquele assunto que você não gosta de ponderar?
– Ainda não. – Admitiu relutante ao engolir o último pedaço de sua pizza. – É a primeira vez que me desligo de tudo desde que deixei a Força Aérea. Minha prioridade por hora é cuidar de você e estar aqui perto para isso. – Ele tomou para si a borda que ela havia deixado de comer. – Quando me ligarem amanhã, isso é tudo o que vou responder.
– Chris... eu só quero que saiba que não quero ser uma desculpa para...
– Você não é minha desculpa. – A interrompeu mesmo de boca cheia, portanto, procurou engolir rápido. – É melhor deixarmos os planos de longo prazo pra depois. Você ainda nem conhece a casa inteira e ainda nem viu o nosso quarto.
– Nosso quarto? – Indagou impressionada enquanto se dirigia para lavar as mãos. Olhando-o por cima do ombro, pensou em provoca-lo. – Não teremos quartos separados dessa vez?
– Ainda acha que temos alguma coisa a esconder dos demais? – Rebateu de imediato, arrancando dela um sorriso constrangido e uma negação silenciosa como resposta enquanto já secava suas mãos encarando-o. – Foi o que pensei. Falando nisso, porque não dá uma olhada nas lembranças que te enviaram? – Apontou para uma mesinha próxima.
Jill prontamente se aproximou das inúmeras flores, envelopes de cartas, chocolates e faixas de “bom retorno”. Desde os colegas mais distantes até os amigos mais chegados, todos eram lembrados por ela, que sentia gratidão por todo legado que era testemunhado em cada palavra que ela lia, por mais que não gostasse de receber tantos elogios.
Antes que suas emoções provocassem dela um mal estar ao se deparar com fotos e momentos de sua vida quando ainda era livre de todas as suas angústias mentais, ela procurou se afastar da mesa, prometendo retornar aos agrados quando se sentisse melhor. Todas as vezes em que se apegava a ideia de que jamais voltaria a ser a mulher ali mencionada, devido aos traumas que sofrera, Jill sentia uma dor de cabeça estranha e uma dor psicológica no peito que ainda ardia mesmo com as feridas parcialmente cicatrizadas.
Portanto, preferia não complicar seu emocional por hora enquanto já buscava distrair-se apreciando algumas de suas coleções e coletâneas expostas nas estantes e nas paredes, em busca de encontrar paz através das coisas que lhe deixassem claro que aquele era um espaço confiável e seguro. Quando percebia que cada item se encontrava intacto, apreciava o desvelo de Chris no cuidado de suas coisas na esperança de que retornasse.
– Adorei rever minhas coisas por aqui. – Suspirava admirada. – Você conservou tudo.
– Sim, mantive todas as nossas coisas intocáveis. Na verdade, mal conseguia retornar ao nosso apartamento sem você. – Chris afirmava enquanto finalizava a organização da cozinha. Consequentemente, ele foi até o piano vertical dela e removendo sua capa, finalmente o revelou. – Inclusive, mandei afinar essa belezinha aqui para sua chegada.
– É o velho piano que eu adquiri no ano passado? – Questionava referindo-se à 2005. Quando se deu conta de que havia confundido novamente os anos, por ter passado um período sem ter noção de tempo, Jill procurou corrigir-se acanhada com voz baixa. – Quero dizer, naquela época?
– Ele mesmo. – Chris respondeu evitando demonstrar o incomodo ao perceber o abatimento dela em todas as vezes que se confundia daquela forma. – Quer tocar algo?
Quando notou a relutância de resposta dela, desde que perguntas pessoais eram sempre motivo de bloqueio mental, prontamente estendeu sua mão e a guiou até que se sentasse diante do piano, para que ela decidisse por si só. Maravilhado por ter tido a oportunidade de rever a imagem que via diante de seus olhos, Chris observava atentamente as mãos tímidas delas sobre as teclas. Sem afundar seus dedos nas teclas do instrumento, ela pensava em qualquer música que viesse em sua mente, mas ouvir o primeiro acorde soado, Jill simplesmente recolheu seus dedos assustada quando uma má lembrança, como a última vez em que havia tocado, passou por sua mente. Isso acabou desestabilizando-a.
– Melhor deixar para outra hora. – Jill, transparecendo desconforto, levantou-se e se afastou do piano de imediato. – Que tal se me mostrar o restante da casa agora?
Chris prontamente caminhava com ela pelos cômodos enquanto ambos comentavam sobre os detalhes que mais os impressionavam naquele lugar, deixando o quarto de ambos por último. Quando adentrou ali, notou pela longa janela que a noite já se fazia presente. Portanto, Chris procurou as luminárias das paredes de lâmpadas amareladas, deixando aquele ambiente envolvente e acolhedor.
Ela abria o guarda-roupa e verificava algumas peças que lhe pertenciam. Chris já havia comentado que tinha cuidado para que elas já estivessem prontas para uso, mas o que mais a impressionava era encontrar roupas de Chris estavam no mesmo móvel que o dela. Nisto, ela podia compreender que já não haveria mais uma individualidade entre eles.
Atentando-se ao redor, notava que a mobília presente era uma mistura das coisas de ambos e isso lhe entregava a impressão de pertencimento legitimo. Ela podia afirmar que se sentia bem acolhida naquele cômodo, onde até mesmo as roupas de cama eram as mesmas que ela mesma havia comprado. Portanto compreendia que aquele era o lugar da casa em que realmente fazia ela entender que tinha retornado, tal como ansiava desde quando estava no helicóptero.
– Eu poderia ficar nesse quarto pra sempre. – Ela se voltava a Chris, que se mantinha parado de braços cruzados, próximo à porta. – Finalmente, agora posso dizer que estou em casa. – Afirmava emocionada. – É bom saber que recuperei tudo o que tinha de volta.
– Nem tudo ainda. – Chris apontou para uma caixinha vermelha aveludada sobre a cômoda. – Eu deixei o melhor para o final.
Jill sorria desconfiada caminhando até o item recomendado. Ao toma-la em suas mãos, teve um pequeno receio em abri-la para verificar o conteúdo. A princípio, assustou-se ao imaginar que ali estaria o pedido de casamento que Chris parecia ansioso em fazer desde que ela havia retornado. Contudo, no fundo, compreendia que ele não a deixaria abrir a caixinha sozinha se aquele fosse o intuito.
O nervosismo que sentia fazia sua mão tremer com a expectativa. Portanto, ergueu a cabeça se deparando com um espelho retangular preso na parede por trás da cômoda. Engolindo seco, observava Chris atrás dela através do reflexo com olhos arregalados, como se implorasse para ele um sinal de confiança para abrir aquela caixinha.
– Espero que esse presente faça você se lembrar do quanto que és importante pra mim.
Ouvindo as palavras de Chris, que continuava imóvel enquanto a observava, Jill se virou para ele e com mãos trêmulas, abriu a caixinha de uma vez. Seus olhos inundados de lágrimas lutavam por uma nitidez para enxergar o conteúdo da caixinha enquanto suas memórias rebobinavam-se lentamente até o dia em que Chris tinha acabado de se referir.
MAIO, 1998
Enquanto Chris estacionava sua moto na frente do portão oeste da RPD, revisava os últimos acontecimentos que precederam aquele momento. Tentando controlar sua inquietação com as mãos no bolso da jaqueta, caminhava até a rua seguinte, em direção à uma cabine telefônica. Enquanto procurava moedas, tateando os bolsos, lembrava-se dos momentos do suposto encontro que tivera com sua parceira horas atrás. Ainda podia ouvir as gargalhadas ao mesmo tempo em que degustavam da pizza mais cara do cardápio no restaurante que ela tanto adorava, enquanto brincavam de fingir uma encenação de um encontro de verdade. De fato, brincavam com as possibilidades do que fariam caso aquele passeio fosse um verdadeiro encontro e não apenas um programa de amigos. De alguma forma estranha, aquela inocente brincadeira havia deixado as mentes de ambos confusas.
Sem tempo adicional para continuarem explorando do sentimento gerado naquele passeio, ele teve de deixa-la de volta na delegacia, mal se despedindo dela, por conta do atraso para reassumir seu serviço que tinha deixado nas mãos de Brad. Mas, ao invés de ir para casa, Chris retornou à feira de Artes e Culinária da Universidade Raccoon para buscar sua encomenda, que agora estava no bolso da jaqueta que Jill havia lhe devolvido antes de adentrar na delegacia. Confiante, ao perceber que tudo estava se encaminhando para dar certo, já estava pronto para reencontrá-la. Portanto, tirou o telefone do gancho e discou o ramal do escritório dos S.T.A.R.S., aguardando ansiosamente pela voz de Jill.
– S.T.A.R.S. – A voz da policial era sonolenta. – Valentine na linha.
– O tédio está dificultando seu serviço, gracinha? – Chris podia imaginar que ela tinha tirado um cochilo enquanto esteve ausente. Logo escutou gargalhadas do outro lado da linha. – Achei que bons policiais de serviço não podiam dormir no trabalho, principalmente os mais certinhos.
– É que... eu fiquei bastante cansada depois de você ter me forçado a fugir do batente pra te fazer companhia a noite toda, Chris Redfield. – Ela respondeu dando ênfase ao nome dele. – Já quero deixar registrado que a culpa é sua, caso eu seja punida por isso.
– Uma punição a mais ou a menos para mim, não vai fazer diferença no meu histórico de conduta exemplar. – Ele arrancou uma nova risada da policial. – Não acha?
– Certo. – Ela pausou sua fala para se recompor e não rir enquanto pensava em uma oportunidade para provoca-lo jocosamente. – Olha... para você ter me ligado no mesmo dia do nosso suposto encontro... me parece que você não me tirou da cabeça, não é?
– Você é uma mulher inesquecível, Jill Valentine. – Chris percebeu que ela havia ficado temporariamente muda e aproveitou para deixar aquela conversa mais séria. – Por isso mesmo, que tal você quebrar regras mais um pouco vindo aqui embaixo buscar uma coisa que eu trouxe para você? Prometo que não vou mais atrapalhar seu serviço depois dessa.
– Se eu chegar aí embaixo e você não estiver aí... – Jill usava um tom ameaçador desde que ele costumava fazer aqueles tipos de brincadeiras com ela, mesmo depois de amigos. – Juro que vou te dar reais motivos para não se esquecer de mim.
– Não é brincadeira... é sério. Confie em mim. – Reafirmava tentando manter uma seriedade, por mais que mordesse os lábios para não rir. – Vem logo antes que Wesker apareça do nada para trabalhar e acabe me levando junto com ele aí pra cima também.
Ouvindo a confirmação dela, ele desligou o telefone. Voltou correndo até sua moto, esperando-a ali encostado, de braços cruzados. Sabendo que a veria novamente em minutos, não via a hora de presenteá-la, ansioso para observar suas reações. Apenas tinha receio de que não gostasse do que iria ganhar, mas precisava tornar aquela noite marcante. Mal notou quando ela surgiu, observando-o com desconfiança enquanto abria o portão.
– Ora, ora! Me parece que, em plena sexta feira, a única pessoa com tédio aqui é você. – Jill se aproximava com um expressões rixentas, vestida com o uniforme de antes, mas sem o quepe no topo da cabeça como sempre. – O que houve com o garanhão Redfield? Por que está aqui na minha frente e não levando uma garota em um encontro a essa hora?
– Essa é fácil de responder. – Descruzou os braços. – É que eu já fui à um encontro hoje. – Argumentava soberbamente. – E a garota que levei me deu um prejuízo financeiro por causa de uma pizza. Agora ela está bem aqui na minha frente, tirando com a minha cara.
– Por favor, Chris. Não me diga que está gostando do seu personagem, hm? – Jill escondia a vontade de gargalhar enquanto apertava os lábios. – Aquilo jamais seria um encontro.
– Como assim jamais seria um encontro? – Ele a enfrentava com o olhar, escondendo seu desespero pela opinião dela. – Melhor, como que funcionaria um bom encontro pra você?
– Minha nossa, já tem tantos anos que não vou à um. – Esclarecia pensativa e debochada. – Eu só tenho usado meu tempo livre pra dormir porque na maior parte, estou trabalhando.
– Você está desviando o assunto. – Chris erguia uma sobrancelha. – Eu ainda estou curioso.
– Tudo bem. – Jill suspirava fazendo uma careta. – Pra começar, um bom encontro tem que ter conquista e sintonia. – Ela explicava percebendo que praticamente descrevia o que tinha acontecido entre eles, mesmo que fingido. Antes que ele pudesse contra argumentar, ela pensou rapidamente. – Mas também é necessário rolar um clima pra afetos mais íntimos... como um simples beijo qualquer. Aí... se a química for boa, talvez outras coisas rolem naturalmente também. – Revirou os olhos em constrangimento. – Concluindo... pra mim, encontros são precedentes de um suposto futuro relacionamento afetivo. Então, antes que me diga qualquer coisa, aquilo mais cedo não foi um encontro porque... é impossível ver uma possibilidade de um segundo encontro pra nós dois.
– Agora sim me convenceu. – Chris se admirava com ironia. – Você realmente acha que nunca teríamos um segundo encontro depois do que houve hoje? – Ele observava atento à resposta dela e sentiu um aperto ao vê-la negando-o com a cabeça hesitantemente. – Ah, já entendi tudo... no nosso caso, o código de conduta policial não permite relacionamento entre os internos sem que antes assinem um documento em que diz que o rendimento militar não pode ser afetado por um relacionamento afetivo. – Chris citava cada pedacinho da norma fielmente decorada para espanto de Jill, que por fim concordava com o que ele havia mencionado. – Então, para deixar rolar um “simples beijo” entre nós, eu teria que pedir permissão para Wesker, o que eu não faria nem nessa, nem na próxima vida. – Ambos gargalhavam juntos daquela perspectiva em concordância. – Nesse caso, o que aconteceu mais cedo só não seria um encontro porque você prefere seguir regras?
– É isso aí. – Admitia relutante enquanto mal escondia seu descontentamento. – E eu já quebrei muitas regras hoje por sua causa tipo... estou aqui agora. Já estou acima do limite.
– Que pena. – Falou mais para si do que audível para ela. – Então, já que não podemos finalizar nosso suposto encontro com um beijo, que tal se eu te desse uma outra coisa?
– Ah, é mesmo. – Ela lembrou-se da causa na qual estavam ali. – O que trouxe pra mim?
– Feche os olhos. – Ele se aproximou ao vê-la fechar os olhos com um rosto curioso.
Quando já estava diante dela, tudo o que sentia era a tentação de colar seus lábios aos dela, que se encontravam bem próximos. Sentindo o metal gelado abaixo de seu pescoço, Jill demonstrava surpresa mesmo com os olhos fechados. Chris habilmente prendia o cordão apenas com o tato, ainda estando de frente a ela. Cada momento tão perto dela daquela forma o deixava em puro fascínio, tal como já tinha vivenciado enquanto a guiava em seu treinamento de pontaria ou quando ela tentava ensina-lo a abrir uma fechadura com um grampo de cabelo nas horas vagas. Todas as vezes em que seus rostos ficavam bem próximos daquele jeito, ele se pegava cada vez mais apaixonado por ela, mais atraído pelo cheiro agradável que vinha dela e mais tentado a cometer uma loucura passional.
– Eu acho... eu sinto que é um cordão... com um pingente. – Ela sorria tentando esconder a frustração pela falta de afeto que, por mais que negasse, no fundo torcia para que fosse o motivo daquela aproximação dele. – Já posso abrir os olhos pra ver que acertei?
– Pode sim. – Respondeu afastando-se com um passo para trás. – Eu sei que você não é fã dessas coisas, mas achei sutil e singelo. De alguma forma, isso me lembrou você. – Ele observava a reação dela e de como ela se via cada vez mais maravilhada com seu agrado.
– É lindo e bem discreto. Obrigada! Você tem bom gosto. – Jill olhava animada para o pingente notando que tinha um pequeno escrito ali. – Espera, você comprou isso lá na feira? Com aquele cara que gravava nos metais? – Ela tentava ler sem sucesso o que estava gravado ali, mas desistiu quando olhou para ele, no aguardo de sua resposta.
– Sim, eu comprei do indígena. E sim... tem uma frase gravada aí. – Admitia nervoso por saber que aquilo entregaria sua espionagem ao diário dela. – Só que acho que não dá pra ler agora. Como sei o quanto que você é curiosa, eu já o deixei preso no seu pescoço nesse intuito. – Retirava delicadamente a mão dela do pingente para que ela não lesse o que estava escrito nele ali. – Faz isso outra hora, aqui não tem iluminação suficiente pra isso.
– Tá bom. Mas só porque eu gosto de um suspense pra surpresas. O único problema é que... – Jill o encarava inconformada. – Eu queria muito poder te retribuir alguma coisa agora, mas não tenho nada aqui comigo pra isso.
– Claro que tem. – Chris observou os olhos arregalados dela e encontrou ali a oportunidade propícia para tomar uma atitude ousada. – Que tal um beijo... de retribuição.
– Mas... – Ela gaguejava encarando-o sobressaltada. – Você... você acabou de falar que...
– Quero um beijo bem aqui. – Ele a interrompeu apontando para sua face. – Um simples beijo na bochecha. – Ele explicava enquanto ela ainda o encarava perplexa. – Pra que tanto espanto, Valentine? Aonde mais achou que seria? – Ele a via relaxar-se enquanto ria para espantar a tensão que demonstrava. – Assim ficamos quites com essa questão.
– Ah, claro. – Admitiu nervosa, afinal o mais longe que haviam ido era um abraço apertado. – Um simples beijo na bochecha. Isso vai me custar muito, sabia? – Ironizava.
Ambos sorriam enquanto ela se aproximava dele. Após cortar o contato visual que mantinham, Jill se inclinou, deixando um beijo tímido em sua bochecha após verificar diligentemente o local exato para não perder a cabeça e fazer o que realmente queria que já tivesse acontecido. De alguma forma, segundos depois de ter dado o beijo na bochecha dele, algo em Jill fazia ela se opor a se afastar de Chris e nesse meio tempo, ambos voltaram à troca de olhares que surgia espontaneamente. Naquele olhar, Chris percebeu que precisava tomar uma atitude mais oportuna e consequentemente irracional. Nisso, quando desceu o olhar até os lábios dela, sentia seu coração disparar de desespero, ansiando por prová-los e antes que se afastasse, instintivamente segurou a nuca dela por trás e prendendo a outra mão na lateral de seu rosto, pressionou seus lábios aos dela em um beijo incontrolável. Contudo, se admirava ao perceber que ela também o correspondia na mesma intensidade, permitindo-se usufruir de cada movimento que faziam em êxtase.
Em seguida, ela sentiu uma das mãos dele firme em sua cintura, trazendo-a mais para perto enquanto a outra soltava o elástico de seus longos cabelos, para guia-la com mais habilidade. Aos poucos, a impetuosidade exasperada dava lugar para uma serenidade e o beijo alvoroçado se tornava cada vez mais lento para que não se esgotasse tão rápido.
Quando enfim se davam conta do que acontecia, ela se encontrava com suas mãos presas no pescoço dele enquanto sentia-se completamente envolvida por ele. Paulatinamente, suas bocas se afastavam calmamente, seus olhos se abriam lentamente e a realidade ao redor os fazia retomar a consciência novamente. Nisto, ambos relutantemente afastavam seus rostos enquanto mantinham o mesmo contato visual que os colocou naquele ensejo. A verdade era que nenhum dos dois estavam prontos para desgrudarem-se um do outro.
– Minha nossa... – Jill sussurrava trêmula. – Acho que acabei de quebrar mais uma regra.
– Acha que agora estamos prontos para um segundo encontro? – Imediatamente rebateu com a única frase que estava em sua mente. Nesse momento, ele viu os olhos dela se arregalarem em perplexidade ao mesmo tempo em que se surpreendia com o acontecido.
– Me desculpe. – Jill se apartava, dando passos para trás em constrangimento, passando as mãos nos cabelos ao sentir que eles se soltaram do coque. – Eu... sinto muito por...
– Eu não sinto muito. – Contrapôs ao se aproximar mais dela impetuosamente, tentando guiar suas mãos de volta ao corpo dela, mas ela o impediu ao segurá-las bem longe de si.
– Mas devia! A gente não pode... – Jill gaguejava as palavras ainda buscando fôlego para lidar com suas emoções. – Eu sei como isso acaba porque... – Ela imediatamente se lembrou de seu antigo relacionamento com pesar. – Bem, não vem ao caso. Eu só não quero que isso seja motivo para não sermos mais tão próximos como agora. Não quero perder o que firmamos mais cedo e não quero deixar essa cidade tão cedo caso a gente...
– Eu achei que você tinha ficado chateada quando eu dei a entender que éramos como irmãos. – Chris começava a se sentir constrangido. – A gente sabe que essa coisa de irmão nunca rolaria entre a gente, não é? Você mesma deixou isso claro pra mim naquela tenda.
– Tá bem, eu fiquei chateada! Mas é porque eu acho que... talvez em um futuro, a gente possa dar certo. Mas agora, por hora, é melhor sermos apenas colegas de trabalho. – Jill tentava se explicar enquanto Chris parecia cada vez mais desentendido. – É porque... eu quero um relacionamento de verdade. Não posso ficar me apegando e desapegando por aí... você sabe como isso é cruel pra mim. Além disso, é só olhar pro seu histórico pra saber que você é péssimo em manter relacionamentos. – Explicava com os dedos nas têmporas, sem encará-lo. – Eu acho que essa é uma hora errada pra deixar isso acontecer!
– Calma, Jill! – Chris segurou as mãos dela que, tremulas de nervosismo, apertavam sua cabeça e as guiou para longe dali enquanto as envolvia, no intuito de acalmá-la. Ganhando a confiança de fazê-la encará-lo novamente, ele optou por se explicar, antes que aquela situação se tornasse irreversível. – Foi só um beijo, tá? – Ele a via recobrar sua calma. – Sem compromisso ou sei lá o que você acha que tem que acontecer agora. Eu só achei que nós dois quiséssemos isso. Por mim não tem problema nenhum a gente tentar...
– Não dá! – Ela desvencilhava-se sutilmente dele. – Nós trabalhamos juntos, nos vemos todos os dias. Não quero me afastar de você se... – Suspirou frustrada. – Você é meu parceiro! Se algo der errado entre nós outra vez, não quero perder meu parceiro, entende?
– Claro. – Respondeu magoado. – Também não quero perder minha parceira. Se é pra ser assim, tudo bem pra mim. – Ele demonstrava frustração. – Só espero que o que aconteceu agora não tenha arriscado nossa amizade porque... – Ele demonstrou um sorriso para tranquiliza-la. – Não iremos brigar por causa disso, não é? – Ele tirava de seu pulso o elástico que ele havia tirado do cabelo dela para devolvê-la, vendo-a negar sorridente.
Chris permanecia observando-a sério enquanto amarrava seus cabelos no coque despojado de antes. Ele entendia que o estilo de vida que ela sabia que ele costumava levar, antes de se apegar tanto a ela, o condenaria e isso jamais deixaria ela entender naquele momento o que ele realmente sentia por ela. Tudo o que ele desejava naquela altura era jamais ter aceitado trabalhar ao lado dela. Achava que tudo teria sido mais fácil se eles nunca tivessem se conhecido por causa do trabalho ou que já tivesse sido expulso, como quase foi no início do ano. Ele queria qualquer outro motivo ou oportunidade para que ambos encontrassem uma nova chance de se acertarem o mais rápido possível, porque seria impossível resisti-la após seus lábios terem lançado um encanto sobre ele.
– De qualquer maneira, agora eu posso dizer que foi um bom encontro. – Jill admitiu quebrando o silêncio constrangedor. – Além disso, o passeio de moto foi um ponto alto.
– Que bom que consegui te levar para passear uma última vez, já que essa beldade vai para Claire daqui a alguns dias. – Relatava admirando sua moto com um aperto enquanto Jill se maravilhava com aquele ato. – Parece que no final da próxima semana, já vou estar com meu futuro primeiro carro. – Contava um pouco mais animado. – As coisas melhoraram bastante pra mim aqui nessa cidade interiorana.
– Fico muito feliz por vocês. – Jill esboçava um sorriso caloroso enquanto passava as mãos nos braços para se aquecer do vento frio que passou naquele momento. – Nesse caso, já posso garantir minhas caronas diárias? – Perguntou vendo-o concordar imediatamente. – Prefiro ajudar na gasolina do carro do que viver naquela estação barulhenta e lotada. – Reclamava pensativa enquanto riam. – Se bem que no próximo mês, já vou estar no meu novo apartamento no final daquela rua, graças a você. – Ela o admirava pelo empenho que ele teve na necessidade que ela apresentou. – Obrigada mesmo por isso.
– Disponha. – Lembrava-se do apartamento próximo dali que ele havia conseguido para si, mas que acabou cedendo pra ela quando soube que ela precisava mais, ocultando-a desse detalhe. – Enquanto precisar de mim para te guiar por aí, sabe onde me encontrar.
Por mais que tivesse arrancado um sorriso dela através da memória que trouxera do dia em que a conheceu, Chris não conseguia esconder o desânimo de ver aquela noite acabando daquela forma, depois de tudo o que haviam experimentado. Por outro lado, Jill processava prudentemente o que tinha acabado de acontecer. Tudo o que precisava era conhecer mais das intenções dele para dar uma chance aquele novo sentimento. No fundo, ela compreendia que tudo o que havia escrito sobre Chris em seu diário se tornava, a cada minuto, cada vez mais real do que do que uma mera fantasia de sua cabeça. Naquela altura, tudo o que ela mais ansiava era saber o que estaria escrito no pingente presenteado.
– Acho que está na hora de saber o que está escrito aqui então... – Ela segurava no pingente dirigindo-se de volta à delegacia. – Boa noite, Chris. Foi uma noite incrível.
– Boa noite, Jill. – Ele piscou uma ultima vez para ela, vestindo o capacete em seguida.
Ela fechava o portão enquanto ele acenava para ela do retrovisor da moto. Enquanto subia em direção do escritório, ela tentava tirar o cordão que ele tinha colocado nela anteriormente para visualizar o pingente. Já sentada em sua cadeira e sozinha no escritório, odiava saber que, por não usar muitos acessórios há muito tempo, tinha dificuldade de lidar com eles. Após uma luta para se desvencilhar do cordão enquanto seus dedos tremiam de ansiedade, finalmente conseguiu se libertar e ao segurá-lo bem próximo à sua vista, finalmente leu a frase que estava descrita ali.
– Que coincidência. – Ela, profundamente chocada, dizia para si mesma. Naquele momento, ela fez uma pequena investigação em sua mente e acabou se lembrando de algo. – Não é possível que ele tenha tido a audácia de ter lido meu diário enquanto eu...
Jill debochava da possibilidade enquanto aos poucos sabia que aquela era a conclusão mais coerente com a realidade que experimentava e se assustava ao saber que aquela possibilidade poderia ter acontecido enquanto ela se ausentara do escritório. Tentando se acalmar enquanto sentia um misto de sentimentos, de irritação à emoção, abriu a gaveta e tirou seu diário de dentro dela. Abrindo na página onde a caneta marcava, ela relia abismada tudo o que tinha escrito antes que ele chegasse naquela sala no inicio da noite.
– Mas que droga... – Ela exclamou ao encontrar ali a mesma frase gravada no pingente. Voltando algumas páginas onde escrevia sobre toda a confusão que sentia desde que começou a sentir atração por ele, ela se atemorizava perplexa. – Foi por isso que ele achou que eu queria beijá-lo. – Sussurrava sentindo-se chateada pela invasão, maravilhada pela lembrança e assustada com as possibilidades ao mesmo tempo em que chegava a uma conclusão final. – Ele sabe o que sinto por ele! – Tocava em seus lábios boquiaberta.
Enquanto assimilava perplexa tudo o que tinha acontecido há poucos minutos, ela entendia que não sentia arrependimento sobre aquele beijo. Ela sabia que brigar com ele sobre o diário seria uma impossibilidade, porque se o fizesse, teria que conversar sobre o sentimento que havia descrito ali. Portanto optaria por se manter discreta sobre tudo, sendo durona o suficiente para vê-lo todos os dias ao seu lado sem demonstrar que era a mulher intensamente apaixonada do diário até que o constrangimento fosse esquecido.
Voltando-se ao pingente, ela lia e relia a frase que tanto amava, receosa pelo momento em que o veria novamente e temerosa sobre os momentos que compartilharia com ele daquele momento em diante. De alguma forma misteriosa, aquele presente lhe passava uma tranquilidade de que tudo acabaria bem entre eles no final. Se não tinha acabado bem naquele dia, seria então em um futuro certamente, tal como ela idealizava secretamente.
MAIO, 2009
Puxando lentamente seu antigo pingente de dentro da caixinha aveludada, Jill relia mais uma vez a frase que por muitos anos lhe deu conforto e confiança. “Seus olhos estão sobre o pardal” era o símbolo de amor, de cuidado e de união que ela tanto precisava reestabelecer naquela fase de sua vida e era o que fazia com que aos poucos ela encontrasse a antiga Jill ainda dentro de si. Deixando a caixinha sobre a cômoda, ela apenas segurava o mesmo pingente que tinha em sua mão dentro do escritório dos S.T.A.R.S. na noite em que fora presenteada, procurando se recompor de suas emoções.
Levantando os olhos para observar no homem a sua frente o mesmo rapaz apaixonado daquela noite, presumia que ele também se lembrava daquele primeiro beijo com apreciação, por mais que as coisas naquele dia não tivessem terminado como ambos internamente desejavam. Mas o que deixava Chris com brilho nos olhos ao se aproximar dela, era saber que a tinha recuperado de volta e que ela já estava ali, fisicamente presente.
– Como conseguiu isso de volta? – Indagou-o comovida.
– Parker o encontrou enquanto procurávamos por você, perto do penhasco. – Chris acariciava a mão dela que continha o pingente, grato por saber que tinha conseguido devolve-la aquele item. – Nós chegamos à conclusão de que você estivesse usando-o no dia em que desapareceu.
– Eu costumava a levá-lo sempre comigo. – Jill forçava sua memória até o dia em que abriu sua mala já em Londres, antes da Operação Águia. – Quando o cordão dele arrebentou, enquanto ainda estávamos morando na França, optei por usa-lo dentro do coldre ou dos bolsos em todas as missões e operações. – Sua mente retornou ao momento em que ela o verificava antes de descer do helicóptero, na área próxima à mansão Spencer.
– Eu imaginei que você estivesse usando-o quando... – Chris apertou os olhos bem fechados por poucos segundos. Conseguindo espantar o mal pensamento, prosseguiu emocionado. – Quando você foi levada por Wesker. – Ele a via concordar com a cabeça.
Jill se aliviava por ainda estar agasalhada com o sobretudo. Senão, Chris veria os pelos de seus braços arrepiados apenas com a menção do homem a quem ansiava nunca mais se lembrar. Com aquele pensamento ruim, ela voltou a olhar para o pingente, que imediatamente lhe passou conforto e principalmente mostrava a ela o quão importante ela era para o homem que não desistiu de acreditar que um dia ela retornaria e sorriu para ele.
– Acho que foi esse pingente que te motivava a me encontrar, não foi?
– O pingente foi o incentivo que eu precisava para continuar acreditando em todos esses anos. – Sua face séria se suavizava a medida em que via um sorriso maior nos lábios dela. – Quando Parker me entregou esse pingente, ele me ajudou a enxergar novas possibilidades. Parker foi a primeira pessoa que me deu um direcionamento no momento em que mais me encontrava perdido, logo nos primeiros meses do seu desaparecimento.
– Parker é um ser humano necessário quando estamos tentando encontrar alguém querido. – Ela lembrou-se dos momentos da última aventura que teve ao lado do amigo dentro de um navio. – Tenho certeza que ele inventou várias teorias malucas sobre isso, não foi?
– Foi por causa de uma delas que você está aqui agora. – Afirmou aliviado enquanto ela se surpreendia. – Eu agradeço todos os dias por ter encontrado esse pingente naquele dia.
Enquanto os lábios de Jill revelavam um sorriso grato, seus olhos emocionados evidenciavam todo amor que sentia pelo homem a sua frente. Procurando distrair-se das emoções que manifestava, ela alcançou a caixinha e retornou o pingente desgastado ali.
– Eu ainda tenho algo pra você. – Chris repentinamente alegou, deixando-a curiosa.
Chris colocou a mão no bolso de sua calça e retirou dali uma sacolinha aveludada, enquanto Jill observava ansiosa. Aquilo parecia ser um pedido de casamento. Mas, percebendo que ele não se ajoelhava, ela foi tirando isso da mente aos poucos, enquanto sentia muita curiosidade pela surpresa. Ele enfim entregou a ela a sacolinha, para que ela verificasse por si só o conteúdo, já que não tinha nenhuma frase a esconder dessa vez.
Suas sobrancelhas ergueram-se quando se deparou com um pingente idêntico ao que tinha acabado de deixar na caixinha, mas que dessa vez, ele era pesado porque era de ouro. Depois de usar um tempo para apreciar a mesma frase escrita no pingente antecessor, alcançou a mão de seu parceiro enquanto segurava o item através do cordão dourado e colocou ali seu mais novo presente ali.
Em seguida, ela desatou o nó de seu casaco úmido e pendurando-o no cabideiro ao lado da cômoda, ela retornava exibindo seu vestido bem ajustado ao corpo, com alças bem finas. De costas para Chris, Jill removeu o elástico que prendia seus cabelos. Afastando as madeixas de sua nuca em duas partes e as posicionando em sua frente, pedia silenciosamente para que ele pusesse seu novo colar nela. Enquanto ele o posicionava em seu pescoço, lembrando-se que tinha comprado aquele presente na mesma semana em que Jill havia retornado, ela olhava para baixo para verificar a posição dele em seu colo.
Ao encontrar sua cicatriz exposta logo abaixo do pingente, seu sorriu se esvaiu. Por mais que quisesse logo virar-se de volta a ele para mostrar-lhe o resultado, sentia receio em fazê-lo, pois dessa vez a visão seria patética. Logo, ela sentiu os dedos dele fixos sobre a lateral de seu braço. Mas hesitando em virá-la por compreender o que estava acontecendo com ela, ele mesmo moveu-se, parando em sua frente. Percebendo o motivo do desconforto presente nela de imediato, Chris mantinha expressões otimistas sobre o que via.
– Esse combina mais com você. – Admitiu deslumbrado enquanto ela ainda continuava constrangida e cabisbaixa, embora risonha. – Será que você tem algo aí pra mim em troca? – Indagou-a para distrair sua mente pensativa, erguendo sua cabeça ao compartilhar uma lembrança. – Tipo... um simples beijo de retribuição? – Encenava a si mesmo mais jovem.
– Isso vai me custar muito. – Respondeu encaixando-se naquela lembrança com um riso contido. Inclinando-se na direção de seus lábios, ela moveu-se mais para o lado e deixou um beijo em sua bochecha, retornando à sua posição de antes para vê-lo risonhamente perplexo. Mordendo os lábios, ela o provocava. – Era pra ser um beijo na bochecha, né?
– E onde mais seria? – Ironizava ressentido. – Porque se bem me lembro, o código de conduta policial não permite relacionamento entre os internos sem que antes assinem um documento que diz que o rendimento militar não pode ser afetado por um relacionamento afetivo. – Chris repetiu exatamente a mesma frase de anos atrás para um novo espanto de Jill, arrancando-lhe um riso em surpresa. – Eu ainda só me lembro disso porque passava horas olhando para essa norma enquanto procurava um jeito de burlá-las por sua causa.
– Eu era uma chata com as regras, não era? – Jill admitiu enquanto suas memórias aqueciam seu coração tristonho. – Depois que soube que você tinha lido meu diário, odiei ter sido tão resistente a você depois daquele beijo. Eu só não queria perder meu parceiro.
– Sabe... eu também sentia o mesmo. – Confessou. – Eu só não forcei a barra naquele dia porque não queria que tudo entre nós falhasse por minha culpa. Na verdade, nem sei o que eu sentia por você, mas nunca tinha sentido isso por ninguém. Eu achava que isso só acontecia com os outros. Então, senti um medo terrível de perder você, quando ainda nem tinha você. – Confirmava desconcertado. – Mas foi exatamente a partir daquele dia que eu entendi que jamais poderia te perder. Foi por isso que eu fiz de tudo pra te ter de volta. – Ele desenhava cada traço do rosto dela com o olhar e quando encontrou seus lábios, permaneceu ali. – Será que é tarde demais para quebrarmos aquela maldita regra agora?
– Acho que devemos isso para aqueles dois pombinhos. – Admitiu revirando os olhos.
Chris tinha um sorriso malicioso enquanto ela se aproximava e depois da intensa troca de olhares, ela entendeu que era ela quem tinha que decidir por si só tomar aquela atitude. Ele tentava trabalhar em prol de resgatar o livre arbítrio dela sem que ela percebesse. Repousando suas mãos sobre o peito dele, o beijou lentamente, firme e suave, sem pressão e sem receio da exposição que tinha quando ainda estavam dentro do hospital. Já não havia mais motivos para serem discretos, para agirem com pressa ou para se evitarem. Principalmente quando já se encontravam sozinhos em um ambiente caloroso e privado.
Ela sentia o mesmo gosto que ansiava sentir desde que havia retornado para casa, enquanto em suas memórias, vários daqueles momentos eram revisitados outra vez. Naquele momento em especial, Jill revivia o que queria ter feito quando descobriu que o que estava cravado no pingente, era exatamente o que Chris tinha lido em seu diário. Portanto criava uma memória do que não se permitiu viver. Era como se ela nunca tivesse interrompido o beijo irrefreável que arriscaram naquela noite. Era como se ela tivesse continuado ali, envolvida pela pessoa que era sua personificação de abrigo. Como se suas versões mais jovens, naquela noite, tivessem se permitido experimentar o que não dava para acontecer naquela época, mas que já eram livres para realizar por uma vida inteira.
Por mais que anos sombrios os tivessem separado e já fizesse um bom tempo em que não disfrutassem de um momento tão intimo como aquele, cada movimento em afeto que ambos demonstravam um pelo outro acontecia tão naturalmente quanto como nos anos em que passaram juntos. Havia uma urgência dentro da tranquilidade de cada segundo em que desfrutavam de toques tão íntimos e afetuosos, por mais que seus corpos ansiassem ardentemente por uma entrega mais brutal, desesperada e devoradora.
As roupas pelo chão, o ambiente apenas iluminado por uma claridade fraca e amarelada e o calor produzido pelo contato inflamado que suava ambos os corpos os deixavam cada vez mais viciados um no outro. Ele a tocava como se fosse perde-la a qualquer momento, como um sonho bom em que não queria acordar, como se quisesse prende-la junto a ele para nunca mais soltar. Ela se observava refletida nos olhos dele e o fazia compreender que dessa vez ela não era apenas um devaneio, uma quimera ou uma fantasia, mas que realmente havia retornado para ele, para seus braços, para seu quarto e para sua cama.
Com sua testa colada na dela, suas mãos entrelaçadas as dela corriam pelo lençol até que se mantivessem paradas sobre a cabeça dela. Ele a conhecia como ninguém e sabia exatamente como agradá-la, tal como o modo em que a envolvia, a maneira como a prendia em si e o jeito carinhoso como ele degustava de seu corpo. Aos poucos, o desejo transformava a intimidade delicada em impetuosidade e agressividade enquanto o beijo apaixonado era substituído em um desesperado anseio de lábios roçados sobre cada canto de pele que estimulasse prazer. Enquanto a atava na cama com seu próprio corpo que se escorregava sobre ela, como um cobertor que a aquecia de toda frieza de alma, ele despertava a humanidade adormecida dela, que achava que jamais a recuperaria tão cedo.
Havia ali uma expressividade que aos poucos os conectava novamente, mas que ao mesmo tempo parecia que estavam experimentando algo novo. Ele experimentava novamente o mesmo nervosismo que sentiu ao toca-la pela primeira vez, mas diferente daquele dia, estava confiante em cada detalhe que repetia, como se soubesse perfeitamente o que fazia. Sentia o mesmo desejo por ela que sentira no primeiro beijo, mas a amava exatamente como ela já havia lhe ensinado como fazer por uma vida inteira.
Com a mesma impetuosidade que dominava os lábios dela quando mais jovem, guiava a cabeça dela por trás enquanto sua mão se enredava nos cabelos claros dela que se esparramavam sobre o travesseiro. Mantendo os olhos abertos em todo o tempo, sentia prazer em assisti-la completamente entregue outra vez, sem escapar de suas mãos e de suas carícias. Como se soubesse que nada dura para sempre, mas como se conseguisse paralisar relógios para que aproveitasse cada pedacinho da mulher que amava de novo.
Naquele momento, enquanto a assistia completamente rendida ao prazer enquanto se contorcia sussurrando seu nome, ele parou para admirá-la por baixo dele enquanto o suor de sua testa escorria sobre o colo dela. Seus olhos abrangiam os seios expostos que vibravam em busca de folego para os pulmões dela, mas seu olhar se prendia na cicatriz abaixo do pingente novo que ela usava. Ele sabia que ela odiava deixar aquela marca evidente e sabia que a última coisa que ela iria querer era ser observada daquela maneira. Ele sabia que aquelas feridas fechadas na superfície de sua pele escondiam uma profundidade de feridas abertas da alma que ela nunca gostava de se pronunciar sobre, nem mesmo para ele. Nisto, ele decidiu tomar para si aquela batalha, tal como ele havia prometido que iria ajuda-la a se curar e encontrou ali uma oportunidade para fazer isso.
– Volte para os meus olhos. – Jill ordenou rigorosamente enquanto ofegava, interrompendo os pensamentos dele ao guiar com o dedo indicador o queixo dele para fazê-lo encarar seu rosto. – Por favor, esquece isso. – Ela implorava sussurrando.
Ainda intrigado, sabia que se insistisse ela cederia, como sempre acabava cedendo e a conhecia muito bem para tomar aquela atitude tão ousada e invasiva. Instintivamente, a beijou com ternura, enquanto sua mão descia de suas bochechas até o pescoço. Descendo mais um pouco, logo alcançaria a cicatriz que ela queria evitar, mas antes que seus dedos alcançassem aquele local, ela segurou a mão dele instintivamente, usando uma força imoderada. Apartando seus lábios, Jill o encarava chateada, como se estivesse dominada de uma fúria que não lhe pertencia, deixando-se dominar por aquele sentimento.
– Não! – Ela balançava negativamente a cabeça ao fechar seus olhos com pálpebras que tremiam de desolação. – Nada vai me fazer sentir melhor sobre isso. Esquece isso agora!
– Você precisa melhorar. – Chris voltou a agarrar sua cabeça e repousando sua testa a dela, tentava passar para ela um pouco de consolação. Afastando-se próximo, olhava no mais profundo dos olhos dela como se pudesse arrancar deles aquela fúria. – Você confia em mim, Jill? – Ele a indagou, fazendo-a tranquilizar suas expressões gradativamente.
Notando que Jill, relutante e incomodada, se mantinha inerte, incurável de expressar uma resposta, ele voltou a observar a cicatriz inconvenientemente, por mais que soubesse que aquilo a irritaria. Ele tinha que entender se aquela marca ainda tentava controla-la como antes ou se Jill ainda tinha o instinto de proteger aquele lugar como resquício do trauma.
– Eu confio em você, mas... – Finalmente Jill respondeu tentando conter seu incomodo.
Ela sabia que Chris insistiria naquele assunto e se aproveitaria daquele momento para trabalhar nisso. Perdida ao ponderar sobre a continuidade de seu argumento, mal percebeu que Chris corria seu dedo indicador sobre cada circulo outrora furado pela acoplagem do aparelho. Ele a tocava indiscretamente, observando que o rosto incomodado dela se transformava no rosto confuso e curioso de sempre. Percebendo que ela já erguia uma mão para afastar seus dedos, ele a impediu agarrando-a enquanto estalava a língua para abrandá-la. Nisto, ela voltou a olhar paralisada a ele, como se tivesse desligado todos os seus sentidos, aguardando ansiosa por novas atitudes dele sobre aquela situação delicada.
– Eu só estou tocando em sua pele. – Ele se aproximou da cicatriz e a beijou enquanto mantinha olhos fixos nos dela. – Não há mais nada aqui, somente uma parte de você e entendo que por mais que a cicatriz esteja fechada, você ainda sente dores por causa dela.
– Não dói mais por fora, mas ela ainda me machuca por dentro. – Finalmente admitiu enquanto sentia os lábios dele sobre aquelas marcas. Os dedos dela se prendiam nos cabelos dele para afaga-los carinhosamente para retribui-lo por tanto cuidado com sua situação. – Chris, eu odeio meu corpo e tudo de mal que ele causou aos demais... e a mim.
– Não diga isso. – Balançava a cabeça em negação. – Eu amo seu corpo. Amo saber que ele está aqui, grudado ao meu. Eu o desejava todas as noites em que você não dormia comigo, como também te desejava de volta de qualquer jeito. Agora você está aqui e eu não poderia me sentir mais grato. Tudo o que queria que você compreendesse nesse momento é que você está no controle. Você já está livre. – Ele a envolvia, com uma mão em sua nuca, roçando seu nariz ao dela ternamente. – Você confia em mim, Jill Valentine?
Enquanto ela sentia sua cabeça latejar com uma dor enorme de tanto tentar segurar suas lágrimas para mostrar que estava bem para o homem que a conhecia mais do que a si mesma, ela podia pressentir a formação das lágrimas que involuntariamente se formavam ao entorno de seus olhos, exatamente por causa dele. Enquanto trocava sua face inexpressiva por uma adornada com os fios das águas que escorriam de seus olhos, encarava-o com os olhos nublados, já absorvendo para si cada palavra que ele lhe dissera.
– Eu... – Ela tocava em sua face tentando soar mais firme. – Eu confio em você, Chris.
– Então... – Com um sutil movimento, ele entrelaçou suas pernas a dela e deixou-a escarranchar-se sobre ele, dando suporte até que ela se sustentasse. – Assuma o controle.
Seus cabelos molhados caíam sobre ele enquanto a observava tomando a posição que ele se encontrava. Notando a pequena formação de um curto sorriso no rosto molhado dela, podia perceber que ela mesmo secava suas próprias lágrimas com os dedos enquanto suas pupilas dilatavam sobre seus olhos acinzentados ao olhar para ele com admiração. Delicadamente, passou seus dedos molhados de lágrimas sobre o rosto dele molhado de suor, com ternura, acariciando-o enquanto descia lentamente suas mãos até seu peito e o empurrou para trás, mantendo o preso ali, sob o controle dela. Ela começava a dar mais credibilidade às próprias atitudes, proveniente da liberdade sobre suas próprias vontades.
– Se sente melhor agora? – Chris a questionou levemente amolado com a força que ela usava contra ele, mas sorria abobalhado ao vê-la mais observável e mais confiante.
– Você sempre me faz me sentir melhor. – Jill afirmou mais para si do que para ele.
Sorrindo ao apreciar da visão do corpo curvilíneo da beldade sobre si, Chris notara que Jill tinha recobrado todos os trejeitos da mulher determinada que ele já estava acostumado a lidar por anos. Ele voltava a admirar a mulher incrível e destemida que ela era e todos os todos os balanços inebriantes que os unia em intimidade outra vez. Prendendo seus lábios ao homem que mais a queria bem, tudo o que tinha que fazer era permitir-se ser amada por ele enquanto reaprendia a gostar da pessoa que estava por baixo de sua pele.
Por mais que a intimidade afastasse temporariamente todo mal, Chris sabia que aquela luta estava longe de acabar. Teria que afastá-la dos perigos que ainda estavam presos dentro dela enquanto teria que manter os olhos nela, tal como havia prometido a ela nunca a perder de vista. Não seria uma tarefa fácil, mas ao menos estaria ali, de olho em seu pardal. Ele tinha que ser o abrigo que prometeu ser para ela nos dias difíceis. Tinha que estar ali por ela e para ela como sempre esteve. Sabia que tinha de reconquistar sua confiança de volta a si outra vez, tal como ele se propôs fazer pela primeira vez um dia.
AGOSTO, 1997
O primeiro dia de agosto passou a ser um dia difícil para Jill desde os dezessete anos. Todas as vezes que aquela data se aproximava, era motivo de ela ser dominada por uma insegurança cruel sobre a vida, uma vontade de querer ficar só, mas exatamente por isso, sentia solidão. Sua personalidade se perdia, sua confiança se esvaía rapidamente e sua paciência era muito curta. Ela voltava a ser a adolescente rebelde e caótica que fora um dia.
Naquele ano, o último dia de julho havia sido marcado por mais um conflito no ambiente de trabalho que a deixou arrasada e só contribuiu para que ela reafirmasse a decisão que pensava em tomar ao abrir os olhos naquela manhã. Deitada em sua cama, ouvia o despertador ecoar, mas continuava olhando para o teto ponderando sobre que fazer naquele dia para torna-lo mais breve e trabalhar estava fora de cogitação. Ela odiava ter que fazer o que sempre relutou em fazer desde que chegara à Raccoon City há um ano.
Jill sabia que seria impossível trabalhar devidamente naquela sexta-feira. Principalmente ao lado de Chris, que teria motivos de sobra para arruinar ainda mais aquele dia, desde que ela o delatara por conta de um pequeno atraso no dia anterior. Seria algo que ela acabaria relevando, mas por conta da ansiedade do dia seguinte, ela acabou por se deixar levar pelas emoções e o entregou na primeira oportunidade, para se livrar da punição que aquele pequeno atraso causaria à dupla. Na verdade, ela já tinha pretensões de não ir trabalhar no dia seguinte, principalmente se tivesse que ser punida graças a seu parceiro.
Sua relação com Chris não era uma das melhores, mas já estava bem longe das picuinhas iniciais. Eles tinham acabado de começar a abrir mão de seus conflitos para que pudessem ser bem sucedidos em parceria. Não eram melhores amigos, mas já não eram tão inimigos e passaram a manter uma cordialidade profissional no ambiente de trabalho. Fora dele, as conversas, muitas vezes em grupo, se resumiam em provocações leves e descontraídas que ambos já sabiam como lidar e que nem mesmo se magoavam um com o outro mais.
Incomodada com o bip do despertador que ficava ao lado de sua cama, esticou seu braço e pressionou o botão para desliga-lo. Após isso, inclinou-se e discou o número que sabia de cor no telefone, prendendo-o no ouvido em seguida. Com um longo suspiro ainda contemplando o teto, ela ligava para o ramal do escritório, sabendo que seu capitão já estaria presente ali para atende-la. Explicando-se a Wesker sobre um mal estar que sentia, imediatamente foi compreendida e, portanto, conseguiu uma folga naquele dia. Tudo o que queria, após aquela permissão, era voltar a dormir. Deitando novamente sua cabeça no travesseiro, seu último olhar foi em direção ao pequeno ser que deitava sua cabeça sobre a superfície de seu colchão. Com pequenas palminhas, Jill o convidou para se deitar com ela sobre a cama e o Golden Retriever subiu na cama, repousando-se ao lado dela.
O cão era um presente que ela comprou para si mesma assim que tinha chegado em Raccoon. Desde que se sentia muito só em um grande apartamento, sua intenção ao entrar no pet shop era de comprar um gato, desde que sempre gostou mais dos felinos. Porém ao vê-lo de imediato ao entrar naquele estabelecimento, decidiu adotá-lo. Era o último cãozinho daquela raça e já era bem grandinho quando o levou para casa e o nomeou de Spike. Por mais que fosse um cãozinho muito caseiro, todas as vezes em que Jill corria nas primeiras horas da manhã, ele era um grande companheiro e desfrutava daquela companhia para gastar sua energia diária. Enquanto ela trabalhava, ele se sentia confortável apenas protegendo o lar e sempre se emocionava ao revê-la após o expediente.
Quando acordou quase as três da tarde daquele dia, depois de receber várias lambidas de carinho no rosto do cão que sentia falta de vê-la desperta pela casa naquele horário, Jill sentia-se mais cansada do que nunca. Após levantar-se, se dirigiu ao banheiro e pode enxergar no espelho seu abatimento. Ali, recordou-se do dia que enfrentava e automaticamente podia se lembrar dos momentos em que odiava relembrar. Tudo o que ela precisava era de uma distração, para limpar de suas memórias a tristeza iminente, mas primeiramente, estava precisando de um banho para melhorar sua aparência e seu humor.
Percebendo que o clima ensolarado dava lugar a um céu nublado, ela colocou um cardigan confortável. Após servir seu cão de comida e carinho, prometendo a ele que passariam o sábado no parque, ela deixou o apartamento com uma bolsa lateral pendurada nos ombros, já sentindo o vento que remetia a ideia de uma possível chuva de verão em algumas horas. Portanto, levava consigo sua carteira, o livro que lia e uma capa de chuva dobrada, já que sempre era muito precavida. Ela seguia em direção à estação mais próxima para chegar ao centro da cidade, onde sua cafeteria favorita estaria a aguardando. Seu único receio era vir alguém do trabalho naquele dia, já que o estabelecimento se localizava próximo à delegacia, mas seu plano era se sentar na mesa mais escondida do estabelecimento. Só não contava com o azar da única mesa vaga naquele horário estar rente à janela da calçada.
Desde que já tinha feito seu pedido, ela optou por continuar ali, prometendo a si mesma que dessa vez não demoraria naquela cafeteria, onde costumava passar um dia inteiro nos fins de semana, para que não encontrasse ninguém. Logo, soltou seus cabelos para cobrir as laterais de seu rosto, em uma pequena camuflagem, já que todos eram acostumados com seu rosto inteiramente exposto e seus cabelos presos. Tudo porque temia que seu péssimo humor permanecesse na mente de seus amigos do trabalho caso os encontrassem naquela condição, desde que estavam acostumados com a moça sempre bem humorada.
Enquanto mexia o açúcar com a espátula em seu café macchiato, começava a ler os capítulos finais de sua coletânea favorita. Presa à leitura compulsiva, não se atentava ao horário, contudo o livro acabou antes mesmo que a fumaça do seu café quente se dissipasse. Após fechar o livro, frustrada em saber que tinha deixado o livro de continuação da coletânea em sua mesa, na delegacia, ela ponderou se ir lá busca-lo não faria nenhum mal em seus planos de desaparecer de todos. Mas, enquanto já bebericava do café, desistiu da ideia ao se lembrar que se encontrasse Chris ali, ele poderia armar contra ela e arrastá-la consigo para sua punição.
Distraída enquanto olhava para o lado de fora, observava as pessoas que aproveitavam do vento suave que se intensificava a cada minuto. De repente, ela observou um carro familiar estacionado na frente da lanchonete, tentando identificar o dono em sua mente. Quando se deu conta de que aquele carro pertencia à Barry, ela sorriu ao se lembrar do amigo, lembrando-se que, se caso fosse trabalhar, Barry certamente tornaria seu dia tedioso e melancólico em um dia animado e risonho. Mas seu sorriso não durou muito quando notou que Chris surgiu repentinamente naquela calçada, dentro da jaqueta que ficava pendurada na parede do escritório. Após jogar a bituca de cigarro no cinzeiro do lixo, encaixou a chave na porta do carro de Barry e prontamente o abriu para adentrá-lo.
Naquele momento, ela se virou para observar o horário no relógio da parede do estabelecimento e percebendo que ainda faltava uma hora para o expediente encerrar, voltou a olhar confusamente para Chris sem entender o porquê de ele estar longe da delegacia, quando sabia que ele seria o último a sair de lá devido a punição que receberia naquele dia por sua causa. Quando se voltou para Chris, Jill assustou-se ao perceber que ele devolvia o mesmo olhar confuso e desconfiado para ela de dentro do carro.
Chris girara a manivela para abrir a janela quando observou uma silhueta familiar dentro da cafeteria. Logo impressionou-se ao perceber que se tratava de Jill. Algo no olhar dela não apenas demonstrava confusão ao vê-lo, mas também revelava que ela não estava bem. Mantendo seu olhar sobre ela por mais alguns segundos, ele se perguntava se deveria ir até ela, sem que nenhum dos dois tivessem acenado educadamente um para o outro ainda.
Antes que ligasse o carro, Chris suspirou. Por mais que já soubesse que ela estava bem o suficiente para se encontrar em uma cafeteria naquele horário, não conseguiria sair dali sem entender o que tinha lhe acontecido, principalmente a causa de ela não ter ido trabalhar, o que lhe era muito inusitado. Afinal, foi naquele dia que ele contou os minutos para encontra-la desde a conversa que tivera naquela madrugada com Kathy, que o havia aconselhado a se aproximar melhor de sua parceira. Portanto, Chris sabia que não deixaria aquele dia passar sem que tivesse um tempo com Jill. Tinha que deixar aquela proximidade suceder. Só não esperava contar com a sorte do destino de encontra-la muito antes de tentar.
A lembrança da conversa que teve com Kathy ainda o deixava nervoso sobre compreender seus sentimentos por ela, mas talvez estivesse ali a oportunidade de se aproximar, longe dos demais e até mesmo longe da delegacia. Seria apenas eles e mais ninguém para atrapalhar uma possível conversa privada. Aguçado por aquela oportunidade, deixou o veiculo e logo adentrou à cafeteria. Sem pedir permissão, sentou-se de frente a ela, que já o acompanhava desde o veículo com uma face curiosa.
– Por que não foi trabalhar hoje, gracinha? – Chris flexionava os cotovelos sobre a mesa, como se a interrogasse. Percebendo que ela se mantinha fria para não lhe dar explicações, sabia que o próximo passo era provoca-la, na certeza de que ela nunca deixaria de responder inteligentemente suas implicâncias. – Ganhou a folga do seu querido chefinho como prêmio por delatar meu atraso de ontem? – Ele observava que ela o encarava com olhos furiosos e lábios apertados, mas ainda se mantinha quieta. Isso o atiçava a continuar suas provocações até que ela se manifestasse. – Sua consciência ficou pesada pelo que fez comigo ontem injustamente? Se for isso, não se preocupe. O que é seu tá guardado.
– Quer saber... – Suspirou jogando seus cabelos para trás com os dedos, mantendo suas mãos nas laterais de seu pescoço. – Não tô afim de guerra hoje, Chris. Acho que já deu pra perceber que não estou bem. Se veio aqui me provocar por ontem, tudo o que posso dizer é... – Quebrou o contato visual, voltando-se para o livro com um olhar soberbo. – Desculpe por ter te delatado por uma bobagem, se é isso que queria ouvir vindo até aqui.
– Não é isso o que eu queria ouvir de você. – Se afastou da mesa, assumindo uma postura mais amena. – Voltando à minha primeira pergunta... por que você não foi trabalhar hoje?
– Eu já disse que eu não estou bem. – Respondeu rispidamente, ainda sem encará-lo.
– Desde quando isso é motivo pra você faltar ao trabalho? – Indagou com preocupação. – Foi por causa de mim? – Questionou-a enquanto ainda era ignorado. – Porque não estou nenhum pouco irritado com a sua inumanidade. – Dramatizava. – Quero dizer, ontem eu só queria que você se ferrasse, mas hoje... – Chris pausou sua fala ao perceber que estava sendo insensível, contrariando o que Kathy o aconselhou. – Sentimos sua falta por lá.
– Olha, se está vindo com esse discurso do bem por medo que eu te delate outra vez...
– Não é isso! – Ele a interrompeu, impressionando-a. – É que... hoje tava um silêncio estranho no escritório sem você ao lado. – Ele usava um tom amistoso enquanto ela voltava a encará-lo aos poucos. – Mas não foi só eu que achei isso. – Pigarreou. – Todos ficaram preocupados com você já que a “dona certinha” nunca perde um dia de trabalho.
– A “dona certinha” também falha. – Desabafou. – Imaginei que todos lá se espantassem com isso. Mas confesso que não esperava que logo você sentisse minha falta... logo hoje.
– Você é a minha parceira, não é? – Chris admitiu timidamente, conseguindo arrancar um sorriso desajeitado dela. – Sem você por lá, minha punição não teria tanta graça, já que eu daria um jeito de te arrastar comigo para um expediente prolongado também.
– Falando em expediente prolongado... – Jill o encarava confusa. – O que faz aqui antes do expediente acabar?
– Eu só te conto se você me contar o que tá rolando aí dentro. – Chris notou que o sorriso tímido que ela começava a esboçar sumiu junto com aquela proposta. Depois de um silêncio da parte dela, que voltou a observar o livro muda, ele se aproximou da mesa novamente. – Desculpe a insistência, mas... tem certeza que não posso te ajudar com isso?
– Ninguém poderia. – Jill revelou notando que talvez poderia finalmente conversar sobre o que lhe afligia com ele. – E não quero que você use isso contra mim quando brigarmos.
– Então, que tal uma trégua? – Propôs entusiasmado, assistindo-a hesitante. – Só hoje.
– Tudo bem. – Jill assentiu depois de encará-lo para uma aprovação. Segurando com força suas emoções, optou por confidenciar aquele mal estar. – Hoje faz mais um ano que eu perdi minha família. Isso me destrói a mente todo ano porque... – Calou-se emocionada.
– Família? – Indagou surpreso ao notar que ela não queria continuar se abrindo sobre o assunto, quando ele precisava compreender mais sobre. – Você também perdeu seus pais?
– Não. – Demonstrou um incomodo. – Minhã mãe vive no Japão desde que nasci, não somos próximas. – Ela pausou para um suspiro. – Já meu pai, a gente não tem contato há anos, mas ele tá bem. Já a mãe dele, minha vovó Louise... – Hesitava. – Era tudo pra mim.
– Ah... – Chris assustou-se ao observar lágrimas se formando nos olhos dela pela primeira vez desde que a conheceu. – Compreendo. Nesse caso, sua avó era sua única família? – Ele a viu concordar em resposta. – E sem ela... você não tem mais ninguém nesse mundo?
– Tem os tios, mas é o mesmo que nada. O único tio que posso contar está do outro lado do continente então, por aqui... é só eu mesma. Quero dizer, agora tenho o Spike. – Sorriu ao lembrar-se de seu cãozinho. – Mas a vovó... éramos nós duas contra o mundo desde que eu era pequenina. Ela era tudo o que eu entendia sobre família. Então, todos os anos, nessa data, é como se eu tivesse perdendo mais um pedacinho dela. – Jill escondeu uma lágrima fingindo coçar o olho. – Esse é o dia do ano que eu tiro para sentir falta de ter uma família de novo... já que eu não considero tanto assim meus pais ou meus parentes.
Chris podia jurar que estava diante de si mesmo, quando entendia perfeitamente cada palavra que Jill dissera. Ele se sentia da mesma forma todas as vezes em que se completava mais um ano da perda de seus pais, mas sabia que ainda podia contar com seus avós e principalmente, sua irmã. Era um alívio saber que ainda tinha Claire quando sentia falta de ter sua família de volta. Nisto, ao observar a moça à sua frente, que ainda segurava suas lágrimas com força ao apertar os lábios olhando para cima, ele se comoveu. Jill precisava contar com alguém nos dias maus e ele sentiu vontade de ser esse alguém.
– Toma isso. – Chris alcançou um guardanapo e colocou em sua frente, sobre a mesa. – Prometo que não conto pra ninguém que você é humana. – Brincou. – Aliás, mesmo não estando mais em trégua, eu jamais tiraria com a sua cara sobre isso. – Ele a viu apertar os lábios forçando um sorriso grato. – Não segure o choro. Isso é tudo o que você precisa deixar acontecer agora. – Imediatamente notou que as lágrimas dos olhos avermelhados dela rolaram precisamente após aquele incentivo. – Na verdade, você está adorável assim.
– Não mesmo. – Ela riu para disfarçar as lágrimas que escorriam de seu rosto enquanto os secava com a ajuda do guardanapo que ele tinha oferecido. – É que eu odeio chorar em público porque quando isso acontece, não consigo parar. – Ela dizia tentando se recompor. – E eu não quero ser adorável, ainda quero ser a durona de sempre pra você. – Ambos sorriram timidamente. – Tudo o que queria agora era ser um pouco mais durona.
Chris observou por um momento os olhos avermelhados que o encaravam com um fio de tristeza. A vontade que tinha era de dar a volta naquela mesa e a envolve-la até que aquele mal estar passasse. Mas como aquela atitude seria incoerente com a realidade do relacionamento que ele mesmo sabotou, tudo o que podia fazer era distraí-la, tira-la daquela aflição com palavras, como queria ter feito no dia em que a conheceu.
– Você vai continuar tomando esse café? – Ele apontou para o copo e ela testou a temperatura, negando em seguida por ter se esfriado rápido. – Então passa ele pra cá.
– Está frio! – Ela o viu tomar o copo de perto dela para analisa-lo. – Não estamos no escritório para você pegar minhas sobras por preguiça de buscar sua própria parte. – Jill se incomodava ao vê-lo mexendo o conteúdo do copo em apreciação, pronto para beber dele. – Levanta essa bunda preguiçosa daí e vai pegar um café quente pra você, Chris! – Ela tentou arrancar o copo da mão dele sem sucesso. – Eu pago, se é isso que te impede.
– Mas naquele lá não tem o doce-amargo gosto dos seus lábios. – Chris lançou no ar no intuito de provoca-la e encarando-a, bebeu do conteúdo enquanto ela revirava os olhos rindo pela piada mesquinha. Ele sempre se atrevia a tomar da mesa dela qualquer comida ou bebida que estivesse ali usando aquela frase como desculpa. – Diferente das suas, minhas piadas toscas sempre funcionam pra você, viu?
– Quem diria que eu só precisava de um momento com meu aborrecimento diário para esquecer momentaneamente das minhas desgraças, hm? – Confessou timidamente. – Na verdade, estou me sentindo em desvantagem aqui. Eu abri meu coração para te contar algo intimo... que em outros tempos eu jamais revelaria a você. Então, eu preciso de algo intimo seu também, por justiça. – Desafiava-o confiante. – Que tal se ficarmos quites?
– Acho que você já sabe de todas as minhas desgraças, já que a boca grande da Claire...
– Quero algo profundo, Chris. – Ela arrastou seu livro para o lado. – Só por garantia de que você não vai se aproveitar da minha situação. Ainda não sei se devo confiar em você, então... – Exigiu repousando os cotovelos na mesa e apoiando seu queixo sobre sua mão, mesmo já confiando na promessa dele de não a expor com o que revelou a ele. – Não vale mentiras! – Ela o ameava com o olhar. – Você sabe que sei quando você está mentindo.
– Tá bem. – Ele imediatamente pensou em algo que estava entalado na garganta desde quando chegou naquela lanchonete. Escondendo suas mãos suadas de nervoso debaixo da mesa enquanto as esfregava com ansiedade, ponderava se aquelas palavras soariam bem para um momento descontraído. Mesmo assim, precisava saber qual seria a reação dela sobre o que queria confessar. – Eu ia passar na sua casa pra saber como você estava.
– Não mesmo. – Debochava impressionada enquanto já gargalhava. – Que mentira!
– Não é mentira. – Chris admitiu sério. – Eu ia mesmo ver se você estava bem. Porque você é sozinha aqui na cidade e caso estivesse doente, ia precisar de remédios ou se estivesse com problemas, ia precisar de ajuda pra lidar então, como somos parceiros... – Chris apertou os lábios enquanto percebia o espanto dela. – Pode parecer que eu não me importo, mas me importo e aquele escritório é uma droga sem meu aborrecimento diário.
Após sua fala, Chris notou que não só ele se mantinha calado, mas Jill também se mantinha quieta. Enquanto isso, eles se observavam como se pudessem dizer as palavras que não queriam proferir por saberem que ainda não era a hora certa de algo mais profundo ser revelado. Ambos se encaravam indiscretamente enquanto havia uma mudança indelével, silenciosa e invisível, acontecendo naquele relacionamento, através das palavras que ressoavam em suas mentes sobre as possibilidades de um vínculo maior entre eles. Era a primeira vez em que se permitiam experimentar de uma aproximação.
– Por que logo você iria na minha casa? – Ela o questionou depois do silencio constrangedor. – Foi o capitão que ordenou que você fosse lá porque é meu parceiro?
– O capitão não liga pra ninguém, Jill. – Chris detestava saber que Jill era ingênua demais para ser tão submissa a Wesker. – Na verdade, ninguém sabe que eu pretendia fazer isso... nem mesmo o Barry. – Concluiu deixando no rosto de Jill uma satisfação disfarçada de espanto. – Mas não se preocupe, não é que eu pretendia ficar lá papeando com você ou passar a noite em claro por lá... ou mesmo cuidar de você caso estivesse doente. – Explicava em um desesperado nervosismo, estranhando suas próprias reações viciadas em auto sabotagem devido ao olhar cheio de amabilidade que ela expressava ao ouvi-lo dizer aquelas palavras. Aquela fraqueza o fazia enlouquecer internamente por causa dela. – Na verdade, tenho um outro compromisso mais tarde... então, nem ia passar da porta.
– Sei. – Jill percebia que tudo o que ele tinha dito ao contrário era o que no fundo queria fazer, porque encontrou naquelas palavras desencontradas, o homem que Claire tanto descrevia para ela e por isso, sorriu abobalhada. – Eu nem ia deixar você entrar lá em casa mesmo. Na verdade, eu temeria que você ainda estivesse magoado comigo por ontem e quisesse aprontar comigo por isso. – Ela o via negar com a cabeça, demonstrando não mais se importar com aquilo. – Que bom que nos encontramos aqui e esclarecemos tudo.
– É... e o seu café frio estava delicioso. – Brincou para quebrar a tensão dando um pequeno peteleco no copo vazio enquanto prendia seus olhos no sorriso de lábios selados que ela exibia. – Que bom que você já parece melhor. Nesse caso, se quiser que eu vá...
– Não! – Ela admitiu tão rapidamente que soou um pouco constrangedor e evitou encará-lo. – Até que você não é uma má companhia quando não está tentando me tirar do sério.
Com a aprovação, Chris se esparramou na cadeira, prendendo dedos entrelaçados na nuca enquanto tentava não demonstrar a satisfação de ter ouvido aquelas palavras. Jill olhava para a janela distraída enquanto ele já pensava em uma forma de propor a ela umas aulas de pontaria tal como tinha ensaiado o dia inteiro para fazer. Mas antes que o fizesse, Jill voltou a olhar para ele, apontando para o outro lado da rua.
– Aquilo é uma loja de instrumentos musicais? – Jill o questionou e ele prontamente olhou na mesma direção. Balançando a cabeça positivamente, ele a via confusa. – Acredita que eu nunca tinha reparado naquele lugar antes?
– É porque está inaugurando hoje. – Explicou. – Ouvi pela rádio essa manhã sobre isso, só não sabia aonde seria. Agora que sei, vou dar uma passada lá essa semana pra me comprar uma guitarra decente. – Animado, ele simulava tocar uma guitarra imaginária. – Afinal, tenho que garantir um emprego de músico caso você finalmente consiga me expulsar do esquadrão, como eu sei que você é capaz de fazer algum dia desses comigo.
– Você sabe que se eu quisesse, já teria motivos de sobra para você estar bem longe daqui.
– Então, algo me diz que você não me odeia tanto quanto parece. – Chris a questionou voltando a encará-la, mas ela ainda se mantinha distraída na visão da loja para não revelar que aquela frase não era refutável. Com uma ideia na mente, ela finalmente se animou.
– Quer saber? – Exibia para ele um sorriso presunçoso, já se pondo de pé e deixando uma cédula na mesa. – Só por garantia, vamos lá dar uma olhada em uma guitarra pra você.
Ambos atravessaram a rua e adentraram no estabelecimento que era bem grande, onde a sessão dos álbuns e mídias ficavam na parte frontal e os instrumentos ficavam mais ao fundo. Ambos mostraram um para o outro alguns gostos e preferências como se estivessem deixando o outro saber subliminarmente mais sobre aquela parte de si. Aos poucos, eles se dirigiam ao fundo da loja onde ficavam os instrumentos e um atendente começou a tirar algumas dúvidas sobre as melhores marcas de guitarras do mercado.
Achando a conversa sobre acordes do solo de uma banda um pouco tediosa, Jill montava mentalmente uma partitura para a música que soava no ambiente. Era The first Day in August de Carole King, uma das cantoras favoritas de sua avó. A música coincidentemente referenciava a data que em ela havia partido e o dia presente. Antes que deixasse a tristeza dominá-la novamente, Jill se aproximou do piano de cauda para verificar se a musicalidade dela ainda funcionava. Antes que percebesse, já havia se sentado na frente do instrumento com o pé no sustento para acompanhar a melodia.
Quando Chris se deu conta de que sua colega de trabalho era a dona do som que adornava brilhantemente a música ambiente, ele parou ao lado do instrumento impressionado por saber que ela produzia aquele som. Com isso, tomou um violão que estava exposto na parede e batendo levemente nas cordas, pode perceber que ele ainda estava afinado. Inicialmente perdido nos acordes da música, Jill lhe soprava as notas, solfejando junto com a canção para que ele se familiarizasse e logo ambos estavam sendo assistidos de perto pela pequena multidão que se aglomerava ao redor. No fim da canção, ambos continuaram tocando por mais alguns segundos um instrumental proficiente.
Ao perceberem que o olhar incomodado do gerente da loja com aquele pequeno concerto que tirou a atenção dos clientes dos demais itens compráveis da loja, discretamente se dirigiram à saída enquanto eram honrados com aplausos. Já do lado de fora, eles se encontravam surpresos pelo que fizeram.
– Acho que o gerente não aprecia uma boa música. – Jill admitia divertindo-se com a situação, já distraindo sua mente da dor que a canção lhe trouxera. – Mas relaxa sobre a guitarra... eu gosto de você o suficiente para que você não precise trabalhar como músico.
– Agora estou aliviado. – Ironizava escondendo um sorriso ao atravessar a rua ao lado dela. – Na verdade, acho que somos uma dupla incrível quando trabalhamos juntos.
– Não discordo. – Jill parava ao lado do carro de Barry, observando que já estava quase na hora do expediente findar. Contudo, já não queria mais ir embora para casa porque tinha encontrado uma distração naquela companhia. – Desde quanto você não toca? – Questionou-o intrigada continuando o assunto. – É que você parecia perdido de início.
– Ah, é... eu tocava na escola. – Ele se escorava no carro, de braços cruzados. – Eu tinha uma banda. Se chamava “Queens”. Se estou aqui na sua frente, foi porque fracassamos.
– Já deu pra notar. – Esboçava um sorriso contido. – Era uma banda de cover do Queen, não era? – Ela o observou assentir intrigado enquanto ria do maior fã daquela banda que conhecia. – Vi sua coletânea em sua mesa. E a Claire também me contou sobre isso.
– Suspeitei. Se bem que o nome “Queens” já era uma dica, mas... e você? – Cutucou-a com o cotovelo, lembrando-se admirado de sua habilidade. – Desde quando toca tão bem?
– Desde criança. Na minha igreja tinha um maestro. Um dia, a vovó me presenteou com um piano depois de um tempo juntando uma grana. – Jill esboçava melancolia. – Quando a perdemos, uns tios decidiram vender a casa dela com toda a mobília para repartirem o dinheiro. Quando soube disso, fiquei tão chateada que... – Desabafava furiosa enquanto Chris parecia bastante atento. – Nunca mais tinha tocado piano... até agora pouco. – Jill engolia seco, tentando esconder a dor da saudade. – Que ironia! Toquei piano logo hoje.
– Isso é um sinal de que você não perdeu um pedacinho dela hoje. – Chris concluía vendo-a cabisbaixa com pesar. – Eu acho que você acabou de recuperar esse pedacinho de volta.
Chris a olhava sério enquanto ela ainda refletia em suas palavras. De repente, ela ergueu a cabeça e após respirar fundo, suas expressões imediatamente se mostraram mais amenas, mais empática. A vontade que ele tinha era de segurar em sua mão, de mostrar que estava ali por ela porque entendia muito bem como ela estava por dentro. Mas ainda tinha um longo caminho que tinha acabado de começar a desbravar para poder se achegar daquele jeito. Contudo, achava inconcebível como Jill ainda conseguia ser uma mulher tão incrível escondendo uma ferida tão dura quanto a dor da saudade e da solidão por trás de sua personalidade admirável. Logo, concluía que eram exatamente aquelas feridas que a moldavam para que fosse tão singular, tão diferenciada das demais.
Quando Jill reparou que o movimento na rua havia se intensificado, ela olhou para o relógio através da janela da cafeteria onde estava outrora e lamentou saber que o expediente já tinha acabado. Logo, poderia ser encontrada a qualquer momento por qualquer amigo, quando ainda não estava pronta para revê-los. Voltando-se para Chris, notou que ele havia aberto a porta do carona do carro de Barry enquanto gesticulava para que ela entrasse ali enquanto dava a volta para assumir o banco do motorista.
– Vem... vou te deixar em casa. – Convidou-a de antemão porque já tinha noção do que ela temia. Quando adentrou no carro, encontrou-a ao seu lado com sua bolsa sobre as pernas e gratidão em seu rosto, embora escondesse desconfiança sobre as atitudes dele.
Observando-o impressionada enquanto ele dirigia, Jill podia jurar que a pessoa sentada ao seu lado era uma completamente diferente de quem já conhecia há um ano. Se perguntava o que havia acontecido com ele de um dia para o outro, por mais que soubesse que ele tinha aquela particularidade escondida dela, tal como Claire sempre defendia. Percebendo que estava sendo observado indiscretamente, Chris se virou para Jill e notou que ela ainda mantinha os olhos nele enquanto erguia uma sobrancelha. Antes que pudesse dizer algo, entendeu que não conseguiria dizer nada sem que expusesse seus reais sentimentos por ela e por isso, apenas continuou o trajeto até a casa dela silenciosamente.
– É aquele prédio ali? – Chris apontou para o local e ela confirmou. Logo, estacionou o veículo em um espaço vago próximo à entrada do apartamento. – Sendo assim, entregue.
– Obrigada pela carona. – Reconhecia desconcertada. – Ah, e pela música e por aquelas palavras. Também por ter passado um tempo comigo sem brigas. Aliás, essa coisa de trégua, gostei disso. – Admitia enquanto arrancava uma risada de seu parceiro. – Até logo.
– Jill... – Chris chamou a atenção dela de volta rapidamente antes que sua mão chegasse até a maçaneta. – Podemos manter essa coisa de trégua, se quiser. – Propunha em timidez.
– Por mim tudo bem. – Concordou ligeiramente animada. – Prefiro esse cara de agora do que aquele idiota infernal que senta do meu lado todos os dias. – Compartilharam um riso modesto. – Mas obrigada mesmo pela preocupação de ter pensado em vir atrás de mim.
– Disponha, parceira. – Respondeu acanhado enquanto a via quebrar o contato visual aos poucos, afim de deixar o veiculo.
Vê-la partir gerava em Chris o mesmo aperto de perder uma melhor oportunidade com ela, como no dia em que a conheceu. A inquietude de saber que em instantes ela voltaria a ficar sem uma companhia para distraí-la com palavras o deixava encabulado. Justamente no mesmo dia em que teve sua conversa com Kathy sobre Jill, ela havia aberto seu coração e sua alma para ele e isso o fazia querer abriga-la imediatamente dentro de si até que ela nunca mais sentisse falta de nada. Com um impulso corajoso, segurou o braço.
– Sabe... sei que não somos tão próximos, mas se precisar de qualquer coisa, conte comigo. – Chris finalmente conseguiu colocar as palavras de sua mente para fora enquanto ela o olhava emocionada. – É que... eu sei que você é forte e durona por fora, mas tem dias que a solidão destrói tudo o que somos por completo. Então, independente dos nossos embates, não quero que se sinta só nesses dias porque eu já estive lá também e sei como isso... – Ele se assustava ao perceber que lágrimas voltaram a cair dos olhos dela. Imediatamente, ele soltou o braço dela e ergueu o polegar para arrastá-lo sobre sua bochecha molhada ternamente. – Ainda prefiro seu sorriso maldoso de quando apronta comigo do que te ver desolada como estava. Isso não combina com a garota mais durona que eu conheço.
– Está bem. – Deslumbrada, Jill tentava se recompor do que tinha acabado de experimentar através daquele discurso, estranhando saber que isso tinha vindo de Chris. – Só... para de ficar me fazendo chorar desse jeito. Eu já disse que odeio ser “adorável”.
– Sou tão convencível assim? – Encarava ela impressionado.
– Talvez. – Admitia envergonhada. – Sei lá, mas algo me diz pra te dar um voto de confiança por hoje. – Completou vendo-o desviar seu olhar embaraçado dela ao levantar a manga da jaqueta para olhar ao relógio. Nisto, ela se lembrou de que ele já tinha dito que tinha um compromisso. Naquele exato momento, ambos visualizaram gotas de chuva batendo no vidro frontal do veículo. – Já vou indo. Não quero chegar em casa ensopada e não quero tomar mais do seu tempo e eu sei que você tem um compromisso agora.
– Na verdade, acho que já parti o coração dela por causa do horário. – Chris a via bater os dentes ao achar que era a causa daquele contratempo e nisto, foi estratégico. – Já que vou chegar atrasado nesse compromisso, que tal se eu te levar comigo como a desculpa perfeita pra eu não ter que ouvir sermão por horas na estrada de uma adolescente tagarela?
– Não me diga que seu compromisso é com a sua irmã? – Jill indagou depois de raciocinar aquelas palavras. – Claire está na cidade? – Ele dramatizava um suspense por segundos.
– Respondendo à pergunta que me fez na cafeteria... – Explicava animado. – Hoje só consegui sair mais cedo porque, como Wesker estava em reunião, Enrico me liberou para buscar Claire no aeroporto da capital. Foi pra isso que Barry me emprestou o carro dele.
– Isso significa que você conseguiu matricula-la naquele colégio renomado da capital?
– Exatamente. – Ele via o sorriso de Jill cada vez mais evidente. – Como as aulas dela só começam no meio de agosto... a Claire vai passar um tempo aqui em casa até lá.
– Nesse caso, é melhor adiantarmos. – Jill voltou a prender o cinto de segurança em si mesma. – Prometo que dessa vez vou te encher de elogios para ela pelo que fez por mim.
– Opa! – Chris religava o veículo. – Agora sim estamos parecendo uma dupla de verdade.
– Nós já somos uma dupla de verdade, Chris. – Dizia retórica e desconfiada. – Mas não é por causa de uma trégua que vamos ser melhores amigos agora. Só estou indo por Claire.
– Não se preocupe com isso. – Chris ligou o rádio do carro com um pensamento específico sobre ela em mente. – Essa é a última coisa que eu iria querer ser. – Sussurrou para si.
MAIO, 2009.
Descansando sobre o peito do homem que amava, Jill não adormecia como ele já havia feito há horas. A chuva continuava incessante do lado de fora, adornando com gotas as janelas. A luz ambiente permanecia fraca e amarelada. Não havia livros de cabeceira para ela se distrair, muito menos um Chris com insônia. Na verdade, ela se alegrava em saber que ele já dormia regularmente. Ao perceber que seu corpo colado ao dele o fazia suar desconfortavelmente, afastou-se dele. Continuava olhando para o teto alto, presa debaixo do cobertor para manter uma boa temperatura corporal em seu corpo de termia instável.
Descendo o olhar para observar aquele novo ambiente que a fazia se sentir em casa, assimilava que ali estava segura e livre. Seus dedos instintivamente tocavam em seu novo pingente enquanto agradecia por aquela segunda oportunidade. Aproveitando a ocasião, Jill sentiu-se tentada a tocar em sua cicatriz sem medo ou mal estar, porque Chris havia aberto sua mente para que ela compreendesse que não havia nada ali além de sua própria pele e com a mão sobre aquela área, fechou os olhos tranquila, já procurando adormecer.
– Isso mesmo, Jill. – Uma voz inaudível dominava sua audição. – Continue executando o plano que eu te ordenei.
Jill abriu seus olhos e erguendo a cabeça, olhou diretamente para o quadro na direção seus pés. Minutos atrás, Jill achava que aquele quadro era apenas um espelho em uma moldura, mas ao observar a imagem refletida ali, podia enxergar uma bela paisagem de um castelo à beira de um penhasco. Nisto, sentiu um completo tremor. Podia jurar que uma silhueta nublada e subliminar do outro lado do quadro a chamava para perto. Tudo parecia ser sonho ou ilusão, mas ao beliscar sua pele percebia que lidava com algo real.
Ao se por de pé, Jill caminhava nua naquela direção, parando diante do quadro paisagístico. Ao apertar seus olhos, visualizava um homem vestido em um sobretudo preto, que usava luvas da mesma cor, mas seu rosto continuava borrado e inacessível. Nisto, se perguntou se a voz monótona e adenoide que a comandou dentro de sua mente tinha vindo daquele homem. Por mais que tivesse tentado identificar de quem era aquela voz, distante e cavernosa como eco, não conseguia deparar-se com um rosto conhecido.
– Você sabe qual é o próximo passo, certo? – Outra vez, a voz soou sussurrada para ela.
Ao procurar a imagem da face do homem no reflexo do quarto, ela o tinha perdido de vista. Em um piscar de olhos, a imagem do castelo em cima de um penhasco desaparecera, dando lugar à um espelho fumê e pode ver o reflexo do Chris adormecido por trás de si.
– Faça isso, Jill. – Escutou novamente a mesma voz de dentro de sua consciência e ao olhar para sua mão direita, podia encontra-la envolvida em uma faca de combate. – Se não fizer isso, eu o mesmo farei através de você. Eu poderia te controlar para sempre.
– Não! Eu sou livre agora. – Respondia silenciosamente furiosa, dentro de sua mente. – Jamais te obedeceria novamente. – Dizia confiante. – Nunca mais vai me controlar de novo.
Ela continuava olhando para o reflexo de Chris adormecido por trás de si atentamente. Mas ainda podia sentir sua mão segurando firmemente a faca que surgiu de súbito ali.
– Isso é uma ordem, Jill. – Uma voz familiar a comandou. – Vamos... apenas finalize isso.
Jill finalmente identificou aquela voz enquanto a imagem do quadro passava a refletir e revelar o rosto do homem de preto bem próximo de si enquanto ele copiava todo movimento que ela fazia. Naquele momento, sem pensar duas vezes, Jill tomou impulso para cravar a faca de sua mão sobre a face de Albert Wesker do outro lado do quadro.
Em segundos, quando realidade a trouxe de volta da visão onde havia se prendido, Jill pode se encontrar diante do espelho que nunca havia sido um quadro. Com o punho fechado e sem uma faca ali, ela estava prestes a socar e acertar o vidro onde certamente o espatifaria e espirraria sobre ela seus cacos. Sua mão direita seria completamente dilacerada com a força do choque que usaria no espelho. Assimilando o que experimentava, Jill, com olhos arregalados, sentia um susto imenso, perdida entre ilusão e realidade. Ainda com o punho erguido, já podia visualizar o espelho refletindo sua própria imagem exatamente onde ela tinha acabado de ver Albert Wesker. Não podia acreditar que tinha acabado de se enxergar no reflexo dele, enquanto ocupava seu lugar.
Esticando os olhos para despertar-se finalmente de seu pesadelo, ela se encontrou de volta na cama, com a mão sobre sua cicatriz. Olhou brevemente para Chris, que continuava adormecido ao seu lado coberto da barriga para baixo e o checou para verificar se havia feito algum mal contra ele. Felizmente, ele dormia roncando alto, sem imaginar a loucura que ela havia experimentado ao seu lado. Colocando-se de pé, imediatamente atravessou o quarto, parando de frente ao espelho para checar se ali havia algum resquício da imagem de um castelo acima de um penhasco. Entretanto, tudo o que via era sua própria imagem.
Em seguida, seguiu para o banheiro e acendendo a luz que ficava acima do espelho, notou que ele refletia intensamente sobre o topo de sua cabeça, evidenciando enfaticamente seus cabelos loiros. Os cabelos que ainda eram motivo de estranheza e incomodo para ela, também eram permanentes e, portanto, nunca mais seriam naturalmente castanhos. Já nasciam loiros, tal quando ela era um bebê e por mais que procurasse se conformar através daquele motivo, tinha um outro motivo que era doloroso assimilar.
O cabelo dela comprovava toda uma utilização de seu corpo como um experimento maléfico à sociedade, toda a falta de liberdade que ela tinha de controla-lo, além de fazer com que ela lembrasse em semelhança ao homem que causou aquilo. Foi amedrontador enxergar-se no mesmo reflexo de seu algoz. Era terrível passar a ter cabelos como o dele.
Apesar de não mais se apegar muito ao estilo de seus cabelos com o passar dos anos, depois de compreender que sua imagem exterior jamais mudaria a mulher dentro dela, algo intrínseco fazia ela se incomodar muito com aquela aparência. Ela não gostava de se ver daquela forma porque no fundo, não queria levar adiante aquele legado de maldade. Ela não queria aceitar aquela herança ou continuar o que Wesker começou, pois sabia que se Chris não a tivesse libertado, continuaria sendo aquela pessoa abominável para sempre.
Enquanto sofria com a crise de identidade, Jill retirou rapidamente misturava a tinta de cabelo comprada, desesperada para voltar a ser morena outra vez, por mais que não pudesse recuperar sua melanina original, muito menos a cor azul celeste de seus olhos agora acinzentados. Em uma última visão no espelho, se via dentro da imagem mais dolorosa na qual já havia se enxergado. Agoniada para alterar sua própria imagem, ela puxou uma madeixa para que pudesse aplicar a mistura ali. Impulsiva e geniosa, ela pode se encontrar fazendo a mesma coisa mais jovem, através de uma lembrança inolvidável.
JUNHO, 1998
O dia exaustivo dentro do novo apartamento de Jill tinha ocorrido devido à mudança de lar que teve de arrumar de última hora. No início da tarde de um sábado ensolarado, ela havia recebido a ligação da imobiliária para que se mudasse imediatamente para o novo apartamento, a fim de não perder a oportunidade de garanti-lo. Nisto, alugou uma camionete e acionou todos os seus amigos mais chegados. Graças aquela ajuda, todos os itens já se encontravam em seu novo apartamento, embora ainda encaixotados e espalhados. O novo apartamento era bem menor do que o apartamento em que vivia antes, mas era bem próximo da delegacia onde trabalhava. Era bom saber que poderia se locomover pelo centro da cidade sem precisar de um transporte ou de carona pra isso.
Depois que todos tinham contribuído para que sua mobília estivesse dentro do novo apartamento no terceiro andar, seus amigos se despediram de Jill já próximo do início da noite. Apenas uma pessoa havia insistido em ficar para ajuda-la com as instalações básicas e ela não esperava menos dele. Chris já montava a base de sua cama enquanto ela finalizava as organizações dos itens da cozinha. Eles, exaustos, conversavam sobre vários assuntos aleatórios para se distraírem do cansaço que sentiam. Quando a fome se tornou uma necessidade urgente, acabaram pedindo uma pizza e a devoraram em poucos minutos enquanto esgotavam cervejas, sentados no chão da cozinha para descansarem um pouco.
Desde a última vez em que se viram atraídos um ao outro na frente da delegacia, Jill tinha prometido a si mesma que não seria bom estar sozinha no mesmo ambiente que Chris. Ambos continuavam sendo muito cordiais e unidos, pois respeitavam a decisão que tomaram naquele dia. Mas uma simples faísca poderia acender neles o desejo de serem que mais amigos. Só deixavam aquele assunto esquecido e adormecido por receio de estragarem o relacionamento agradável e relutavam contra o que sentiam para não deixarem mais situações constrangedoras serem motivos de um possível afastamento.
Quando voltaram para as tarefas pendentes, já era tarde da noite. Após ter organizado os itens no interior de sua geladeira, Jill trouxe uma caixinha de enfeites que costumava prender com imas e adesivos por fora dela. Enquanto voltava a prender suas recordações na porta da geladeira, de repente, encontrou a foto onde estava acompanhada de seu cão.
Após prendê-la em sua geladeira, podia sentir seus olhos lacrimejando. Percebendo o silêncio de Jill, que outrora cantarolava a música que vinha de seu estéreo, Chris se atentou a ela. Não demorou muito para que compreendesse o que estava acontecendo. Ele sabia que, por terem consumido várias cervejas seguidas, Jill já estaria afetada. Ela não era nenhum pouco resistente ao álcool e toda vez que se embebedava, ficava melancólica.
Após chamar seu nome pela terceira vez, sem respostas da parte dela já que parecia desatenta, Chris foi até ela. Chegando bem próximo, notou que os dedos dela tocavam a superfície da foto recém colocada na porta da geladeira. Seu grande amigo havia partido exatamente naquela semana, depois de uma infecção generalizada que desconhecia como tinha deixado aquilo acontecer se era tão cuidadosa com ele. Nem mesmo os veterinários conheciam as causas da fatalidade que havia acontecido tão rapidamente. Apenas alegaram que havia um surto mortal em cães assolando aquela cidade nos últimos meses.
– Eu sinto muito, Jill. – Tirou da mão dela a caixinha e deixando-a sobre a pia, a abraçou, afagando-a. Ao verifica-la, percebia que ela ainda tentava segurar as lágrimas nos olhos.
– Eu só queria que ele pudesse estar aqui comigo também. – Finalmente desabafou voltando a se escorar no peito do homem. – Aqui, eu teria mais tempo para ficar com ele.
– Tenho certeza que onde quer que ele esteja, ele foi muito feliz de ter tido você como amiga. – Chris a afastou para observar o rosto avermelhado dela. – Além disso, ele sabia que eu ia cuidar de você caso ele partisse, então... quando quiser fazer trilha ou caminhar nos parques, conte comigo, tá? – Ele a via assentir. – E também... se quiser correr comigo todas as manhãs, prometo que vou estar lá. Só que não vou ficar latindo para os pássaros.
– Obrigada por tornar isso menos pior. – Soluçava rindo. – Eu ainda tenho você aqui.
– Você sempre me terá. – Ele estendeu seu braço novamente e ela se abrigou ali naturalmente.
Sentindo o cheiro dela, mesmo transpirado, tão próximo a si o fazia suspirar aproveitando-se do momento. Passando sua mão no braço dela em afago, o corpo inteiro dela se arrepiava. Embora ambos, sutilmente e silenciosamente, desfrutassem do sentimento inefável, no fundo da mente deles, tudo o que queriam era se provocarem aos poucos, para saberem até onde podiam chegar naquela noite. Nisto, ele subiu as mãos delicadamente até acariciar o rosto dela, deixando-se levar por seus próprios instintos. Quando ela olhou para cima, ele já a observava, esperando apenas o contato visual que os deixaram fortemente predispostos quando se beijaram. Aquilo novamente acontecia. A faísca já estava no ar há muito tempo, mas o que queriam mesmo era brincar com fogo.
Um segundo beijo implorava para acontecer enquanto a mão dele que, deixando o rosto dela, descia pelo seu corpo e finalmente se prendia em seu quadril para trazê-la mais próximo. Lentamente, aquela mesma mão assanhada buscava o contato com a pele das costas dela, por debaixo da blusa que ela usava, enquanto observava as reações no rosto dela, atentando-se a parar caso encontrasse um sinal de desconforto ali. Mas, ao contrário de uma objeção, ele sentia o corpo dela se estremecer enquanto ela tremulava os olhos, cedendo à uma possível passividade. Olhando obsessivamente para os lábios dele, que naturalmente imploravam para serem devorados outra vez, ela mordia os dela. Ele apenas precisava daquela permissão para seguir adiante e se inclinou. Ambos sabiam que depois daquele beijo, não haveria nenhuma amizade ou norma que os impedisse de ir mais fundo.
– Tudo bem para você se... – Em um tom suavizado que escondia seu nervosismo, quase arrastava seus lábios aos dela. – Se seguirmos com o que está prestes a acontecer?
– Acho que já passamos da linha do limite que impusemos. – Respondia reprimindo-se por dentro. Ignorando seus próprios preceitos, ela decidiu se deixar levar pelo momento e prosseguiu. – Mas por mim, tudo bem... – Via o choque no olhar dele. – Se for só hoje.
– Então acho que é melhor você sair de perto de mim. – Rebatia completamente arrependido do que dizia. – Se voltar a se importar com a maldita linha do limite amanhã, já vai ser tarde demais. – Desanimado, afrouxava o aperto que fazia sobre o corpo dela.
– Mas e se quisermos que isso aconteça hoje? – Ela aproximava mais seus lábios dos dele, que já a evitava para continuar prudente. – Somos adultos. Amanhã a gente esquece isso.
– Não! – Contestou sem pensar muito, segurando firme no quadril dela para afastá-la dele, estranhando a atitude dela que pela primeira vez pareceu imprudente demais para dizer aquelas palavras. – O problema é que eu não vou esquecer. Se a gente continuar o que quer que esteja rolando agora, não vamos simplesmente esquecer isso amanhã porque...
– Somos parceiros, eu sei. – Completou melancólica e ressentida. – Sabe o que é mais lastimável nisso? – Ela o via negar. – Detesto saber que isso é tudo o que sempre seremos.
Ao ouvir as últimas palavras dela, Chris balançou a cabeça em negação ao refuta-la e antes que soltasse completamente suas mãos dela, a trouxe para mais perto e finalmente a beijou por puro instinto, como se quisesse provar para ela que ser seu parceiro era a única coisa que ele não queria “apenas” ser. Dessa vez, mostraria a ela todo sentimento que evitou por anos. Ela triunfava por dentro por saber que usou as palavras certas para vê-lo se permitir da mesma forma em que ela, por fim, deixava acontecer. Inteiramente envolvidos na intensidade do momento, ambos deixavam-se levar enquanto tropeçavam pelas caixas e esbarravam na mobília a fim de chegarem até a cama recém montada.
Esparramando-se sobre ela, ambos rolavam em uma pequena disputa pela dominância. Esperta o suficiente, o deixou ficar por cima dela enquanto suas mãos se prendiam no fim da camiseta dele, para lhe tirar a primeira peça de roupa. Arrastando suas mãos sobre as costas desnudas dele enquanto o sentia explorando descontroladamente seu pescoço, onde se encontrava o cordão que ele a tinha presenteado, Jill começava a entender que o que estavam experimentando era algo íntimo e eletrizante demais para depois voltarem à realidade como se nada tivesse acontecido, tal como ela imprudentemente havia proposto. Percebendo que os lábios dele já se encontravam próximo ao seu decote, sentia suas mãos habilidosamente desabotoarem a calça que ela usava. Nisto, seu autocontrole sobreveio.
– Espera um pouco! – Ela repentinamente segurou o pulso dele com tanta força que suas unhas cravaram ali. – Será um caminho sem volta se continuarmos com isso, não será?
– Por favor, não me diga que, logo agora, sua prudência decidiu voltar pro seu corpo. – Apertava os olhos em desprazer. – Acha que devíamos parar antes de irmos mais longe?
– Não, eu não quero parar. – Jill reparava um alívio exagerado no rosto de Chris e estendendo suas mãos para ele, a ajudou a se por de pé. – Eu só preciso de um tempo, tá?
Evitando encará-lo, Jill correu para o banheiro e se olhava no espelho para colocar a mente em ordem. Ela, sozinha, precisava de um auto encorajamento para retornar para Chris. Sabia que se pedisse a ele uma ajuda para encontrar o tal encorajamento, seria uma trapaça consigo mesma, já que no primeiro argumento raso que ele desse, já lhe daria motivos de sobra para que ela se entregasse aquela chance. Enquanto tentava imaginar o que poderia estar acontecendo, se ela não tivesse deixado a cama para se esconder momentaneamente no banheiro, sentia seu coração disparar e isso era um sinal de que ela era muito vulnerável às caricias dele e tudo o que precisava era tomar uma atitude. Estava agindo como uma inexperiente, quando seus pensamentos não se assemelhavam a de uma.
Sua frequente indecisão era sua maior inimiga aquela noite. Estava dividida em dois caminhos e receava optar pela escolha errada. Temia acabar arriscando um relacionamento sólido, que era a coisa mais importante que havia construído no último ano como também tinha medo de negá-lo e perder de experimentar a oportunidade de deixar acontecer algo mais intimo entre eles. Ela só não queria arruinar a parceria que tinham e não queria que aquilo os apartasse para sempre, porque não queria perdê-lo. Nisto, concluía que, certamente, já estava perdidamente apaixonada por seu parceiro.
Após despir-se para analisar-se melhor, estando apenas com roupas íntimas, se viu um pouco decepcionada consigo mesma. Todas as mulheres com quem Chris já tinha se envolvido que conhecia eram atraentes e sedutoras, portadoras de uma imponência ofuscante. Já Jill era sempre muito despojada e relaxada em comparação a elas, por mais que tivesse um corpo esbelto. Faltava nela uma postura, algo que tinha que vir de dentro. E a maioria delas também tinham uma coisa em comum que Jill sabia que Chris provavelmente poderia apreciar em uma mulher, algo que ela jamais se permitira ter, mas naquele momento de loucura e impulsividade, podia jurar que tinha chegado a hora de fazer isso acontecer. Logo, procurou uma escova. Soltando os longos cabelos, os penteou. Quando seus olhos encontraram a tesoura, lembrou-se daquela manhã no salão de beleza.
– Como quer cortar seu cabelo hoje, docinho? – A dona do salão, por trás de Jill, a olhava através do reflexo do espelho. – Será que teremos alguma surpresa da sua parte?
– Só as pontas, Ruth. – Jill replicou, arrancando doces risadas da simpática cabelereira.
– Tudo bem, sem surpresas por hoje. Mas você tem motivos de sobra pra sempre escolher isso. Seu cabelo é belíssimo! – Ruth comentava passando as mãos sobre os longos cabelos. – Uma pena saber que eles sempre estão presos por conta do seu trabalho, né?
– Sim. – Jill olhava sua própria imagem. – Por mais que eu já tenha pensado em deixa-los curtos por causa disso, acho que não tenho tanta coragem para uma mudança radical.
– Mas deveria. – A cliente sentada à poucos centímetros de Jill abaixou a revista que lia e olhou para ela, ao seu lado. – Você ficaria lindíssima com cabelos bem curtos, moça.
Havia uma mulher de óculos escuros redondos que estava sentada a poucos centímetros de Jill, folheando uma revista no aguardo de seu atendimento, já que havia chegado poucos minutos depois dela. Seus cabelos eram pretos e lisos. O decote do vestido vermelho colado ao corpo que usava era bem evidente. Ela conseguia chamar a atenção de qualquer pessoa a sua volta. Fechando a revista ao invadir aquela conversa, ela mantinha seu olhar sobre Jill, analisando-a constantemente, de cima a baixo.
– E você srta. Wong? – Ruth questionava à mulher exuberante enquanto percebia os finos fios que se encontravam na altura dos ombros dela. – O que vai querer essa semana?
– Um novo corte. Um pouco mais curto dessa vez. – A voz aveludada da mulher em questão era intensamente sedutora, tal como sua postura. Do espelho, ela mantinha os olhos em Jill. – Não gosto de cabelos longos porque não me dão a confiança necessária para trabalhar em algo tão complexo quanto o que estou lidando. Sem ofensas, querida.
– Desculpe a intromissão, mas... – Jill a questionava percebendo que Ruth já tinha começado a manusear a tesoura nas pontas de seus cabelos. – No que você trabalha?
– Numa investigação, um estudo de caso. – A mulher removeu os óculos revelando seus traços asiáticos. – Já você, pela sua postura e pelos cabelos sempre presos, é policial?
– Policial do esquadrão de elite. É da força tática. – Ruth respondia orgulhosa por Jill, antes que pudesse dizer algo. A mulher misteriosa, impressionada, mordia uma haste dos óculos. – Essa garota aqui é uma heroína da cidade, mesmo que odeie receber elogios.
– Admirável! – A mulher parou de olhar para Jill para voltar-se à revista. – O que seria da segurança desse paraíso de cidade sem os policiais patrocinados pela Umbrella.
– Por que você acha que um estilo de cabelo pode fazer diferença com o que trabalha? – Jill insistiu intrigada, olhando para a mulher enigmática que parecia deter um bom conhecimento local. – Acho que esse fator não interfere em nada numa investigação.
– Realmente, não interfere em nada pra você, já que suas investigações são amparadas pelo governo local. – Rebatia atenciosamente. – Mas para pessoas como eu, os amadores que trabalham sem uma insígnia, a imagem é muito importante. As pessoas tem certa tendência a venerar e corresponder às pessoas confiantes. Eu acho que consigo demonstrar isso já começando pelo meu visual. – Ela ria despretensiosamente. – Mas não me leve a sério, isso é só um achismo. Isso é tudo uma teoria boba da minha cabeça quase sempre desocupada. Na verdade, você tem que se olhar no espelho e gostar do que vê. – Ela encarava intimidante a Jill, que já analisava sua própria postura. – Você gosta do que vê em você mesma, policial? Acha que transmite sua autoconfiança desse jeito?
Jill sorria, escondendo sua real resposta para si. Enquanto olhava de vez em quando para aquela mulher confiante, se perguntava sobre seus próprios seus cabelos longos no espelho. Os cabelos da mulher ao lado realmente demonstravam uma imponência para a imagem dela, enquanto para Jill, seus cabelos longos a deixavam inofensiva demais.
Quando cortou habilidosamente a última mecha longa de seu cabelo enquanto se lembrava da conversa que tivera mais cedo com a mulher desconhecia, Jill finalmente parou para se analisar no espelho. Percebendo que o que tinha feito era irreversível, sentiu um curto arrependimento. Tudo o que a mulher lhe disse naquela manhã parou de fazer sentido quando ela entendeu que fez aquilo porque foi influenciada por fatores externos e não por si mesma. Afinal, não seria aquilo que mudaria algo em sua carreira ou destrezas ou que a transformaria em uma pessoa mais confiante ou destemida, muito menos arrancaria a insegurança dos seus traços de personalidade. Ela ainda continuaria sendo a mesma, por mais que tentasse fugir de um estereótipo ou mudasse mil vezes seu visual.
Envergonhada de seus atos, começou a rir de si e do que tinha feito enquanto acusava sua própria mente de ter sido tão fraca quando não costumava ir pela cabeça dos outros. Ao perceber o que tinha feito, temia sair do banheiro e encontrar Chris. Ficava imaginando qual seria sua reação ao vê-la de cabelos curtos por causa de um surto causado por ter tentado ser imprudente pela primeira vez depois de anos. Seu corte não tinha ficado tão ruim aparentemente, mas a deixava bem diferente. Ela parecia quase irreconhecível por poucos segundos. Enquanto ainda se analisava, ouviu batidas na porta e se apavorou.
– Jill, está tudo bem aí dentro? – A voz de Chris era impaciente, mas preocupada.
– Sim. – Ela recolhia todos os seus cabelos do chão e os guardava rapidamente em uma sacola, enquanto gargalhava silenciosamente de ansiedade. – Só um minuto, já vou sair.
– Olha, me desculpa. – Alegou depois de perceber que Jill hesitava em abrir a porta e que se mantinha silenciosa. – Eu acho que eu me precipitei um pouco e eu sei que você já deve estar arrependida porque trabalhamos juntos. Eu sei que você tem uma certa insegurança de se relacionar no ambiente de trabalho por causa do babaca que quase arruinou sua carreira militar... – A voz dele soava embaraçada. – Eu também sei que você está tentando proteger nossa parceria e que não quer perder o que temos... nem eu quero! Eu juro que foi a última vez que vou deixar isso acontecer entre... – Ele travou-se por alguns segundos enquanto Jill destrancava a porta e do nada, decidiu voltar atrás. – Mas se quiser continuar onde estávamos é só esquecer a baboseira que eu acabei de diz...
Antes que ele pudesse continuar sua fala, Jill abriu a porta e Chris se calou boquiaberto ao vê-la de uma forma na qual ainda não tinha a visto antes. Havia uma mulher completamente diferente no corpo da colega de trabalho que estava acostumado a ver diariamente. Era uma versão dela que ele só tinha visto em sua mente e isso o deixou abobalhado e maravilhado ao mesmo tempo em que receoso e confuso. Jill estava incrivelmente linda. Ele podia jurar que estava diante de uma deusa. Seus olhos subiam e desciam do pescoço para baixo enquanto sua mente viajava em imaginações indecentes involuntariamente. Seu rosto exibia um completo fascínio enquanto se sentia intimidado.
– Seja sincero, mas não rude! – Ela se esquecia completamente que estava só com roupas íntimas porque sua mente estava focada na aprovação do cabelo. – Gosta do que vê?
– Se... – Ele engolia seco enquanto tentava voltar a focar apenas no rosto dela. – Se você ainda quiser manter nosso relacionamento como está a tempo, é melhor se vestir agora!
Os olhos dela se arregalaram quando se deu conta do que tinha acabado de exibir e fechou a porta imediatamente. Após verificar as minúsculas peças que cobriam seu corpo, ela se sentiu em profundo constrangimento enquanto seu rosto se mantinha corado por minutos. Saber que ele a tinha visto daquela forma podia ser o sinal que ela precisava para deixa-los seguir em frente sobre o que pretendiam naquela noite, mas algo nela insistia que, por se tratar exatamente de Chris, não aceitava que uma intimidade entre eles fosse apenas como uma noitada qualquer. Não quando eles pareciam ter sentimentos um pelo outro.
Após vestir-se novamente, ela ainda não tinha coragem para pisar do lado de fora, mas sabia que teria que fazer aquilo uma hora ou outra. Vestida com a calça e a blusa de antes, deixou o banheiro. Ela já estava mais disposta a explorar os sentimentos em uma conversa franca do que experimentar os prazeres de uma atração carnal que, no fundo, também ansiava. Encontrou-o distraído, apoiando-se na lateral da janela com seu antebraço, onde ali deitava sua cabeça pensativa enquanto fumava e lançava a fumaça para o lado de fora, ao observar a rua. Ele já tinha se vestido com a camiseta. Sentindo-se constrangido e preocupado com o futuro do relacionamento estimado, lamentava ter dado um fim no que estava prestes a acontecer enquanto torturava-se na lembrança da Jill que acabara de ver.
– Consegue apagar o que viu de suas memórias? – Aproximou-se dele que a evitava enquanto já apagava seu cigarro. Depois de alguns segundos, finalmente olhou para ela com pesar ao balançar a cabeça em negação. – Me desculpa. Eu estava tão distraída com esse cabelo... – Sentia um cheiro específico no ar. – Você sabe que eu odeio esse cheiro!
– Eu sei. – Ele riu contido lançando a bituca pela janela com um peteleco. – É que eu tive que tomar uma decisão sobre o que estava prestes a acontecer, então... espero que entenda.
– Sobre aquela loucura? – Jill se sentia frustrada por dentro. – Foi uma estupidez mesmo.
– Sabe... – Chris parou na frente dela. – Um dia, nós não vamos mais trabalhar juntos na delegacia. Quando isso acontecer, não vou pensar nas consequências como acabei de fazer, sabendo que você jamais voltaria a me beijar depois do cigarro. – Ele riu em auto piedade enquanto ela se constrangia risonha. – Que isso fique bem claro para você, Jill.
– Bobo! – Exclamou risonha, percebendo que ele mal se importava com seu cabelo. Nisto, se afastou desapontada e sentou-se na beirada da cama com um olhar perdido e confuso.
– Mas, se queria saber sobre o novo cabelo naquela hora, você está linda. – Ele a admirava sentando-se ao seu lado na cama. – Na verdade, eu particularmente prefiro de moças de cabelos longos. – Jill travou por uns segundos, silenciosamente esmorecida. No final, ela forçou um sorriso que ele retribuiu imediatamente, passando a mão nos cabelos curtos dela, para prendê-los por trás da orelha visível. – Mas, você está me fazendo mudar de ideia. – Confessou. – Quer me contar o que fez você tomar essa decisão radical do nada?
– Nem eu mesma sei o que houve. – Ela olhava para suas unhas. – Na verdade, acho que foi um sinal. Acho que a vida está me forçando a mudar. Primeiro, perdi meu cão. Depois, mudei de casa. Agora cortei meu cabelo. Sem contar que fui eu que comecei o que a gente quase... enfim. – Admitiu constrangida. – Se não for isso, estou começando a enlouquecer.
– Não, Jill. Tudo bem se quiser mudar um pouco. – Chris ria do rosto embaraçado dela. – Inclusive, se quiser continuar onde estávamos, acho que ainda posso te ajudar com isso.
– Não dá mais. – Rolou os olhos com a piada. – Você estragou tudo com o maldito cigarro.
– Acho que essa é a decisão certa e definitiva sobre nós... por enquanto. – Ele garantia. – Assim como você se decidiu sobre os seus cabelos. – Ele a via hesitar enquanto suas mãos corriam sobre os curtos fios. – Pela sua cara, acho que se arrependeu da decisão, não foi?
– Eu não estou arrependida... – Revelava. – Só não quero que esse novo visual me mude.
– Só por causa dessa indecisão, já deu pra notar que você não mudou em nada. – Arrancou um sorriso de canto dela. – O importante é saber que, de cabelos longos ou curtos, você nunca vai deixar de ser a Jill Valentine que todos amamos e admiramos. O que faz você ser você está bem aqui e aqui. – Apontava respectivamente para a têmpora e na direção do peito dela. – Isso nunca vai mudar em você. É o que mais admiro da sua originalidade.
– O cérebro e o coração? – Provocou-o para ouvi-lo mais, mesmo compreendendo a ideia.
– Eu me refiro à sua mentalidade, que faz de você forte e durona. – Pontuava enquanto a via continuamente atenta. – Ao mesmo tempo em que admiro sua entrega e seu coração altruísta. Ademais, também gosto dos seus olhos porque me decodificam você. – Admitia tímido. – Minha opinião final sobre isso é que ninguém é igual a você. Esse é o seu poder.
Ela olhava para ele encantada, conseguindo compreender que ele realmente não era insensível. Sua sensibilidade estava naqueles pequenos momentos, apenas para um grupo seleto de pessoas. Pessoas que ele gostava de verdade. Ali, ela pode imaginar que com a maturidade, Chris seria cada vez mais o homem ideal para ela. Tudo era uma questão de tempo e ela sabia que jamais perderia de vista o homem mais interessante que já conheceu na vida. Afinal, ambos já se pertenciam muito antes do pingente surgir em seu pescoço.
– Mas me diz... – Ela o cutucou antes que o clima pendesse para o lado mais romântico e todo aquele jogo começasse outra vez. – Tem certeza que gostou desse meu novo cabelo?
– Eu já te disse que você é linda de qualquer jeito. Além disso, nunca mais vou me esquecer do dia em que você me apresentou seus novos cabelos curtos. – Chris podia ver nitidamente a imagem dela seminua em sua mente enquanto ela escondia seu rosto corado no ombro dele, rindo de si. – Foi uma bela apresentação, Jill. Jamais me esqueceria disso.
MAIO, 2009
Antes que pudesse aplicar a mistura na mecha que segurava com mão tremula, a lembrança de sua mente fez com que ela chegasse a uma conclusão. No fundo de seu olhar enquanto se observava diante do espelho, Jill pode enxergar na pessoa que via, a mesma de anos atrás. As indecisões de mudanças radicais mescladas a vontade de mudar era um traço típico de sua fiel personalidade. Assim, ela pode enxergar a si mesma naquela imagem. Aquelas memórias revelaram a ela que independente de seus cabelos se encontrarem diferentes, ela conseguia se deparar com a mesma pessoa de antes e essa essência estava dentro dela. A essência que o homem que a amava tanto admirava em si.
Após um longo suspiro, ela tomou uma atitude pensada. Diferente da moça imatura de suas lembranças, abriu a torneira e acabou despejando ali todo o conteúdo da tinta ralo abaixo. Observando a porcelana da pia formar uma poça amarronzada, via a oportunidade de mudar sua aparência indo embora e a oportunidade duma auto aceitação se achegando.
Ela não deixaria Wesker tomar tudo o que pertencia a ela, principalmente seu corpo outra vez, através de sua nova imagem. Por isso, optou por se permitir ser loira, não como consequência de seus experimentos ilegais, mas porque sabia que nenhum desses aspectos externos mudaria a pessoa que ela era por dentro. Wesker nunca mais teria acesso ao seu corpo, ele jamais a controlaria outra vez. Seu peito estava livre de aparelhos e sua mente estava livre de comandos. Seria loira agora porque esse era o fenótipo que seu corpo apresentava, depois de ter sobrevivido ao período mais infernal de sua vida.
Por mais que ainda temesse se assemelhar fisicamente com Wesker, entendia que jamais seria como ele. Havia nela a responsabilidade de estar no controle de si mesmo, tal como o homem que a resgatou enfatizava a ela. Como havia dito outrora, era daquela forma que Chris a encontrara finalmente. Logo, compreendia que aquele cabelo era o maior símbolo de superação na qual havia lidado, pois encontrou liberdade mesmo estando daquele jeito.
Deixando o banheiro, admirava Chris dormindo tranquilo. Naquela madrugada, o apartamento estava gelado e logo ela notou que precisava usar algo para se cobrir. Indo até o cabideiro, vestiu-se com o sobretudo. Aproximando-se de Chris, ela subiu o cobertor até a altura de seu pescoço, mantendo-o bem aquecido. Nisto, percebia que o sono dele permanecia pesado e tinha motivos para aquilo, afinal ela o gastou quase a noite inteira. Lembrava-se de como ele a amou naquele momento, como ele conseguia demonstrar sua importância e admirava a habilidade que ele tinha de ainda fazer com que ela sentisse seu coração flutuar, como flutuava nos anos dos primeiros beijos. A faísca ainda era presente.
Naquela noite, ela se sentia como aquela moça que tinha acabado de experimentar o sentimento que por anos tentou evitar, por não acreditar no amor antes de conhecê-lo. Antes de Chris, todos os homens que passaram por Jill nunca pareciam se importar tanto com ela, como ele fazia quando ela ainda nem o pertencia. Eles apenas a tinham como um troféu comprado. Chris a mostrava que ela não era aquele simples troféu porque sua luta por ela nunca chegaria ao fim. Para ele, ela era um ganho muito maior, algo inestimável e inalcançável que ele estava disposto a lutar até o último dia de sua vida, como fazia desde quando ainda tinham sentimentos platônicos. Com o passar dos anos, ele a provou que havia se tornado o homem maduro que ela, visionária, acreditou um dia.
Passando suas mãos delicadamente sobre sua ferida quase inteiramente cicatrizada, lembrou-se que, tal como Chris havia arrancado aquele aparelho de seu colo, também havia encorajado ela a não temer mais estar presa em um controle. Com todo seu amor, tanto professado como expressivo, Chris a fez compreender que ela estava livre outra vez. Aquela ferida simbolizava que ela havia sido amada de qualquer jeito ou forma por ele.
Jill ainda tinha muito para contar para ele, mas ainda não estava pronta para falar sobre aquilo. Tinha seus crimes para confessar, sentimentos para desabafar, memórias para tentar esquecer e contas para acertar, por mais que absolvida por todos pelos motivos óbvios. De alguma forma, um dia ainda queria compensar todo o mal que seu corpo involuntariamente fizera enquanto ela não o controlava e sabia que esse dia ia chegar. Mas isso nunca aconteceria naquela noite. Apenas quando ela estivesse preparada. Tudo o que ela precisava entender por hora era que estava livre. Aquele era o primeiro passo.
Ela aproveitou do silêncio da madrugada para vasculhar suas antigas coisas e explorar mais ao redor. Acabou encontrando produtos de sua preferencia, tal como Chris conhecia bem. Se deparou com pertences nas quais já tinha esquecido que tinha adquirido e até mesmo itens novos que passou a conhecer. Observou seus livros todos bem organizados como ela costumava deixar. A decoração de suas coleções estava em perfeito estado.
Aos poucos, aquele novo lar a abraçava. Ela se permitia apegar-se ali, apreciando a quantidade de janelas. Eventualmente, ela parava para observar as ruas iluminadas, diferente dos anos de laboratório que enfrentou sem ver a luz do sol. Nem mesmo no hospital era possível ver o nascer do sol devidamente. Uma ansiedade crescia nela pela ânsia de ver pela primeira vez a luz do nascer do sol, mas tinha que aguardar mais alguns minutos para isso, afinal ainda se utilizava das luzes da casa para clarear o ambiente.
Logo, seus olhos se depararam com o piano. Um pouco mais destemida de se aproximar, se achegou a ele encontrando sua pasta de partituras repousada sobre sua superfície. As partituras estavam intactas dentro da pasta. Ela sempre se impressionava com a maneira na qual Chris havia lidado ao preservar cada singelo pertence dela. Folheando páginas, encontrou tantas músicas que amava e recordou-se da última vez em que lidou naquela pasta. Lembrou-se de ter gravado You’re my Sunshine ao trabalhar junto à Parker na Itália.
Nisto, pode se recordar da época onde sua vida ativa na BSAA era cansativa, mas satisfatória. Por mais que quase não tivesse tempo para tocar músicas, para ler livros ou mesmo para descansos quando o trabalho se intensificava, era um prazer saber que trabalhava para assegurar o mundo de não correr perigos, tal como optou por salvar vidas quando mais jovem. As pessoas que resgatou, as vidas que salvou, o mundo que protegia era o que fazia ela entender que dentro dela, aquela Jill estava viva e que estava pronta para qualquer nova missão caso acionada, mesmo debilitada. Afinal, foi assim que ajudou a derrotar seu maior inimigo e isso lhe dava um ótimo sentimento de dever cumprido.
Contudo, no fundo sabia que tudo tinha que passar pela permissão do tempo. Afinal, outro chamado surgia naquele momento em sua mente, dez anos depois de firmar um compromisso com Chris contra à causa que os atormentava: a vontade de cuidar do lar. Queria aprender a ter uma moradia fixa e principalmente ter tempo para desenvolver suas novas habilidades domésticas. Automaticamente, aceitava a ideia de que os meses de recuperação que estavam por vir não seriam tão ruins, apesar de sentir muito ter que emprestar seu parceiro naquela causa. Afinal, ela sabia que ele não conseguiria parar em casa por muito tempo, como tanto dizia que ia fazer. Ela o amava e o conhecia bem para deixa-lo exercer livremente as missões e operações que tanto gostava de se envolver.
Ao posicionar as folhas da música em questão diante do piano, ela começou a teclar levemente sobre o piano. Quanto mais leve pressionava as teclas, mais o som saia baixo, já que não queria abusar do horário. Ela tocava pela primeira vez em anos com liberdade, sabendo que jamais voltaria a tocar para abrir as portas das mansões maléficas e por isso não tinha mais receio de tocar. Agora tinha uma casa mais bonita para encher de música.
Naquele momento, enquanto ouvia o som melódico advindo do corredor, enquanto a porta do quarto estava aberta, Chris acordava com a música que vinha do lado de fora. Quando desperto, suas mãos instintivamente apalpavam o lado direito da cama em busca da mulher que estava ali quando adormecera. Por um momento, precisou tomar fôlego enquanto assimilava que a realidade já não era mais cruel com ele.
Jill não estava ali, mas podia sentir sua presença através das notas do piano. Em algumas noites de insônia, ela tinha o costume de se dirigir aquele instrumento e era para lá que ele se dirigiria imediatamente. Alcançando a calça próximo aos seus pés, sorria ansioso para ver aquela cena e se vestia depressa para encontra-la dentro de casa, finalmente.
Quando seus sentidos lhe informaram que ela já não se encontrava mais só no ambiente, Jill soltou o piano em pavor, sentindo um curto calafrio. Era apenas um pavor desnecessário, provocado pelos traumas de seu encarceramento recente. Prevalecendo-se sobre o mal estar que experimentava, logo sentiu as mãos de Chris sobre seus ombros. Em seguida, sentiu-o cheirando seu pescoço e por fim depositando beijos em sua área de maior sensibilidade. Depois de acarinha-la, ele se escorou no instrumento enquanto a assistia voltando a tocar novamente. Ao finalizar a última estrofe, cessou seu teclar e se soltou do instrumento. Ainda sentada sobre o banquinho, observava-o quase emocionado.
– Não sabe quantas vezes eu ouvi esse solo nesse meio tempo. – Ele escondia o bocejo com uma mão. – Eu sonhava com o dia em que te veria aqui de novo, sobre esse piano.
– Eu te torturei muito com aquele áudio, não foi? – Jill escondia um descontentamento.
– Na verdade, não. – Admitiu. – Desde que você surgiu na minha vida, o ambiente se encheu de música. O silêncio me matava aos poucos quando você partiu. Por isso, ficava reprisando aquela playlist. Era meu alento enquanto não te encontrava, uma parte de você.
– Não acredito que gostava tanto de ouvir aquilo. Foi tão improvisado. – Ela corava se lembrando do dia em que selecionou aquelas músicas. – Na verdade, eu achava que você nunca pararia para escutar aquela playlist. Foi o presente mais bobo que eu já te dei.
– Cada pequena coisa que você me deixou se tornou algo precioso. – Estendeu a mão para guia-la para mais perto e a envolveu em um abraço apertado. – Senti muito sua falta, Jill.
– Posso te perguntar uma coisa? – Ela lançou depois de uma curta ponderação e o esperou concordar. – Quando você me encontrou ali, ao lado de Wesker... o que passou em sua mente? Digo... e se realmente eu quisesse estar do outro lado... como você reagiria a isso?
– Eu te tomaria de volta da mesma forma que fiz. – Contestou prontamente. – Você nunca deixou de pertencer a mim. Na verdade, você nunca foi dele. O que quer que ele tivesse feito, não hesitaria em te recuperar de volta. Você era a minha missão naquele dia.
– Mas e se eu não voltar a ser como era antes? – Afastou-se para encará-lo, ainda envolvida por ele. – E se eu, sem querer, mudar quem sou... o que acontece com a gente?
– Eu amo você. – Declarou firmemente, com uma voz densa. – Qualquer você. É como te disse um dia, no dia que você cortou os cabelos no banheiro e do nada surgiu seminua na minha frente pela primeira vez. – Eles compartilharam um sorriso emocionado pela lembrança. – Isso aqui e isso aqui... – Respectivamente tocava em sua têmpora e em seu peito. – Nunca vai mudar. Quando você despertou daquela prisão mental e olhou nos meus olhos, tive certeza que essa parte de você estava intacta. Você é a mesma pra mim.
– Como tem tanta certeza disso? – Ela questionou depois de ponderar por segundos.
– Eu preciso que confie em mim. – Desceu seu olhar até a cicatriz exposta e mirou-a. – Eu só preciso entender o que se passa na sua mente sobre os traumas que isso aqui te causou. – Usou a deixa. – Não quer me contar o que está escondendo de mim sobre isso?
Jill mantinha um silêncio misterioso, olhando para cada detalhe do rosto dele, enquanto lentamente ele voltava a encara-la olho no olho. Ela separou os lábios enquanto sua mente se lembrava da primeira vez em que seu corpo foi forçado a eliminar uma família inteira, infectando-os com o parasita letal que os matou em questão de segundos. Esse era apenas um dos golpes mais dolorosos que teve de executar, afinal foi o seu primeiro assassinato. Foi aquilo que separou a Jill do passado com a Jill atual. Fechando seus olhos para afastar a memória que a condenaria para sempre, lembrava-se das dores que sentia em seu corpo quando tentava desobedecer às ordens de seu controle mental. Com isso, ela prendeu bem os lábios juntos enquanto o virava sua cabeça para o lado no intuito de ignorá-lo, sentindo pena e vergonha de si mesma por tão ter resistido o bastante para salvar aquelas vidas.
– Ainda não me lembro bem. – Gaguejava. – Ainda preciso organizar meus pensamentos. – Respirava fundo ao segurar sua cabeça. – Está tudo muito bagunçado aqui dentro.
– Eu entendo. – Ele a envolveu ao perceber que lágrimas surgiram no fundo de seus olhos.
Naquele momento, Chris entendeu que tinha sido muito severo com ela ao questioná-la mais uma vez sobre aquela particularidade. Certamente insistiria em saber mais sobre aquilo, mas não enquanto não estivesse pronta para contar. Todas as vezes em que ela apresentava aquela reação, como se escondesse da visão dele, ele sabia que ela apresentava uma agonia interna, uma dor que não queria compartilhar por hora. Isso era um aviso para ele se preparar para as consequências do dia em que ela finalmente desembucharia os duros relatos e não deixaria ela experimentar isso naquela nova manhã.
Em seguida, o telefone de Chris tocou. Deixando um beijo sobre a testa dela, ele seguiu até o quarto a fim de alcança-lo. Nisto, Jill observou na janela que o dia já estava claro e seguiu até a sacada. O céu apresentava um azul claro cheio de serenidade para seus olhos que apreciavam a vista. Ao colocar a mão sobre o parapeito, a lembrança do dia em que quase perdeu a vida no descuido de se sentar sobre ele lhe veio à mente, fazendo-a balançar a cabeça de um lado para o outro em desaprovação. Mas nisto, ela notava algo diferente. Para ela, que sempre teve medo de altura, olhar para baixo não era mais motivo de medo e sim de superação. Ela adorava a sensação de coragem que sentia naquele momento. Ela tinha acabado de enfrentar aquele medo cara-a-cara com ele e venceu.
– Eu detesto te ver tão perto do perigo. – A voz de Chris chegou aos ouvidos de Jill, que saindo de sua distração, virou sua cabeça na direção dele com um sorriso amarelado.
– Está tudo bem. – Ela o via se aproximar dela com uma coberta sobre seus ombros. – Eu tenho total controle do que estou fazendo. – Afirmava ao se aninhar nele, abrigando-se dentro de seus fortes braços enquanto admiravam o horizonte de Manhattan já aquecidos. – Era sobre a proposta? – Jill o questionou sem olhar suas expressões, mantendo seus olhos nos primeiros raios de sol que já eram visíveis, diferente do dia nublado de ontem.
– Era... já estão começando a me pressionar por uma resposta. – Confessou chateado. – Tenho que dar uma resposta definitiva hoje, mas ainda não me sinto preparado pra isso.
– Para ser um capitão? Chris, por favor... – Jill soltou um riso. – No fundo, acho que você sempre foi meu capitão, sabia? Um dos melhores. – Ela reconhecia orgulhosa. – Um verdadeiro capitão se importa com seus liderados. Eu só estou aqui agora por esse motivo.
– Você sabe que sempre foi a minha primeira prioridade sobre tudo e todos, Jill.
– Não estava me referindo a isso quando me coloquei como exemplo. – Ela o contestou protestante. – Você se importa com os demais, muitas vezes se importa mais do que consigo mesmo. Essa é a melhor qualidade de um líder. Verdadeiros lideres se importam com os liderados porque são essas pessoas que fazem o ótimo trabalho. Apenas por esse motivo, eu adoraria te ver como um capitão. Você sempre foi uma inspiração aos demais.
– Aprecio suas palavras. – Chris deixou um beijo no topo da cabeça de Jill. – O que eu temo é... se eu aceitar a proposta, não poderei trabalhar mais com você. Claro que tenho até o fim do ano para me preparar para esse novo posto ficando aqui por Nova Iorque e nesse caso, ao seu lado. Mas eu queria que você estivesse ao meu lado novamente... caso eu cometa alguma falha. – Confessou timidamente. – São dez anos trabalhando junto com você. Eu entendo seu estado, mas... eu vou ficar completamente perdido sem você nessa.
– Ah, se eu pudesse te acompanhar nessa, iria com certeza. Mas preciso me recuperar para isso. – Jill olhava com expectativa o sol morno subindo lentamente no horizonte. – Mas pensando por uma boa ótica, quando você voltar para casa depois de uma missão exaustiva, vou estar aqui esperando você. Assim, você sempre vai ter um motivo pra buscar fazer tudo certo dessa vez. Pra que você consiga voltar para casa... voltar pra mim.
– Como eu senti falta dos seus contra-argumentos otimistas nas situações adversas. – Chris contemplava o nascer do sol sentindo o cheiro natural da mulher ao roçar seus lábios sobre seu pescoço e subiu até seu ouvido. – Tem mais algum guardado aí? – Ironizou.
– Tenho vários. – Ambos gargalhavam juntos. – Então... não acha que seria motivo de honra passar pra frente o legado que firmamos numa sacada, como a que estamos agora?
– Olha, essa foi muito boa. – Afirmava impressionado ao percebê-la bem descontraída.
– Então, olha essa... que tal treinar uma nova geração de “Chris e Jill” sedentos por trabalharem em prol de proteger esse mundo da insanidade dos gananciosos? – Indagava.
– Está bem, já chega. – Admitiu ao envolve-la em gratidão por saber que no fundo já podia contar com a opinião dela sobre seus projetos novamente. – Vou aceitar a proposta.
– Sabe... eu daria tudo pra estar com você nessa. Já que não posso fazer isso agora... faça isso por mim. Por nós. Pela nossa história. – Jill concluía orgulhosa de suas contribuições.
O silêncio contemplativo dele era uma forma de concordar com ela a ponto de ficar sem palavras. Ambos olhavam o nascer do sol silenciosamente enquanto se sentiam amparados pelo toque um do outro. Enquanto os olhos de Jill admiravam o nascer do sol pela primeira vez em anos, ela sentia gratidão e pela primeira vez, liberdade. Contemplando o sol se estendendo na imensidão, começou a cantarolar baixinho You’re my Sunshine enquanto suas boas memórias indelevelmente começavam a sobrepujar sobre as ruins. Como a chuva do dia anterior, o raio de sol tinha o efeito de desnublá-la.
Jill não se sentia mais a pessoa ruim que se assistiu ser porque nunca foi aquela pessoa. Ela era de boa índole, tinha caráter e tinha recuperado e ganhado a confiança de ser ela mesma. Suas mãos tremiam de emoção enquanto seus olhos com lágrimas contidas admiravam a imensidão de um céu azul sobre as árvores do Central Park que pareciam um longo tapete esverdeado de onde olhava. No fundo, comparava aquela paisagem tão deslumbrante com a mesma visão do mirante das montanhas Arklay e sentia que a vida tinha voltado a ser tão bela quanto ver campos verdes sob um céu azul em Raccoon City.
Ao finalizar a canção, olhou para trás e pode encontrar o homem que a resgatou da morte quando ainda estava viva. Pode sentir que ele também tinha viajado no tempo com a música pelo sorriso nostálgico que demonstrou ao devolver o olhar para ela. Tudo o que podia constatar e expressar era gratidão por tudo o que viveram e que ainda viveriam juntos, graças a segunda chance que a vida dava para ambos vivenciarem um novo tempo.
– De alguma forma, esteja onde estiver, eu estarei do seu lado, como sempre estive. – A mão de Jill segurava firmemente no pingente preso ao seu pescoço enquanto escorava sua cabeça em um dos ombros dele. – A gente sempre volta um para o outro, parceiro. – Seus olhos marejavam ao encara-lo e dessa vez ela o deixaria ver o quão adorável ela era quando deixava suas lágrimas rolarem em sua face. – Obrigada por nunca desistir de mim.
– Nunca deixaria com que levassem meu raio de sol embora. – Chris parafraseou a música que tinha acabado de ouvir em resposta à sua parceira... a pessoa a quem mais confiava.
- - -
“Eu não quero cair ou conhecer essa dor. Não quero um outro amigo ou tentar novamente. Não quero que me deixe te ver machucada ou chorar novamente. Como você pode dizer que eu não tentei? Você sabe que eu tentei. Você vê coisas nas profundezas dos meus olhos. Meu amor se esgotou? Não! Então leio para mim mesmo, a chance de uma vida inteira para ver novos horizontes na primeira página, onde há uma figura preta e branca do Horizonte de Manhattan.”
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