II - Ríspido amante.
“Tudo que parece colorido atrai, sabe? É algo comum do ser humano se deixar levar por coisas vibrantes antes de perceber que está cavando sua própria cova funda.”
A construção de lona estava erguida há algumas horas e todos já podiam ver há metros de distância a figura imponente e provocativa do circo LaCourt apontando para o céu, o tom de vermelho com suas linhas brancas subindo como se tentasse manter um pouco de pureza em meio à tamanha cor sensual e chamativa. Os trailers estavam dispostos em forma de meia-lua atrás da construção, como se para proteger sua retaguarda, todos sendo ligados e com suas atrações menores também erguidas, prontos para saírem a qualquer momento.
Havia uma cabana menor, de cor negra em oposição à toda a coloração do território, na qual ficava a coxia dos membros, que estavam todos reunidos no local, se arrumando antes mesmo que o Sol nascesse, prontos para o primeiro do que seriam longos dias de trabalho em Yarus.
O plano consistia em anunciar sua chegada com um desfile no centro comercial e mais abastado da cidade, uma apresentação que ocuparia boa parte do dia para que pudessem se exibir em toda sua glória, despertando curiosidade e desejo dos menos afortunados com suas promessas de liberdade momentânea, e assim eles se interessaram pelos shows e lotaria a bilheteria no fim da tarde, quando eles abririam as cortinas para a primeira noite de apresentações. Esse desfile também era uma forma de estudar o território e prever, pelo menos um pouco, da rejeição que sofreriam dos mais conservadores e de outras criaturas de menor importância, como alcoólatras que viriam à sua porta gritar obscenidades e, às vezes, se tivessem coragem o bastante, comprariam ingressos apenas para berrar enquanto tentavam fazer suas apresentações.
— Todos prontos para um dia de caminhada? — Athos iniciou, a seriedade em sua voz fazendo com que todos se virassem para vê-lo — É apenas mais uma cidade para trabalharmos, não vai ser ruim. Se animem, sim? Irão ter novas almas em breve.
Ele estava com uma cartola em mãos, a girando distraidamente, mesmo que não fosse um mestre de cerimônias. havia certa ironia em se lembrar de que ele próprio havia matado o pobre coitado não muito antes de chegarem à cidade.
— Mal posso esperar para ser exibido como um animal para criaturas inferiores. — resmungou Kyung-Soo, enquanto arrumava a vestimenta de seda que usava, os olhos puxados se virando afiados para Athos.
No mesmo instante ele revirou os olhos, suspirando de forma pesada. Faziam isso há tanto tempo e ainda haviam aquele tipo de resistência ou comentário inútil que não havia nenhuma questão em responder. Os sentimentos claramente já estavam à flor da pele desde o momento em que chegaram perto do novo destino, e a Terra da Rainha não era nem de perto um dos lugares mais excitantes para se estar. A falsa puritania e os códigos morais exageradamente restritos eram apenas dois dos milhares de motivos pelo qual aquele local era um banquete para eles, porém não o tipo de banquete dos mais divertidos.
Afinal, muitas almas ruins também significavam muitas almas boas perecendo em desespero, e isso era simplesmente penoso de assistir. Porém, não havia como nenhum deles simplesmente dizer não para uma ordem superior.
— É apenas mais um destino, caros amigos.. — iniciou, com a voz pesarosa, se apoiando em uma das penteadeiras, e olhando para sua família — Eu sei que nenhum de vocês tem Yarus como seu lugar favorito, mas-
— Não há nem graça em brincar de gato e rato quando a maior parte da cidade é podre. — Georgina disse, deitada sobre sua gaiola, sem se importar com o risco iminente de queda — É apenas se afogar na energia ruim desses nojentos depravados metidos a besta.
— Ainda sim há pessoas que se beneficiarão do nosso trabalho, diversos civis e crianças inocentes, mães desesperadas... — tentou amenizar, olhando para a jovem de cabelos cor de ouro, tão parecidos com os seus que quem visse, poderia pensar que eram irmãos — E também é por eles que estamos aqui, certo? Nossa missão é limpar a cidade, e é isso que faremos. No fim das contas, a caçada ainda será boa.
— Nunca acaba bem quando vamos à uma cidade quebrada como essa. — Harpie complementou, sem muita vontade — Eu entendo que estamos presos a esse trabalho e não podemos escolher nossos destinos, mas...
— Não é uma questão de estarem presos. — Leoni Pollock terminou a maquiagem, se olhando no espelho uma última vez — Sabem que se se rebelarem e recusarem um trabalho sequer, estão mortos. Eles não se importam convosco e se os quiserem mortos em um estalar de dedos, então assim farão sem qualquer remorso. Não é uma escolha que vocês possuem, e não acredito que Athos tenha que lembrá-los sempre desse fato.
Ninguém mais disse uma palavra por um tempo, sendo obrigados a encarar as duas realidades que lhes foram jogadas pela vidente. Eles gostavam de pensar que eram poderosos, acima de tudo, mas ainda haviam forças sobre eles, e não era o tipo de força que você iria querer ver contra si. Athos Beaumont, após a fala da amiga, ficou estranhamente quieto, como havia se tornado comum desde que receberam o próximo destino para caça.
Como líder do circo, ele era sempre jovial e falante, mas havia alguma coisa naquele trabalho que o silenciou, mesmo continuando a tomar conta dos outros e animá-los com a prospecção de uma diversão.
— De qualquer forma, vamos pensar nas coisas boas. Um trabalho rápido e em breve estaremos em outra terra, talvez uma mais interessante e menos decadente. — diz Julian, calmamente, fazendo os últimos retoques em um dos vestidos para as apresentações.
— A primeira festa já será hoje à noite? Ou apenas após a primeira apresentação amanhã? — A voz de Atesh se fez ouvir enquanto ele se levantava e caminhava até seus equipamentos — Digo, vocês não se cansam, então não vejo motivos para esperar pelo espetáculo.
— O motivo seria despertar alarde. — Athos lembrou, calmamente, enquanto se deitava em um dos bancos, que era pequeno demais para seu corpo alto e esguio — Não queremos mães chorando por filhos desvirtuados e nem mesmo falsas beatas com cartazes na nossa porta amanhã. Precisamos esperar.
— Ouvi dizer que a maioria esmagadora de Yarus é católica romana rígida, ou seja, teremos problemas com padres, muito provavelmente. — Julian Moritz continuou com suas costuras calmamente, os cachos bonitos caindo por seu rosto inexpressivo.
— De qualquer forma, será apenas uma noite de descanso, não estou disposto a deixar minhas festas de lado apenas por medo de alguns idiotas escondidos atrás de uma batina. — garantiu, com uma risada ferina.
— Talvez devesse fazer uma visita à Igreja dessa vez. — Rollo disse, aparecendo pendurado em uma das vigas de sustentação, os braços esticados na direção do chão, e um sorriso levemente diabólico nos lábios.
— Por favor, não faça isso novamente. — Atesh pediu, levando a mão ao rosto — Eu odeio padres e seminaristas.
— Prometo que dessa vez não os assustarei. — garante, erguendo as mãos.
— Vai ser bom ter novas pessoas para jogar. — Rollo continuou, e Georgina deu uma risadinha cúmplice, pulando de sua gaiola para a viga ao lado do rapaz — Vamos, minha cúmplice, temos algumas brincadeiras para fazer.
Os presentes esboçaram reações diversas, a grande maioria com risadinhas e uma atenção na cena que se desenrolava acima deles, porque já estavam acostumados com a combinação explosiva que era a bailarina maluca e o duende cheio de energia.
— Acima das brincadeiras infantis e perigosas dos dois, eu estou animado com a prospecção de abrir a mente de algumas pessoas. — Hwang Seo Joon disse, esticando as costas enquanto se levantava, sem qualquer roupa no corpo, e caminhava até Julian, para começar a se vestir — O que seria do povo sem nós? As mulheres casadas, principalmente, me adoram. As pobres coitadas enlouquecem assim que recebem um beijo de verdade, veja só.
— Claro, imagine como deve ser infernal querer sentir algo realmente bom e seu marido a levar a um médico charlatão para atestar que você é histérica ou está com um demônio em seu corpo. — Georgina disse, e então levou a mão ao meio das pernas, fazendo o som de tesouras — E então cortam seu botão mais precioso.
— Isso é nojento e estranhamente gráfico. Não me interessa, eu estou pensando em outro tipo de diversão. — Rollo acrescentou, ao seu lado, fazendo uma careta, antes de pular ao chão sem qualquer hesitação.
Leoni riu baixo, negando com a cabeça e voltando a se virar para seu trabalho.
Aquele imp era uma criatura engraçada, sem dúvidas, mas claramente tinha os parafusos fora do lugar e por vezes estragava a discrição que trabalhavam muito para ter em seus trabalhos. Mesmo com esse obstáculo, poucos eram aqueles que ousavam questionar o motivo de Athos tê-lo praticamente adotado e o ajudado a se transformar em um demônio, porque a obsessão era mútua, e o menor mataria a sangue frio todos que se aproximassem do Beaumont.
— Certo, estamos falando demais e temos trabalho a fazer, todos em seus lugares, vamos fazer um desfile. — Athos bateu as palmas das mãos, e os presentes riram, se animando — Vamos dar um pouco de cor para Yarus.
A praça central era o local escolhido para iniciarem seu desfile, então o momento antes do Sol nascer e dos trabalhadores saírem de casa para ir trabalhar era o melhor para se locomover, afinal, não queriam perguntas e distrações. Quando o dia finalmente começou, as pessoas começaram a parar suas caminhadas, curiosas, hesitantes e hipnotizadas pelas cores que circulavam a fonte de pedra no centro da praça central.
Diversas carruagens estavam paradas e um círculo bem feito, como se protegessem a fonte de um possível ataque, e todos estavam parados, dentro e fora delas, que também estavam estacionadas. Os circenses pareciam bonecos, estátuas esculpidas à perfeição, cada uma em uma pose atrativa, e os burburinhos começaram enquanto a praça ia se enchendo de pessoas, não importava sua classe. As crianças riam e tentavam se aproximar, impedidas por seus pais, que tinham medo de seus filhos tocarem aquelas criaturas exóticas congeladas em pleno movimento.
Os primeiros a se moverem foram os dois palhaços: Daniel e Gideon, que gradativamente foram recuperando os movimentos, em um teatro infantil, enquanto enchiam balões e faziam palhaçadas para as crianças. Em seguida, foram os bailarinos macabros, Georgina e Seo Joon, que começaram a se mover em suas gaiolas, dançando de forma a atrair mais os adultos do que as crianças.
Rollo se moveu, e suas habilidades de contorcionismo assustaram alguns moradores, que colocaram a mão sobre a boca, sem conseguir parar de olhar, porém, foi o rugido dos dois leões que saíram das jaulas, sob o comando de Kyung-Soo, que despertou o início da música e o movimento das carruagens, girando e girando em círculo antes de saírem pela avenida central, para passear pela cidade.
Athos foi erguido por outros membros do círculo em uma estrutura suspensa terminada em um arco de ferro. Ele estava com as pernas dobradas, bem seguras no arco, e o corpo inteiro estava de ponta cabeça, se movendo perigosamente de um lado para o outro. A música já havia começado, mas os instrumentos foram ficando mais suaves enquanto a cidade parecia se calar, abrindo espaço para que ele começasse a cantar, sua voz rouca rasgando o ar enquanto era projetada, e toda a cidade parou para prestar atenção nele: suas roupas coladas conforme ele passava a mão pelo próprio corpo, de forma sensual, antes de começar com as acrobacias de trapézio parado.
Leoni estava com a bola de cristal em mãos, a fumaça colorida lhe dando o ar místico que ela já possuía por si só, na maquiagem carregada, nos olhos penetrantes, no nariz adunco, e no sorriso frouxo. Junto a ela, estavam todos em suas posições, dando prévias de suas apresentações caso os interessados comparecessem ao show na noite seguinte. Os palhaços faziam brincadeiras, os mágicos estavam tirando coisas de suas cartolas, atiradores de facas, equilibristas, cuspidores de fogo, domadores de feras montados em leões e elefantes. Malabaristas, dançarinos, cavaleiros, todos fazendo a alegria da população, que gritava e ovacionava, com diversos aplausos, assobios, entre outros sons de satisfação.
Entre a multidão que os seguia, havia um par de olhos que os observava desde que estavam parados na praça, curiosos e silenciosos, tentando não serem notados. Kash se perguntou se todos os circos faziam sua entrada dessa forma ou somente o LaCourt tinha essa forma grandiosa de fazer uma entrada, mas não conseguiu se lembrar da última vez que algum circo parou ali para comparar. Ele observava de forma atenta, os lábios entreabertos em surpresa, se perguntando internamente porque todos pareciam tão bonitos e etéreos naquele lugar. Os circos eram justamente o lugar para encontrar aberrações como ele, certo? Então por que não parecia?
Athos continuava cantando, deslizando do arco como se fosse cair, antes de se segurar com a destra, voltando às acrobacias de forma calma, usando a mão livre para compor o teatro que fazia ao cantar, ele era hipnotizante, e não foi difícil que Kash tivesse a visão capturada por ele.
Foi de cima do trapézio que o Beaumont viu, assim que ficou de ponta cabeça, o belo rapaz o observando, parado, poucos metros atrás da horda de pessoas ensandecidas pelo efeito do circo. Ele estava parado, apenas olhando com genuíno interesse e curiosidade, e no mesmo instante, como se lesse sua mente, Athos apontou para Kash, dentre todas as pessoas que estavam acompanhando. Seu olhar queimava a pele do trapezista há alguns bons segundos, e quando Athos apontou diretamente em sua direção, ele soube que estava sendo observado também.
Kashmir gostaria de dizer que não foi afetado pelo acontecimento, mas a verdade é que ao vê-lo apontando em sua direção, sentiu um frio subir por sua espinha, como um susto, e quase sentiu o ar faltar por um momento. Seu rosto queimou de vergonha e ele foi tomado por uma sensação vergonhosa, como se tivesse sido pego espiando algo íntimo, e pareceu ainda mais íntimo no instante seguinte, quando Athos girou, na pausa da música, levando a mão pintada de tinta vermelha ao rosto, o marcando, e se pendurando novamente nas pernas.
Parecia uma apresentação particular para ele.
A música continuou de forma ainda mais animada, e a cidade não conseguia parar de olhar, mas não importa o quanto se afastasse, Athos permanecia olhando para Kashmir, a cada vez que se virava, cada vez que se pendurava e cada vez que girava, atravessando o arco de ferro, o corpo flexível e esguio pendendo de forma que ameaçava cair a cada momento. Até não conseguir enxergá-lo ao virar uma das ruas, na direção do terreno onde se localizavam.
Se a intenção do desfile era fazer um convite para todos irem nos espetáculos do LaCourt, estava dando certo: mesmo a população extremamente religiosa de Yarus estava parecendo encantada com a passeata nada ortodoxa. Kashmir não os seguiu até o seu destino, na verdade, ficou parado ali, em cima da caixa de madeira, observando o trapezista e o circo seguirem seu caminho, com a população animada em seu encalço, deixando para trás apenas alguns confetes e o silêncio. A rua, que outrora estava cheia de gente, de música e de vida, agora voltou a sua origem pacata, como se tudo tivesse sido um sonho acordado.
Depois disso, o resto do caminho passou rapidamente, pelo menos para os membros do circo, que logo estavam descendo de seus postos, de volta ao local onde se trocavam e deixavam todos os seus figurinos, limpando seus corpos para se prepararem para montar a apresentação do dia seguinte
— Isso foi... interessante. — Harpie iniciou, tirando os brincos para limpar o rosto e tirar a maquiagem — Não pensei que fôssemos ter uma recepção tão calorosa nessa cidade morta, até mesmo as almas mais podres pareciam estar interessadas.
Daniel parou de remover a maquiagem de seu rosto e deu um sorriso de canto, a observando pelo reflexo do espelho antes de dizer, de forma divertida:
— Esse lugar deve ser realmente chato para estarem tão animados com um circo. Agora entendo porque não queriam vir aqui.
— Não, há muito mais do que um ambiente inóspito e entediante em nossos motivos, acredite. — A jovem garantiu, prendendo os cabelos quase brancos no topo da cabeça, para remover as roupas chamativas que usava.
Ele apenas riu baixo e voltou ao seu trabalho, enquanto o burburinho se iniciava, com pessoas concordando com a surpreendente boa recepção, e outras prevendo o tipo de criatura com quem teriam que lidar a partir da noite seguinte. Quem olhasse de longe, sem conhecê-los, diria que são apenas pessoas comuns, o que era justamente o que eles queriam que pensassem.
Depois de algumas décadas, decidiram usar a parte ainda humana que existia dentro de cada um deles e melhorar a convivência durante as viagens, o que não queria dizer que tudo eram flores e não haviam discussões. Mas não é como se pudessem simplesmente guardar rancor uns dos outros, afinal, estavam presos para sempre.
— Quem era o rapaz que estava de olho, Athos? — Baren Asmodeé perguntou, enquanto tirava sua roupa, e o burburinho cessou, a atenção toda voltada para o trapezista, que estava se trocando.
— Não sei do que está falando.
— Oras, só um cego não conseguiria ver.
— Me diga, quando um rapaz não desperta o interesse dele? — Leoni brincou, e Athos deu uma risada baixa, negando com a cabeça, esperando que aquela conversa seguisse o trem da vidente, mas Baren não parecia tão disposto a permitir que isso acontecesse, visto que fez um sinal com o dedo, um “não, não, não” mudo, enquanto voltava a falar.
— Não, dessa vez é diferente, eu o vi olhando para uma aberraçãozinha durante o desfile. — Athos revirou os olhos, guardando suas roupas calmamente.
— Você se lembra que nós somos aberrações também, não se lembra? — disse, no mesmo instante, e o homem soltou uma risada baixa, erguendo as mãos.
— Foi apenas uma maneira de dizer. — garantiu, antes de passar pelo Beaumont em direção à saída — Aparentemente vai pegar um novo animalzinho de estimação para quando sairmos daqui. Cuidado, Rollo, talvez ele tome seu lugar.
E saiu.
— Ninguém vai tomar meu lugar. — O rapaz disse, já segurando as facas usadas nas performances dos atiradores, e Athos revirou os olhos mais uma vez, tirando as armas da mão dele.
— Pare com isso, Baren não sabe o que fala.
E então liberou todos para irem aos seus trailers e carruagens, sem mais nenhuma palavra. Ninguém ousou responder ou fazer perguntas, porque sabiam que não gostariam da resposta, visto que Athos sempre ficava de mau humor quando Baren resolvia fazer comentários em tom de desafio para ele. Ambos tinham quase a mesma idade, e tinham diferentes ideias sobre o trabalho que tinham para fazer, alguns até brincavam ao dizer que o Asmodeé a qualquer momento tentaria tomar o lugar como líder do circo.
— Quem é o garoto? — A voz de Lione se fez ouvir quando já não havia mais ninguém na tenda, e Athos sorriu minimamente, caminhando com ela na direção de seu trailer e sabendo que ela não esqueceria.
— Parecia nobre, pelas roupas, mas não estava em uma carruagem e permanecia longe das pessoas, com o rosto parcialmente coberto. E tinha uma cicatriz de queimadura aqui. — aponta para o lado direito do rosto.
— Aura boa? — Uma afirmativa, e ela assentiu também — Vá descansar, e não deixe ele chegar à sua cabeça.
— Você é quem deveria descansar, sabe que estarei novinho em folha em minutos. — E ela riu, sem dizer mais nada, enquanto o deixava entrar e se afastava na direção de seu próprio trailer.
A noite seguinte chegou rapidamente, e antes que qualquer um se desse conta, o espetáculo de abertura já estava ali. A coxia estava abarrotada de pessoas correndo para lá e pra cá enquanto os moradores de Yarus passeavam pelo carnival, se deliciando com as comidas das barraquinhas, os jogos de prêmios, e esperando pelo grande momento, onde o picadeiro seria aberto para que entrassem, o que não demorou para acontecer, pois logo o barulho na coxia diminuiu.
— Bom, está na hora, terminem de se arrumar que provavelmente as pessoas já estão ocupando seus lugares, só esperando para que o show comece. E, já sabem, quando foram escolher alguém para os números, tentem não escolher crianças, porque não quero vômito e nem urina no meio do palco. — Athos disse, com calma, e bateu palmas para que todos prestassem atenção e fossem tomar seus lugares.
— Sim, senhor.
E logo todos saíram da coxia, vestidos e prontos, ouvindo os aplausos e chamados vindos da lona principal, onde já estavam esperando por eles. Quando os animais entraram, Kyung-Soo os seguiu, para abrir o show como domador, como somente ele sabia fazer. Não era a primeira vez que eles se apresentavam, mas era a primeira vez que um público tão grande vinha vê-los. Talvez fosse de fato divertido fazer uma caçada por ali, afinal.
Athos estava o tempo todo de olhos fechados, como sempre ficava enquanto esperava seu momento, após o primeiro número geral de música, ele foi anunciado pelo mestre de cerimônias e finalmente entrou no palco, sozinho, como sempre fazia, mesmo que fizesse números com outros artistas após o início. Ele era vendido no show como o maior trapezista do mundo, aquele que conseguia realizar acrobacias que mais ninguém conseguia, mas é claro que não sabiam que isso se dava pelo fato de não ser humano.
O Beaumont subiu as escadas que levavam aos trapézios, se preparando para se pendurar. Ele alongou os dedos e segurou a barra, também coberta de giz para que não escorregasse e o deixasse cair no chão, em seguida se impulsionou para frente e fechou os dedos em torno do objeto, se deixando cair, antes de impulsionar os braços para cima e girar uma vez, soltando as mãos apenas para que suas pernas passassem rentes à barra, apenas para segurá-la novamente, enquanto sentia seu corpo atingir o ponto mais alto da lona e começar a voltar, e ele soltou um dos braços, o esticando para pegar o braço de Rollo, que era seu parceiro de início: ele não era trapezista, mas gostava da adrenalina de estar literalmente nas mãos de Athos, sendo jogado de um lado para o outro, sem saber se cairia ou não.
O contorcionista foi segurado pela cintura por um momento e impulsionado para cima, para que planasse no céu por um instante antes que tivesse seu tornozelo segurado com firmeza por Athos e fosse puxado para baixo e jogado na rede ao fim de sua participação, para que o mais velho começasse outra sozinho.
E, assim que o Beaumont apoiou os pés na barra, já quente, para o segundo número, prendendo a parte detrás de seus joelhos e ficando de ponta-cabeça, ele conseguiu enxergar, como se a roupa preta se destacasse entre todas as outras, o fraque chamando atenção e os mesmos olhos brilhantes e curiosos que ele havia visto mais cedo. O estranho da manhã anterior estava assistindo, e olhava diretamente para ele.
E então Athos sorriu de canto, já com a visão de quem da plateia escolheria para se aventurar ao lado dele. Era o alvo perfeito.
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