- Ai, finalmente você apareceu, né? Achei que tivesse me esquecido nesse campo de concentração!
- Eu não sou mentirosa, garota. Sempre cumpro minhas promessas.
- Então por que não apareceu antes?
- Porque tinha que lhe dar um tempo nesse emprego.
- Tá, tá! Já passei muuuuuito tempo aqui, agora desfaça essa bagunça que eu quero voltar pra minha família! Ainda vai dar pra passar o natal com eles!
Creuzodete saiu caminhando, com Carmem atrás, e foi até a piscina sentando-se numa das cadeiras e ficou contemplando a lua refletida na água. Depois de alguns segundos de silêncio, ela perguntou.
- Quem disse que eu ia desfazer isso quando você encontrasse um emprego?
- Mas você falou pra eu arrumar um trabalho e depois a gente conversava!
- E estamos conversando. Em momento algum eu prometi desfazer esse encanto porque não há como desfazer. Sua amiga bruxa explicou isso muito bem!
- Então por que você tá aqui?
- Porque não aceito ser chamada de mentirosa. Veja bem: estou adiando minha comemoração de natal só para vir aqui te aturar!
- Me aturar? Foi você quem me colocou nessa encrenca!
- Não! Você se colocou nessa situação sozinha!
- Mas eu... eu...
- Sempre “mas”, não é? Você nunca assume as conseqüências das suas escolhas, é sempre culpa de todo mundo, menos a sua!
- E é mesmo!
- Sério? Pelo que eu saiba, foi você quem fez o pedido.
- Porque eu tava zangada com meus pais que foram muito cruéis comigo só por causa de umas comprinhas bestas.
- Essas “comprinhas bestas” saíram por nada menos que cinco mil e trezentos reais.
- E daí? Minha família é rica, isso não é nada pra eles!
- Mesmo trabalhando, você ainda não aprendeu o valor do dinheiro, não é mesmo? pois bem: quanto é o seu salário aqui?
Ela cruzou os braços e fez cara feia.
- Hunf! Só um salário mínimo! Já pensou que absurdo? Como alguém consegue viver com isso?
- Bem... é a realidade de milhões de pessoas. Muitas não recebem nem isso por mês. Vamos fazer uns cálculos: quantos meses você teria que trabalhar nesse emprego para juntar esse valor?
Como sabia que aquele tipo de cálculo estava um pouco além da capacidade dela, Creuzodete respondeu em seguida.
- A divisão não é exata, mas você teria de trabalhar oito meses para ter esse valor.
- Credo, isso tudo?
- Sim. Em uma noite, você gastou o que muitos trabalhadores levariam oito meses para juntar.
- Ah, peraí! Eu não gastei o dinheiro DESSES trabalhadores! Gastei o dinheiro dos meus pais! Eu não tenho culpa se tem gente ganhando miséria por aí!
A incapacidade daquela garota de enxergar os próprios atos era mesmo impressionante e Creuzodete começou a achar que ela era um caso perdido.
- Claro, você nunca tem culpa de nada, não é mesmo? É incapaz de afastar os olhos do próprio umbigo e enxergar o mundo a sua volta.
- E por que deveria? Não tenho nada a ver com essas coisas!
- Agora tem. Você é um dos assalariados e continuará a ser por muito tempo.
- Você não vai desfazer o pedido?
Ela perdeu a paciência e levantou-se da cadeira ao ver que não tinha como argumentar com aquela garota.
- Não. E mesmo que pudesse, eu não faria porque uma pessoa que só importa consigo mesma não merece nada melhor que isso!
- O que foi que você disse?
- Exatamente o que você precisa ouvir, pirralha. Você é egoísta, mimada, fria, incapaz de sentir qualquer empatia pelos outros e se acha melhor que o resto do mundo.
- Ei! Você não pode falar assim comigo!
- Falo como eu quiser. Você não é ninguém e não merece consideração nenhuma. Nem sei por que aquela moça ainda perdeu tempo tentando te ajudar. Você não vale o esforço e merece ficar aqui pelo resto da vida porque não tem capacidade para conseguir nada melhor.
Carmem explodiu de raiva.
- Ei! Tá me chamando de burra, é?
- Burra, estúpida, ignorante... pode escolher qualquer um desses termos. Sim, você é burra demais para conseguir algo com o próprio esforço. É incapaz de sentir empatia pelos outros, de ter respeito, compaixão, nada. Ao que parece, você tem um buraco negro no lugar do coração. Então não há mais esperança para você, garota. Nenhuma esperança.
A moça se desesperou. Como assim não havia esperança para ela? Então ela ia viver daquele jeito para sempre?
- Agora preciso ir. É quase meia noite e não quero passar o natal com alguém como você.
- Alguém como eu? Como pode falar comigo desse jeito? Por que me trata como se eu fosse inferior?
- Não é assim que você vem tratando as pessoas? Então não pode se zangar por receber o mesmo tratamento. Agora adeus. Você está por conta própria porque não quero mais perder tempo com alguém que não é capaz de mudar.
- Espera! Você prometeu que ia me ajudar!
- Te ajudei a arrumar e manter esse emprego. Você está empregada, tem casa e comida.
- Isso não é o bastante!
- Para alguém como você, sim. Até agora, tenho garantido que aqueles dois não te mandassem embora apesar da sua incompetência, mas vejo que isso só está impedindo que você aprenda de verdade. Se quer um conselho, aprenda a trabalhar, porque eles não vão mais tolerar suas falhas.
Carmem se apavorou.
- Vai me deixar sozinha? Nunca mais vou ver minha família de novo? Nem meus amigos?
- Sim, vou te deixar sozinha para ver se você aprende. Não, você nunca mais os verá de novo. Não se preocupe, você não está fazendo falta para ninguém.
Creuzodete foi caminhando até os jardins, se escondendo entre os arbustos bem podados. Carmem tentou segui-la só para ver que ela tinha desaparecido novamente. E daquela vez não ia mais voltar.
- Essa não! Ela foi embora de novo? Ei! Volta! Eu faço qualquer coisa, por favor! Não me deixa aqui!
Não adiantou chamar, implorar, chorar e nem gritar. Ela não teve nenhuma resposta a não ser o latido distante de um cachorro. Cansada, abatida e a beira do desespero, Carmem voltou para a mansão e se jogou na cama novamente. Tudo o que Creuzodete lhe falou se repetia de forma insistente em sua cabeça. Do jeito que aquela mulher tinha falado, parecia que ela era a pior pessoa do mundo.
“Não se preocupe, você não está fazendo falta para ninguém.” Foi o que mais doeu. Era mesmo verdade? Ela queria e ao mesmo tempo não queria saber a resposta. Será mesmo que ninguém sentia sua falta? Em sua cabeça, ela foi repassando todos os que conhecia a começar pelos seus pais. O que ela lhes dava de bom como filha?
A lembrança do quanto eles ficaram aborrecidos por causa das suas compras e também de atitudes anteriores fez com que a resposta fosse clara. Ela tinha mesmo gastado mais de cinco mil reais? Pensando bem... era normal uma garota da sua idade gastar essa enorme quantia de uma vez só?
Por um lado ela tentava se justificar que precisava de roupas. Por outro lado... ela sabia que tinha muitas roupas bonitas e que ainda estavam na moda. E ia poder comprar muitas outras depois. Aquele surto psicótico de compras tinha sido exagerado e desnecessário.
Aquela noite foi longa porque Carmem não conseguiu conciliar o sono já que toda sua vida insistia em passar diante dela como se fosse um filme, fazendo-a relembrar de tudo o que tinha feito e dito aos amigos. Então aquilo foi errado? Mas ninguém nunca lhe disse nada! Se foi errado, então era bem provável que seus amigos não estivessem sentindo sua falta. Nem mesmo a Denise.
- Puxa... será que eu sou tudo aquilo que ela falou? Sou tão ruim assim? Não, isso não! Eu não sou esse monstro! Também tenho sentimento e ninguém se importou com eles!
A vidente tinha lhe falado que ela só importava consigo mesma. Não dava para negar que era verdade. Mas também, ela nunca foi ensinada a se importar com os outros. Nunca viu razões para isso. Se ela não se importava com as outras pessoas, por que alguém deveria se importar com ela?
Pensar assim lhe deixou mais deprimida do que estava. Essa era a dura e triste realidade: ela estava sendo tratada com o mesmo descaso com que tratava as outras pessoas a quem julgava inferiores. E não era nada bom ser tratada assim.
Seus patrões eram dois miseráveis, avarentos e ditadores que submetiam os empregados a uma vida horrível. Cassandra lhe maltratava e até sabotava seu serviço e ninguém lhe defendia. Cascuda lhe tratava como uma incompetente cabeça de vento e ainda lhe chamou de pobre coitada. Creuzodete lhe via como alguém sem solução, que ia viver a vida inteira naquele lugar horrível porque não tinha capacidade para ter nada melhor.
- Então é isso, eu tô mesmo por conta própria. E se eu não agüentar? E se acabar no olho da rua? Não, isso não! Pra rua eu não volto! Vou mostrar praquela arrogante que posso fazer muita coisa! Se ninguém quer cuidar de mim, então me viro sozinha mesmo!
Eram quatro da manhã quando ela conseguiu conciliar o sono. Dentro de pouco tempo o sol ia nascer trazendo um novo dia. O primeiro do resto da sua vida.
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Por volta das sete e meia da manhã, Creuzodete estava de volta a sua barraca ajeitando as coisas para começar seu trabalho. Berenice lhe ajudava como sempre.
- Parece que ela teve uma noite bem longa. Será que a senhora não foi muito dura com ela?
- Bem... foi uma surra de amor para ver se ela cresce um pouco.
- Vai mesmo deixá-la sozinha?
- Claro que não! Prometi ajudá-la e farei isso até o fim. Mas por enquanto, ela precisa pensar que está sozinha para valorizar mais o que perdeu. Vamos ver se dessa vez ela muda.
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