No dia em que Craster completou sessenta anos de idade, ele visitou o túmulo da esposa.
Esdeath o acompanhou, havia chegado ao Império e recebido a notícia da morte de Syura e da rebelião em Albion. Esdeath trajava um terno simples, e os longos cabelos azulados estavam presos por uma trança, os olhos azuis estavam fitando uma lápide ao longe. Esdeath já havia visitado aquele lugar, e lá estavam enterrados os corpos de seus guerreiros.
Ao longe se via o túmulo de Liver, Stylish, Seryu, de Daidara e tantos outros, eram lápides simples, e sem nada de especial, apenas peças de mármore sobre a grama verde, e alguns dos corpos sequer estavam lá, como o de Seryu, que havia sido obliterado na ocasião de sua morte e de Liver, que foi desfeito pelo poder de Esdeath. Eram apenas memoriais. Nomes gravados na pedra.
Era um cemitério simples, e até entediante: lápides sem fim, algumas brancas pelo mármore novo, e outras mais velhas e acinzentadas, e acima delas, milhares de nomes gravados nas placas de metal prateadas, douradas e bronze, centenas de nomes e histórias perdidas no tempo.
Esdeath carregou a cadeira de rodas de Craster até próximo a lápide da esposa, Craster não podia mais andar plenamente, a idade o havia alcançado com vigor.
‘’Esposa e Mãe Amada’’
Era a única coisa que estava escrito, abaixo do nome dela. Esposa e mãe amada. Poucas palavras que resumiam toda a vida de uma mulher que havia deixado saudades.
-Esposa e mãe amada- murmurou Craster.
-Deve ter sido- disse Esdeath, e não podia desviar os olhos do velho guerreiro. Os olhos cinzentos de Craster estavam entristecidos, como se pudessem observar por além do véu do mundo e ver novamente o rosto da esposa refletido naquela placa de mármore.
-Quatro palavras- disse Craster- Quatro palavras que a definem de uma forma... Maravilhosa. Veja, apenas com isso você não pode conhecê-la, não pode saber como era seu rosto, como era a sua voz, ou como arrumava o cabelo; Não dá para saber o que ela gostava de comer e vestir, como era o seu riso e se gostava do inverno ou do verão.
-É verdade- Esdeath sorriu- Só posso presumir que ela era amada.
-E era.
Esdeath suspirou, atrás dela, Violet estava em pé, parado como uma estátua. Olhava com solenidade para Craster. Todo menestrel conhecia um dos guerreiros mais famosos do Império.
-Vocês devem ter vivido uma vida boa e calma- disse, enfim.
-Boa era, ah se era, mas calma... Não, senhorita Esdeath. Ou seria senhora?
-Não estou mais comprometida- disse ela, em um tom sombrio.
-O que houve com o rapaz?
-Fugiu de mim- fingiu sorrir- Provavelmente.
-Que crueldade- Craster suspirou- Você é a pessoa mais gentil que encontrei nos últimos anos, logo encontrará alguém que possa vê-la da mesma forma.
-Já me chamaram de muitas coisas, senhor, mas ‘’gentil’’ é a primeira vez.
-Quando se alcança uma certa idade, senhorita, você acaba se tornando invisível para o mundo. Você foi a única pessoa que me tratou como um ser humano, não como um velho a beira da morte, ou apenas um símbolo heroico, e eu sou profundamente grato por isso.
Esdeath sorriu. Sentia-se grata por aquelas palavras.
-Você a visita todos os anos?
-Sim... Nessa mesma data. Ela morreu no dia de meu aniversário. Isso torna essa data uma grande... Uma grande bosta.
Esdeath sorriu ao ouvir Craster dizer um palavrão, era a primeira vez, e ser ranzinza não era algo que combinava com aquele semblante calmo.
-Ela deveria ser uma mulher boa, calma... Pacífica.
-Ela era boa, mas pacifica, ah, isso não. Ela costumava explodir com frequência, e era contra todas as guerras que eu participava, ela era brava como uma fera selvagem, ah se era- Craster sorriu- Mas ela era minha fera selvagem... E foi a melhor pessoa que eu já conheci- Craster colocou um buquê de flores sobre a lápide- Ela gostava de rosas.
-Ela tinha bom gosto no final das contas- disse Esdeath.
-Duvido disso, afinal, ela esteve casada comigo por toda a vida- Craster riu alto- E agora olhe para mim, me tornei um daqueles velhos babões que vive a lamentar em cemitérios.
-Não diga isso- disse Esdeath, ajeitando o buquê que havia rolado de onde ele deveria estar- Vi as suas fotos antigas. Grande, forte em sua armadura de metal- sorriu- Se estivéssemos vivendo durante a mesma época, eu o roubaria de sua mulher.
Craster não pôde deixar de rir.
-Mas isso não seria possível de qualquer forma- disse Esdeath- Porque os anos se passaram, e o senhor ainda continua aqui. Existe uma definição melhor do que o amor do que o luto? Afinal de contas, luto nada mais é do que o amor que resiste até mesmo a morte.
-Acho que é só mais fácil sentir falta dela aqui, do que nos lugares onde ela costumava estar- suspirou- Como a guerra está indo?
-Sangrenta, como sempre- disse Esdeath- Mas as coisas estão ficando complicadas.
Craster olhou para os arredores, viu apenas Violet, e perguntou:
-E onde estão seus Jaegers?
-Espalhados pelo mundo. Não precisava deles agora e... Lhes dei férias. Precisavam descansar.
-Quem diria que a dura e fria general dos exércitos imperiais. A mulher mais forte e impiedosa do mundo, se preocupa com seus homens dessa forma- brincou.
-Conhece a minha fama- Esdeath sorriu.
-E quem não a conhece?- sorriu- Estou velho agora, não sei direito como são as guerras, principalmente porque no meu tempo as Tengus não estavam espalhadas como trigo nos campos. Ah, estou um homem velho agora. Muito velho, o mundo mudou, as formas de lutar mudaram e eu permaneci onde estava, quando envelhecer, senhorita, entenderá o quão isso é enfadonho.
-Eu não me importo em envelhecer- disse Esdeath.
-Eu também não me importava, até me tornar velho.
Esposa e mãe amada. Esdeath se deu conta que nunca havia ouvido falar do filho de Craster.
-Onde está seu filho?
-Morto- respondeu ele- Tornou-se um daqueles rebeldes e pereceu.
-É uma pena...
-Ele morreu lutando pelo que acreditava, isso não torna a morte mais branda, mas é mais reconfortante saber que ele lutou por alguma coisa durante a vida, que amou, que lutou, e que morreu.
-Muitos de meus homens morreram. Homens que eram como filhos para mim, que eu treinei, que eu armei, e que de certa forma, que eu matei. Entendo sua tristeza, eu acho.
-Ouvi que se alimenta junto aos seus homens, que ri com eles, que confraterniza com eles. Isso é bom, isso cria lações fortes como aço.
-Mas não são nada perto do laço entre um pai e um filho- disse a general- Estou errada?
-Não é algo que eu possa negar ou confirmar. Diga-me, Esdeath, planeja ter filhos um dia?
A pergunta pegou Esdeath de surpresa.
-Naturais ou adotados?
-Bem, ambos.
-Tinha uma garota que era como uma filha para mim, Seryu, ela infelizmente acabou assassinada pela Night Raid- apontou para uma lápide ao longe- Ela está enterrada lá, ao lado de Stylish e do mestre.
-Você a visita?
-As vezes... Ela não está lá, o corpo dela foi destruído na hora da morte.
-Sinto muito.
-Ela morreu em combate- suspirou- Muitos dos meus morreram assim, mas era um risco que todos estavam correndo.
-Mas isso não diminui a dor, não?
-Enquanto aos naturais- Esdeath desviou do assunto e tocou a barriga- Não posso ter nenhum, o sangue do demônio me tornou estéril.
A forma ríspida com que Esdeath pronunciou aquelas palavras assustou Craster.
-E isso a entristece?
-De forma alguma, na verdade... Não planejo ter descendentes. Eu sou a última dos Partas, mas a minha linhagem maldita termina comigo.
-Os filhos naturalmente irão ocupar os lugares dos pais- Craster a olhou- E você, provavelmente, é a criatura mais poderosa que anda sobre a terra. Seu filho seria uma força nesse mundo.
-Que exagero.
-Não são todas as pessoas que podem congelar e mudar todo o curso de um rio apenas com as mãos nuas. Seu poder parece não conhecer limites, Esdeath. Isso não a preocupa?
-E por que preocuparia?
-Confia plenamente naqueles a quem serve?
Honest.
-Não totalmente.
-Se bem sabe, o Primeiro Ministro possui uma forma de manter todos os usuários de Tengu sob controle...
-Quer dizer que Honest pode me trair?
-Se em algum momento seus pontos de vista se divergirem- Craster suspirou- Só não desejo ver seu nome em uma dessas lápides.
Esdeath sorriu.
-Isso não acontecerá.
Dorothea havia sido retirada de Albion pelo poder de Shambhala. Suzuka havia tomado a arma das mãos de Syura, e com ela os havia transportado até um ponto distante, mas aquilo a havia deixado exausta, e ela quase morreu quando voltou para trazer Izou e Cosmina, mas todos haviam conseguido fugir.
Dorothea estava extremamente ferida quando chegou ao Império.
-Você não imagina o quanto eu estou machucada- disse Suzuka, quando estavam acampados a poucos dias de viagem do Império- Invejo a sua capacidade de regeneração.
Dorothea havia se regenerado parcialmente, alimentando-se de pequenos animais que caçou durante a viagem. Ela não podia ficar muito tempo sem se alimentar de sangue, ou, enlouqueceria e atacaria seus próprios companheiros, e para ela, já haviam acontecido tragédias demais.
-O que eu estou fazendo aqui?- disse ela, envolvendo-se em seus próprios braços- Por que não me deixaram lá para... Morrer?
-O Syura está morto- disse Suzuka, mordendo um pedaço de carne- Se eu não voltasse para o Honest com pelo menos a alquimista, ele me mataria.
Dorothea olhou para Izou, mas ele não parecia tê-la ouvido, estava com os olhos negros presos a Cosmina, que brincava com um pequeno filhote de cão que encontraram vadiando pelo acampamento.
-E você, Izou?- perguntou Suzuka- Não ouviu a pergunta da garota?
Garota. Era sempre estranho ouvir alguém chama-la assim.
-Prometi a Syura que a manteria em segurança. Eu a levarei até o império.
-E depois?- ousou perguntar Dorothea.
-Irei embora.
-Vai continuar sua peregrinação pelo mundo?- Suzuka sorriu- Achei que você já tinha conseguido o que queria.
-Não- foi o que respondeu.
-Quem restou?- perguntou Suzuka- Aquele tal de Vaarys foi morto e...
As irmãs assassinas, pensou Suzuka, mas Izou não falava muita coisa, como se estivesse magoado com algo.
-A de olhos negros deve ser Kurome, e ela é uma Jaeger, subordinada de Esdeath- Suzuka suspirou- Não aconselharia a ataca-la.
-Kurome... - disse Cosmina, atraindo a atenção de todos- Eu vou matar ela.
-Qualquer um que queira feri-la vai ter que passar pela montanha de metal que a protege, Wave, e você sabe disso Cosmina. Wave é um homem exemplar.
-E bonito- disse Cosmina.
-Não me importei em perguntar o motivo de tanto ódio contra Kurome... Agora eu já sei- disse Suzuka, com um sorriso sugestivo no rosto.
Os dias se passaram, e Dorothea alcançou as terras do império. Lembrava-se vagamente da sensação de entrar no palácio a primeira vez, e agora voltou a senti-la. As paredes eram altas, e a arquitetura imponente, estar dentro do palácio real era como estar em outro mundo, um mundo mais opressivo e colossal. Guardas em armaduras completas estavam em pé, em guarda como estátuas de aço, e o teto abobadado era tão alto que a sensação de insignificância atingiu o coração de Dorothea como uma adaga.
Suzuka, entretanto, já estava acostumada com aquele lugar, e seu rosto era nada mais que uma carranca de tédio. Suzuka não estava vestida com seus trapos habituais, estava, de certa forma, arrumada. Os cabelos escuros estavam presos em um rabo de cavalo e enfeitados com presilhas prateadas, vestia uma roupa branca, com um cinto dourado e frouxo na cintura, onde carregava Shambhala e os fragmentos de Shamshir, e tinha os cotovelos e antebraços protegidos por uma manopla acinzentada, com vários símbolos pintados de negro com esmalte, e o decote de sua roupa descia até a altura dos seios. Mas não era a beleza que atraia os olhares das pessoas para ela quando ela passava, era o seu olhar cruel, que transmitia a lembrança de que aquela não era apenas uma mulher, era uma dos Quatro Demônios Sanguinários, e o medo imposto por essa alcunha os fazia desviar o olhar antes que ela pudesse notar que estava sendo encarada. Desejada por alguns, temida pela maioria, aquela era a figura de Suzuka dentro da área Imperial, ainda que, quem atuasse com elas nas missões soubesse que Suzuka era muito diferente do que aparentava ser.
Dorothea, por sua vez, vestia apenas sua roupa habitual, sem nada de especial.
-Pensei que viria com a armadura vermelha- disse Suzuka- Ela caiu bem em você.
-Obrigada- Dorothea sorriu timidamente.
-Mantenha-se calada, fale apenas quando lhe for ordenado- instruiu Suzuka- E não tenha medo de Honest, ele é um amor de pessoa.
-Ele mandou chicoteá-la certa vez, pelo que me contou.
-E vai mandar novamente- Suzuka mordeu o lábio inferior- Ele não é um doce?
Depois de ser apresentada a Honest, ele a conduziu para o coração do palácio, para os aposentos reais.
-Meu filho dormia aqui- disse Honest, passando os dedos pela barba expeça, olhava para a cama, mas se um homem como aquele era capaz de sentir algo como tristeza, ou mesmo amor, a vida o havia endurecido o suficiente para não demonstrar. Dorothea imaginou se ele se importava com o filho e chegou a conclusão que não. Conhecia bem o coração dos homens, e o de Honest era vazio e seco- Mas acho que ele não vai mais precisar dele. É seu.
-Senhor... Não sei se posso aceitar.
-Mas não se engane criança- continuou- Terá essa regalia apenas porque preciso de seus serviços.
-Para que, exatamente?
-Quando chegar o momento lhe direi. Não se preocupe com isso por agora. Pelo seu estado, acho que precisa descansar.
Dorothea suspirou.
-Agradeço, meu senhor. Espero que possa ser útil.
Honest riu alto.
-Ora, por favor, alquimista. A humildade não combina com você, ouvi relatos sobre sua insubordinação, sobre sua dificuldade em respeitar as autoridades, e sobre sua capacidade de matar sem sentir remorso. Não precisa atuar dessa forma comigo- deu de ombros- Se você precisar se alimentar, sinta-se a vontade para descer até as masmorras e se saciar. Sei que usa Absordex...
Dorothea ergueu uma sobrancelha, surpresa com as palavras do primeiro ministro. Então o rosto de Suzuka veio a sua mente.
-Suzuka está nas masmorras?
O rosto de Honest se tornou sério.
-Ela está sendo punida pela falha. E planejo executa-la.
E Honest foi embora, sem dizer mais nem uma palavra.
-E então- disse Dorothea- Essa é a arma que consta em seus relatórios...
Estavam em uma sala no subterrâneo do palácio. Honest a havia guiado tão profundamente nas entranhas da terra que a arquitetura daqueles túneis já não era, nem de perto, como a do palácio, estavam no que parecia ser uma cadeira de cavernas iluminada parcamente por tochas nas paredes, o chão acabava abruptamente em um grande fosso, de onde uma enorme estrutura de pedra e aço se erguia fundida a terra e a rocha. Dorothea não identificou direito o que aquilo era, mas era assustador e impressionante pensar que algo tão colossal estava escondido nas entranhas daquele palácio. No centro, há pouco mais do que dez metros de onde estavam, uma pequena esfera de energia pulsava, como um coração, e era brilhante e dourada como a luz do sol, Dorothea não conseguiu olhar para ela por muito tempo.
-É impressionante- admitiu Dorothea, observando o painel a sua frente, onde desenhos mostravam o que parecia ser um tronco humanoide- Isso é... Uma armadura?
-Na verdade é uma fortaleza que anda- disse Honest, com o esboço de um sorriso nos dentes afiados- E esse é apenas um pedaço dela, a parte onde reside o seu núcleo, que está quase apagado nesse momento. Na verdade, acredito que todo o palácio será demolido quanto ela acordar.
-Acordar?
Honest sorriu.
-Pode-se dizer que ela está adormecida agora, e nesse estado, me é inútil.
-E acha que eu posso despertar isso? É uma Tengu, não sei se eu possuo conhecimentos o suficiente para...
Honest a calou com um movimento gestual.
- Eu posso acorda-la, não é isso que eu preciso que você conserte. Syura me contou tudo sobre você.
-Sobre o que, exatamente?- perguntou Dorothea, franzino o cenho.
-Sobre sua inteligência, sua sagacidade, sua capacidade de literalmente mudar a essência da própria terra- Honest colocou uma de suas mãos sobre o ombro de Dorothea, que, ao lado daquele homenzarrão, era pouco mais do que uma criança- Deixe-me lhe contar uma história. Havia um grande cientista, que estudava as Tengus, com a ambição de um dia recria-las, e, em certo ponto de sua vida, ele descobriu que isso era possível e iniciou vários projetos, mas ele ainda era jovem e limitado, de certa forma, e para ele conseguir entender que o mundo é muito mais do que aquilo que seus olhos eram capazes de enxergar, e que existem outras coisas, que muitos consideram ser magia, e que apenas com isso aliado a ciência ele seria capaz de recriar o feito dos ancestrais, era uma tarefa quase impossível , e ele foi morto prematuramente- suspirou- Mas seus estudos não foram perdidos, e então, uma bela alquimista decidiu terminar aquilo que ele começou, continuando do ponto onde ele parou, mas utilizando-se de seu conhecimento adquirido através de décadas e décadas de estudos das artes da alquimia e das artes místicas para complementar o trabalho, e o humilde primeiro ministro lhe deu tudo aquilo que desejava: Dinheiro; fama; escravos; terras, ou homens o suficiente para encher a sua cama todos os dias, ou mulheres, se assim preferir- Honest a encarou nos olhos- Se me ajudar, lhe ofereço tudo o que seu coração desejar.
Dorothea encarou Honest nos olhos, havia alguma coisa neles que era hipnotizante.
-Então, Dorothea, comecemos agora. Diga o que quer, qualquer coisa, e será atendida. Mesmo se não decidir me ajudar... Lhe dou esse presente: Um desejo, como boas vindas à Capital.
-Existe uma coisa que eu desejo, uma única coisa... - disse Dorothea, em um tom baixo, como se fosse uma confissão para si mesma.
-E o que é?
-É uma coisa que o senhor não pode me dar- A vida eterna, pensou. A atenção de Izou.
-Não ouso imaginar quem seja.
-Mas tem outra coisa... Suzuka.
-Quer mata-la você mesma?- Honest sorriu.
-Quero que a liberte, se for possível, ela salvou a minha vida, e eu lhe devo isso- e então, murmurou- Se liberta-la, juro pelos deuses vivos e mortos que eu o ajudarei.
-Lealdade. Aprecio essa característica. Será feito, querida Dorothea.
Dorothea desceu até a masmorra, e mesmo ao longe, conseguia ouvir o chicote encontrando violentamente a resistência da carne viva. Os estalidos, seguidos de gemidos altos, que Dorothea não conseguia distinguir serem de dor, prazer ou desespero. Quando chegou a porta da sala, encontrou Suzuka amarrada na parede, nua. O cheiro de suor, de sangue e úmidade fizeram a alquimista virar o rosto. Quem executava a ordem era uma mulher alta e forte, portadora de um chicote longo e fino, que parecia carregar uma espécie de energia que Dorothea não era capaz de reconhecer. Uma Shingu, talvez, ela pensou. A única arma capaz de ferir Suzuka.
Quando a viu entrar, a mulher simplesmente guardou o chicote e e virou. Suzuka olhou para cima, seu corpo tremia, sangrava, e ela parecia exausta. Não haviam forças para proferir uma só palavra, e quando Dorothea a apanhou no colo, como se fosse uma criança, Suzuka desmaiou.
-Então você podia pedir qualquer coisa para Honest, e pediu para que me libertasse?- Suzuka franziu o cenho. Estava deitada em uma cama, enquanto Dorothea administrava algumas poções em seu corpo ferido. As feridas se fechavam como mágica, sem deixar nenhuma cicatriz para trás.
-Ele ia executa-la, tive que ajudar- Suzuka se encolheu quando os dedos de Dorothea passaram por cima de um corte profundo em sua barriga- Acha que eu ia deixar você morrer?
-Ele ia?
-E não pense que fiquei feliz em gastar um desejo desse nível para salvar a sua vida. Fiz porque lhe devia isso. E agora não devo mais nada.
-Então eu acho que fico lhe devendo essa- Suzuka sorriu- Mas foi divertido, da mesma forma.
-Como tortura pode ser uma coisa divertida?
-Bem...
-Melhor- Dorothea a interrompeu- Não quero saber.
-Ora, Dorothea- Suzuka sorriu- De todas as coisas, nunca achei que uma assassina em série de mais de cem anos seria uma puritana.
-Não sou. Mas não vejo graça nesse tipo de...
-Fetiche?- Suzuka se sentou na cama. Dorothea desviou seu olhar. Suzuka estava pálida pela perda de sangue, mas mesmo assim, seu corpo era forte, e os músculos eram bem definidos, mas de nenhuma forma isso a deixava menos feminina, os cabelos negros escorriam livres sobre os ombros, e várias cicatrizes de combates anteriores manchavam sua pele alva. Dorothea se sentiu estranhamente atraída por ela, e não sabia dizer se o que a atraía era a sua aparência, ou o olhar lascivo- Pode usar as palavras corretas.
-Ah sim- disse Dorothea- Esse fetiche de... Apanhar.
-Mas você não precisa me bater, posso fazer outras coisas também... Se me deixar te agradecer...- Suzuka se aprumou a Dorothea, e segurou sua mão antes que ela passasse a poção por outro ferimento, este, menor. Seu toque era firme, e as mãos de Dorothea estavam trêmulas, e quando ela sentiu a respiração de Suzuka, quente, contra seu pescoço, sentiu um arrepio lhe percorrer o corpo. Não poderia negar que a desejava- Me deixe agradecer.
-Não, Suzuka, se afaste- ela disse, resistindo aos seus instintos, não porque não queria que aquilo acontecesse, mas porque faziam dias que não se alimentava de sangue humano. Quando a guerreira se aproximou o suficiente, Dorothea conseguiu ouvir o som de seu sangue circulando por baixo de sua pele, o som ritmado das batidas de seu coração, sabia que, se acuada, poderia ferir Suzuka- Eu não posso...
-Não pode? Ou não quer? São coisas diferentes- a mão de Suzuka escorregou em direção ao abdomen de Dorothea, e então, para o meio de suas pernas, seu toque era macio, gentil- Posso ser o que você quiser, fazer o que quiser... Pode me amarrar na cama, me fazer de escrava... Eu gosto disso e...
-Já chega!- disse Dorothea, se afastando. Havia algo em seus olhos que deixou Suzuka surpresa, não era raiva, ou mesmo desejo, era como um animal faminto olhando para uma presa indefesa, e por um momento Suzuka se deu conta que Dorothea poderia mata-la ali mesmo se assim desejasse- Se afaste de mim, você não tem ideia do que está fazendo.
Suzuka deu de ombros, se deitou na cama.
-Tem noticias de Izou, e de Cosmina?- disse Dorothea, voltando a cuidar dos ferimentos da companheira.
-Nossa. Essa pergunta matou o clima.
-Não tem clima nenhum, Suzuka. Não sabe foi é dificil para mim te ver naquela masmorra, coberta de sangue... E te trazer até aqui, te limpar... Te curar.
-Não sabia que se importava comigo a ponto de me ver ferida e isso te machucar.
-Não é por isso- Dorothea guardou a poção, e então cobriu Suzuka- O cheiro do seu sangue... Eu queria terminar o serviço.
Suzuka franziu o cenho.
-Nossa.
-Eu sou um animal- disse Dorothea- Não tem a ver com você...
-Não precisa se desculpar... Izou partiu essa manhã, se quer saber- informou Suzuka- Imaginei qual seria a melhor hora para lhe contar isso, e Cosmina, bem, está se divertindo pela capital, com uma escolta armada, é claro, para impedir as pessoas de agredi-la, ou ela de agredir as pessoas, ou de fazer as pessoas se agredirem, bem... Você entendeu.
Dorothea suspirou.
-Alguma ideia de para onde Izou foi?
-Não sei, mas tenho a impressão que essa foi a ultima vez que o veremos. Ele partiu.
Dorothea balançou a cabeça negativamente e se levantou. Viu alguns pergaminhos de Stylish que deixava sobre a mesa e no momento seguinte percebeu que lia as palavras, mas que não entendia nenhuma delas, não porque não soubesse o que significavam, mas porque sua mente estava em outro lugar.
-É uma pena- foi a única coisa que conseguiu dizer.
-Você já deveria esperar isso dele.
-Suzuka...
-Sim?
-Onde estão os outros três demônios?
-Pela capital, espalhados.
-E porque você não está com eles?
Suzuka sorriu.
-Eles não são tão interessantes quanto você, cara Dorothea.
Esdeath avançou a passos largos pelos corredores do palácio. Era a primeira vez que Dorothea a via daquele jeito, alta, bela e imponente, atravessando um longo corredor sozinha, enquanto os olhos de vários lordes a acompanhavam e não eram capazes de desviar dela, nem mesmo Dorothea, que a culpava por tê-la rejeitado, era capaz de não olha-la com admiração, e por um momento, foi incapaz de odiá-la.
-Majestade- disse ela- Retornei. Estou aos seus serviços.
O imperador, um rapaz de pouca idade, sorriu.
-Olá, grande general. É bom vê-la.
Esdeath, ainda de joelhos, olhou para todos ao seu redor com um sorriso indecifrável nos lábios. Então os olhos frios como lascas de gelo encontraram os de Dorothea, ela estava em pé no canto da sala. Esdeath conversou algo com o Imperador e com Honest, e quando o primeiro ministro dispensou todos da sala, Esdeath se aproximou da vampira.
-Lembro-me de você- disse Esdeath- É aquela mulher que causou um grande tumulto há algum tempo.
-Meu nome é Dorothea, general- disse ela, tentando encara-la nos olhos- Nos conhecemos em um período conturbado de minha vida.
Esdeath sorriu, então tocou o queixo de Dorothea e ergueu levemente o seu rosto, passando o polegar pelo lábio e expondo uma das presas afiadas.
-Absordex- disse ela- Interessante...
-Ela é minha convidada- disse Honest.
-É claro que é- disse Esdeath, se afastando- Acolheu-a debaixo de suas asas, Honest? Que eu bem me lembro, ela estava apodrecendo em uma masmorra, mas em algum momento ela escapou e fez uma grande bagunça em Albion.
A voz de Esdeath soou desafiante, havia algo escondido naquele semblante austero, alguma espécie de mágoa. Os guardas levaram a mão até o punho das espadas, e do outro lado, o jovem guerreiro que acompanhava a general levou a mão até a sua.
-E desde quando você se importa com a situação em Albion?- disse Honest, erguendo a mão ordenando aos seus homens para que se acalmassem.
-Porque eu me sinto cercada de idiotas- disse Esdeath- Lutei e venci em uma frente de batalha no norte, para saber que Budo perdeu do outro lado, lutei e venci, para saber que alguém fez um de nossos possíveis aliados declararem guerra ao Imperador. Seus generais são incompetentes, senhor, e depois de tudo, você acolhe uma criminosa como essa em seu palácio!
As palavras de Esdeath reverberaram pelo salão alto, e se perderam no silêncio fúnebre. Poucas pessoas no império tinham a ousadia de contestar Honest, e menos ainda se mantinham vivas depois de o fazerem, entretanto, Esdeath havia conquistado esse direito.
-Está questionando minha decisão, General?
-De manter Dorothea aqui? Estou.
-A sua raiva não é direcionada a ela- disse Honest- É direcionada as forças imperiais, e a seus comandantes, no geral.
Honest começou a andar, e lentamente foi até Esdeath .
-General, você é uma das mais valorosas mulheres em meu exército, e já perdemos muito nesse ultimo ano, peço para que não se preocupe tanto com questões tão... Irrisórias. Porque não tira um tempo de descanso?
-Está me dispensando?- disse Esdeath, com desgosto em sua voz- E quem você acha que vai cuidar da ordem na Capital?
-Nouken cuidará.
-Nouken?- Esdeath sorriu, e Honest percebeu que o piso abaixo das botas da general começava a ser envolvido por uma fina película de geada- Nouken passa mais tempo deflorando garotas inocentes na cidade baixa do que cuidado daquela patética Companhia Vermelha. Francamente, Honest, eu fico impressionada com o tipo de pessoas que você mantem ao seu redor.
-Posso dizer o mesmo sobre você, senhorita, uma vez que seus Jaegers estavam em Albion, e mesmo assim meu filho morreu- sorriu.
-Não era a missão deles proter um herdeiro inconsequênte.
Honest suspirou.
-Fale-me o que lhe aflige, Esdeath.
-Eu estou cercada de incompetentes, não importa o quanto eu me esforce para derrotar os inimigos, alguém sempre comete algum deslize. Eu concerto de um lado, e alguém destrói do outro! Estou cercada de homens e de guerreiros, e mesmo assim eu estou sozinha, Nouken, Budo, os Quatro Demônios, os comandantes imperiais, todos são incompetentes! Não servem nem para lamberem a sola da minha bota- Esdeath suspirou- As forças de Najenda crescem dia após dia, e seus guerreiros são poderosos, não podemos nos dar ao luxo de...
-Najenda- Honest sorriu- Então ela é a causa dessa perturbação em sua alma. Minha querida Esdeath... Está tudo sob controle.
-Não está.
-Acredite, dentro de pouco tempo tudo estará resolvido, e Najenda será sua, para que faça o que quiser com ela e seus guerreiros, darei a você a batalha que sempre desejou em toda a sua vida, e a vingança contra aqueles que a traíram- então Honest se aproximou do ouvido de Esdeath- Mas nunca, em hipótese alguma, me questione na frente do imperador novamente, ou terei que puni-la.
Esdeath o encarou friamente por alguns momentos, então deu de ombros e saiu da sala a passos largos.
-As vezes, Dorothea- disse Honest- Você precisa colocar as pessoas em seu devido lugar, não importa quem elas sejam, ainda existe uma hierarquia, mesmo que ela não esteja explícita. Isso serve para o senhor também, majestade.
Então Honest andou até Dorothea, e a guiou para fora da sala.
-Esqueci de perguntar. Tem alguma ideia de como deixar aquela arma ainda mais... Imponente?
-Bem... Sim- Dorothea sorriu- Eu chamo de Modo de Expurgo
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