Lourenço não tinha falado com o filho desde o dia anterior. Preferiu deixar a poeira baixar antes de abordá-lo devido ao estado em que havia chegado em casa. Nunca antes o tinha visto tão alterado, mas qualquer que fosse o motivo da briga entre ele e Michael, assim estava melhor. Tinha certeza que com o tempo Santiago esqueceria aquela bobagem de ser gay e voltaria a ser como antes.
— Santiago? — chamou ele, batendo na porta antes de entrar.
Como não houve resposta, Lourenço abriu a porta devagar, entrando com cautela. O que viu, porém, o deixou assustado. O quarto estava todo revirado, como se um furacão tivesse passado por ali. Sentado na cabeceira da cama, Santiago tinha o olhar vazio e uma expressão abatida, com fundas olheiras. Parecia ter passado a noite em claro, chorando.
— Você não foi tomar o café, já é tarde — disse ele, preocupado.
— Não estou com fome… — tornou ele com a voz inexpressiva.
Lourenço permitiu-se aproximar do filho. Queria tocá-lo, confortá-lo, dizer-lhe que tudo ficaria bem, mas sentia que algo havia se quebrado entre eles desde o tapa que lhe dera. Sabia que se fizesse menção de se aproximar mais, ele o repeliria. A verdade é que não sabia mais como lidar com o filho, e aquilo o feria profundamente.
— Santiago… você é um atleta, precisa se alimentar bem.
Santiago apenas lançou-lhe um olhar duro.
— E você não tinha um colégio para ver hoje? Não que eu me importe com isso, mas se não quer que eu perca o ano é melhor transferir logo a minha matrícula.
Apesar do tom agressivo do filho, Santiago tinha razão. Faziam quase duas semanas que ele não assistia às aulas e o prazo que Marcelo tinha dado para que ele encontrasse outra escola estava chegando ao fim. Precisava tomar uma decisão logo, mas o estado de Santiago o deixava sem saber o que fazer.
— Claro, vou resolver isso ainda hoje — ele disse de forma automática.
Como o filho não respondeu mais nada, Lourenço afastou-se até a porta do quarto. Porém, antes de sair, lançou-lhe um último olhar.
— Santiago, se você quiser conversar… estou aqui para te ouvir — ofereceu-se ele, meio desajeitado. Não se lembrava de ter passado por uma situação tão delicada desde quando a mãe do menino os tinha abandonado.
— Eu só quero que você me deixe em paz — falou Santiago, virando-se para o lado e fechando os olhos. — Preciso ficar sozinho.
Lourenço acatou a vontade do filho, deixando-o sozinho à contragosto. No entanto, não conseguiu parar de pensar em Santiago durante o resto do dia. Quando mais tarde parou o carro em frente ao novo colégio, ficou um instante sem sair do automóvel, pensando se trocá-lo de escola seria mesmo a melhor solução.
Ainda dentro do carro, observou a profusão de adolescentes que se aglomeravam no pátio durante o intervalo das aulas. Não eram diferentes dos de qualquer outra escola, mas dois deles chamaram sua atenção. Eram dois garotos da mesma idade que vinham caminhando de mãos dadas, o primeiro moreno, de cabelo curto e esguio, enquanto o outro era um pouco mais magro, de cabelos claros e lisos. Conversavam entre si e sorriam um para o outro como se estivessem perdidos em um mundo que era só deles. Lourenço não podia deixar de pensar que um daqueles garotos poderia ser Santiago e a ideia o deixava estranhamente desconfortável.
De repente, um homem de meia idade os interrompeu, cumprimentando os dois com um sorriso cordial e abraçando o garoto moreno. Enquanto conversavam descontraídos, Lourenço reparou que eles se pareciam muito, provavelmente pai e filho, o que o perturbava ainda mais. O homem apertou a mão do garoto loiro, despediu-se do filho e encaminhou-se para o portão de saída, deixando-os sozinhos novamente.
Antes que perdesse a coragem, Lourenço desceu do carro e correu para alcançar o homem antes que ele desaparecesse de vista. O homem ficou um pouco assustado com aquela abordagem intempestiva, e Lourenço viu-se obrigado a se desculpar.
— Desculpe chegar assim — disse ele, sorrindo para amenizar a confusão. — É que vi que você tem um filho neste colégio e estava querendo transferir o meu para cá também, só queria saber se você gosta do método de ensino daqui. A propósito, eu sou o Lourenço.
Vendo que se tratava apenas de um pai preocupado, o homem relaxou, retribuindo o sorriso.
— Ah, claro, eu sei o quanto está difícil arranjar um bom colégio hoje em dia, mas não tenho do que reclamar deste. O material é excelente e os professores têm muita didática, são todos muito atenciosos. E eu sou o Xavier, muito prazer — concluiu ele, estendendo a mão para Lourenço, que apressou-se em apertá-la.
— Que bom, Xavier. Fico feliz em saber que meu filho estará em boas mãos.
— Tenho certeza que vocês não vão se arrepender. E se precisar de alguma coisa, pode falar comigo, ficarei feliz em ajudar.
— Na verdade, tem uma coisa que eu queria falar com você, Xavier, mas estou meio sem jeito de entrar nesse assunto, a gente mal se conhece…
— Pode dizer. Às vezes, conversar com um desconhecido é a melhor opção.
— Está certo… é que eu vi o seu filho com aquele garoto…
— O namorado dele — disse Xavier, sem se abalar.
Lourenço o olhou admirado.
— Você diz isso com tanta tranquilidade. Parece muito bem resolvido com o fato dele ser… dele ser…
— Gay? E porque deveria ser diferente?
— Não me leve a mal, é que eu tenho um… um amigo que acabou de descobrir que o filho talvez seja gay e não está sabendo como lidar com isso.
— Um amigo? — ele o observou com olhos clínicos, sorrindo quando Lourenço confirmou com a cabeça. — Olha, se eu pudesse dar um conselho para esse seu amigo, eu diria para ele ficar o mais próximo do filho possível. Tentar entendê-lo, dar apoio, carinho.
— É que ele meio que já estragou a relação com o filho — disse Lourenço com tristeza. — Aquele garoto era tudo para ele, jogador de futebol e tudo, quando ficou sabendo foi um choque pra ele, acabou metendo os pés pelas mãos, agora o filho se recusa a conversar com ele, parece odiá-lo. Acho que é irreversível.
— Não acho que seja. Se esse pai ama esse filho como acredito que ame, caso contrário não estaríamos tendo essa conversa agora, tenho certeza que ele terá a paciência necessária para reconstruir essa relação. Esses garotos já sofrem demais com o preconceito da sociedade, não precisam disso dentro de casa também. Eles só querem se sentir acolhidos pela família, ter um porto seguro para se apoiar quando as coisas estiverem difíceis. Eles precisam de proteção, não de julgamento.
— Do jeito que você fala parece tudo muito simples.
— E é mesmo, as pessoas é que tem mania de complicar as coisas.
Lourenço assentiu, tocado pelas palavras de Xavier.
— Obrigado — disse ele sinceramente, apertando no ombro do homem. — Acho que era isso que meu amigo precisava ouvir.
— Imagine — tornou Xavier, sorrindo. — Espero que seu amigo consiga resolver as coisas com o filho.
— É o que eu espero também.
Lourenço acabou não entrando na escola. Depois da conversa com Xavier, estava ávido para encontrar Santiago novamente. Falaria com ele com calma daquela vez. O faria entender que ele estava do seu lado, não contra ele.
***
O quarto continuava bagunçado quando ele entrou e Lourenço fez uma nota mental para pedir à empregada que o arrumasse mais tarde. Santiago não estava por ali e por um momento ele teve medo de o que o filho tivesse feito alguma besteira. Mas então ouviu o barulho do chuveiro sendo ligado, suspirando aliviado.
Ansioso demais para esperá-lo do lado de fora, ele sentou-se na escrivaninha, observando os livros e papéis esparramados por ela de forma desordenada. Começou a arrumá-los em uma pequena pilha, quando um bolo de papéis chamou sua atenção.
Era formado por uma série de folhas de caderno arrancadas e estavam todas amassadas, algumas tinham sido rasgadas e coladas novamente com fita transparente. Ele as folheou com cuidado, logo percebendo que se tratavam de cartas, aparentemente anônimas. Porém, ao lê-las, ficava claro quem as tinha escrito.
Por um instante, Lourenço teve receio de continuar lendo. Talvez estivesse invadindo a intimidade do filho e tinha a noção de que poderia não gostar do que encontraria naquelas linhas. Mas o desejo de compreender Santiago falou mais alto e ele prosseguiu na leitura. Sentia que estava entrando em um lugar profundo de sua alma.
As primeiras cartas continham apenas algumas frases escritas de forma desajeitada, mas à medida que avançava, percebia que elas iam ficando maiores, revelando detalhes sobre o filho que ele jamais imaginaria. Santiago estava se abrindo para o seu correspondente, expondo seus medos e suas incertezas de forma franca, como ele nunca antes havia conversado com o pai. Lourenço então se lembrou de algo dito por Xavier: “às vezes desabafar com um desconhecido é a melhor opção”. Ele podia perceber por aquelas cartas o quanto Santiago estava se sentindo solitário, precisando ser acolhido. O filho então havia encontrado naquele correspondente anônimo o suporte de que precisava para ser ele mesmo. O suporte que o próprio pai o havia negado.
Enquanto acabava de ler, uma lágrima solitária escorreu por sua face. “Você não precisa ser afeminado para ser gay” — dizia um trecho das cartas. — “basta gostar de garotos. Todo o resto não muda, você continua sendo você.” “Se é assim, então talvez eu seja mesmo gay”. Agora ele sabia como tudo tinha acontecido. Santiago havia se descoberto através daquelas cartas, devia ter escondido aquilo por meses até o dia em que explodiu no Le Kebek.
Lourenço estava tão absorto naquelas palavras que não ouviu o chuveiro sendo desligado. Só percebeu que o filho tinha terminado o banho quando Santiago já o encarava com raiva, ainda pingando e enrolado com uma toalha branca.
— O que está fazendo? — disse ele, irritado e arrancando o maço de folhas das mãos do pai. — Você não podia ter lido isso, é particular!
Lourenço secou a lágrima rapidamente, encarando o filho ainda abalado.
— Santiago… eu só estava tentando entender você.
— Pois se não entendeu até agora, não precisa mais entender.
— Você não precisa me tratar como um inimigo, filho. Tudo o que fiz até agora foi porque achei que fosse para o seu bem.
— Como pode ser para o meu bem? — cortou ele, revoltado. — Você me colocou nesse castigo idiota, sem poder sair de casa, falar com os meus amigos, me fez perder um monte de aulas e ainda quer me mudar de escola sem se importar com o que eu penso sobre isso. Nem futebol eu posso jogar mais, e tudo isso porque? Só porque você não consegue aceitar que seu filho seja gay.
— Eu posso ter tomado algumas atitudes erradas, mas estou tentando consertar agora. Eu não tirei você do Sapiência.
Aquilo surpreendeu Santiago, mas ele ainda estava longe de facilitar as coisas para o pai.
— Legal, mas isso não importa mais. Não ligo se vou continuar estudando lá ou não.
— Santiago, por favor — suplicou Lourenço, fazendo menção de tocá-lo. O filho, porém, deu um passo para trás, recusando-se a encará-lo. — Eu sou seu pai, estou tentando me aproximar de você. Sinto falta das nossas conversas, de quando éramos amigos.
— Isso foi antes, quando você não sabia quem eu era de verdade.
Lourenço parou por um instante, olhando para os próprios pés.
— Você gosta mesmo desse garoto Michael, não é? — dizer aquilo em voz alta ainda era muito difícil, mas ele tinha que encarar a realidade se quisesse mesmo recuperar sua relação com o filho.
— Eu amo o Michael. Mas isso também já não importa — suspirou ele, sentando-se na cama, desiludido. — Não vamos mais ficar juntos…
Lourenço assentiu devagar. Era a deixa para que ele o deixasse sozinho. No entanto, já na entrada da porta, ele fez uma última tentativa para animar o filho:
— Sabe, hoje vai ter aquela pelada do pessoal do bairro que você gosta. Todos estão esperando que você vá.
— Pensei que não pudesse sair de casa.
— Você pode, não está mais de castigo.
Santiago o encarou, surpreso, mas sem muita animação.
— É melhor não. Não tô afim.
Ver a expressão de tristeza em sua face o deixava arrasado, mas Lourenço preferiu não insistir mais. No entanto, mais tarde quando não conseguia dormir pensando na situação de Santiago e em tudo o que passaram nos últimos dias, ele finalmente entendeu algo valioso: ele podia aceitar o fato do filho ser gay. Ele só não podia aceitar o fato dele ser infeliz.
Diante dessa nova revelação, lentamente uma ideia foi se formando em sua mente. Se seu plano fosse bem sucedido, talvez Santiago o perdoasse. Mais que isso, talvez ele conseguisse recuperar o amor do filho.
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