Uma sensação de fria umidade percorreu a testa de Jensen, levando-o a um estado de semiconsciência. Estado que trouxe consigo uma série de perguntas: quem, o quê, quando, por que, onde? O cheiro de mofo do travesseiro respondeu à última.
Acampamento. Ainda no acampamento.
A sobrecarga emocional acumulada nos últimos dias era quase insuportável. Ele fez um esforço para abrir os olhos e viu Ruth sentada aos pés da cama. O cabelo ruivo da líder caía solto sobre os ombros e um ar de preocupação sombreava seu rosto, escurecendo seus olhos castanho brilhantes.
— Ele está acordado? — a grave voz masculina, bem conhecida, ecoou nos ouvidos de Jensen, despertando outros ecos ao redor de sua cabeça. Olhou à esquerda.
Droga!
Ruth passou de novo o pano úmido em sua testa.
— Ei, está me ouvindo?
Jensen não ouvia nem olhava para a líder do acampamento. Olhava para... Jared Padalecki, matador de gatos nas horas vagas. E protetor de garotos contra valentões — sussurrou o inconsciente de Jensen.
Mas por que seu consciente insistia em defender Jared? O que estava acontecendo?
Jared se inclinou como se fosse tocá-lo. Jensen, num movimento brusco, tirou o pano da testa.
— O que houve? — e, de repente, se lembrou. O fantasma. O sangue. Muito sangue. Outra informação perturbadora lhe ocorreu. Ele devia ter morrido. Aquilo era inquietante.
— Você desmaiou — disse Jared, sua voz poderosa enchendo o cubículo e fazendo-o parecer ainda menor.
Ele precisava repetir o óbvio? E por que ele estaria ali?
Olhou para Ruth.
— Acontece, às vezes — disse a líder. — Quando os fantasmas se aproximam demais.
— Estou bem, agora — levantou-se, mas o quarto parecia girar em torno de seu próprio eixo. Girava e girava. Jared segurou-o pelo cotovelo. Um toque firme, mas que não chegava a machucar. Um toque ardente, que fez seu braço formigar e sua cabeça ficar ainda mais aérea. Mas pelo menos as coisas pararam de rodopiar. Seu primeiro impulso foi sair correndo, mas, com medo de que isso parecesse descontrole, fez um esforço para ficar calmo. Sem dúvida, se pudesse contar suas batidas cardíacas como Osric, saberia que estava simplesmente aterrorizado.
E, por falar em Osric, onde... Olhou para a porta. Osric e Jason estavam lá, um ao lado do outro, observando-o como se ele fosse a diversão da noite. Que desgraça! Imaginou os dois saindo em disparada de seu esconderijo — pois tinha a vaga lembrança de ter ouvido passos apressados — para encontrá-lo estendido no chão. Mas quem o pusera na cama?
Desviou o olhar dos colegas de alojamento e concentrou-se em Jared. Será que tinha sido ele? Será que o tinha pegado no colo? Seu coração começou a bater ainda mais rápido. Percebeu então que ele continuava segurando seu braço.
— Estou bem — murmurou Jensen, tentando se soltar.
Ele o largou, um dedo de cada vez, como se temesse que ele voltasse a cair. E antes que o último dedo se soltasse, Jensen notou que ele o olhava de cima a baixo.
Embora seu short não fosse ousado, ele tomou imediatamente consciência de que estava com abdômen desnudo. Como diria Chris seu abdômen trincado estavam querendo dizer “alô” com mais entusiasmo do que o normal.
Jensen afastou-se um pouco e cruzou os braços diante do peito.
— Eu gostaria de conversar a sós com Jensen — pediu Ruth a Jared, que não parava de olhá-lo, embora seu olhar tivesse migrado do abdômen para o rosto com fria indiferença.
Ele assentiu, mas arqueando de leve as sobrancelhas negras. Portanto, continuava tentando lê-lo, certo? Mas agora ele se sentia aliviado, sabendo que Jared não conseguiria. Nesse momento, outra lembrança do passado veio à tona: Jared Padalecki fazendo aquele movimento de sobrancelhas quando ele era criança. Estaria, já na época, tentando lê-lo? Esse pensamento trouxe consigo a pergunta que vinha martelando em sua cabeça desde que o vira pela primeira vez no acampamento.
Jared se lembrava dele?
— Terminaremos nossa conversa amanhã — disse Ruth a Jared, como que para dispensá-lo.
— Tudo bem — concordou ele, sorrindo para Ruth. E saiu. Osric e Jason se afastaram da porta para lhe dar passagem. Jensen não deixou de perceber os olhares pouco amistosos que Osric e Jared trocaram. Será que Osric tinha se aborrecido com Jared por ele ter contado a Ruth a aparição súbita de seu primo Chan no acampamento? Provavelmente.
— Feche a porta — pediu Ruth quando Jared já estava do lado de fora.
Jensen olhou de novo para a líder, temendo ser castigado por... Por quê? Por ter desmaiado? Ou teria Jared contado a ela sobre Chan e agora Jensen estava em apuros por não ter contado antes?
— Não precisa ter medo de Jared— disse Ruth.
Jensen estudou-a.
— Você também consegue ouvir as batidas do meu coração?
Ruth sorriu.
— Leio emoções, não batimentos cardíacos. Assim, pude ler o medo em seu rosto, que ficou branco como papel ao vê-lo.
Jensen quase lhe contou tudo o que sabia de Jared, mas preferiu ficar calado. Poderia parecer fofoca. Em vez disso, perguntou:
— Por que ele veio aqui?
— Estava no escritório quando Jason apareceu para me chamar.
Jensen olhou para o relógio; era quase uma da manhã. Que Jared e Ruth estariam fazendo numa hora dessas? Sem dúvida, a líder do acampamento era mais velha, mas não muito.
— Você e ele são... Próximos?
— Depende de como você interpreta essa palavra — Ruth franziu a testa.— É a terceira vez que ele vem aqui. Ele nos ajuda a resolver algumas coisas e está se preparando para trabalhar conosco no próximo ano. Mas isso é tudo — em seguida, perguntou: — O que aconteceu esta noite?
Jensen engoliu em seco. Até que ponto ele poderia se abrir?
— O fantasma apareceu de novo, não foi? — perguntou Ruth em meio ao silêncio hesitante.
Jensen assentiu, embora quisesse desesperadamente negar.
— Foi, mas Jason e Osric disseram que pessoas meio atrapalhadas ás vezes dão a impressão de não ser humanas. Então talvez eu não tenha nenhum dom e o fantasma seja apenas muito poderoso, como você disse que acontece de vez em quando. Ou talvez eu tenha um tumor no cérebro.
— Duas possibilidades muito remotas — disse Ruth, com um sussurro. —Não acha?
— Talvez. Mas elas existem — insistiu Jensen. — Quero dizer, como você esclareceu, quase sempre a capacidade de ver espíritos é... Hereditária. Um dos meus pais, portanto, deveria ter dons.
— Nenhum deles... Já deu sinais de ser diferente?
— Não. Nunca — mas logo reconsiderou a natureza fria da mãe. Isso seria um sinal de que ela é “diferente”?
— Eu disse também que, em raras situações, uma geração não é sobrenatural.
— Conheci meus avós paternos e maternos. A maioria das pessoas não sabe quando... Quando não é humana?
— Muita gente sabe, mas... — Ruth olhou-o com certo desapontamento e cruzou as mãos sobre o colo. — Acho que deve trabalhar isso enquanto estiver aqui.
— Trabalhar como?
Ruth se levantou.
— Todos aqui procuram alguma coisa. Às vezes, respostas. Creio que sua busca deverá se concentrar em descobrir se é ou não completamente humana. E se for mesmo uma de nós, como suspeito, terá também de decidir se usará seus dons em benefício de outras pessoas ou lhes dará as costas.
Jensen tentou pensar na possibilidade de um de seus pais não ser humano e compreender o que ele estava passando. Mas já não teriam lhe contado? Ruth pousou a mão no ombro de Jensen.
— Agora, tente dormir um pouco. Amanhã será um dia cheio.
Jensen concordou com um aceno de cabeça e acompanhou com o olhar a líder enquanto ela se dirigia para a porta. Então, lhe ocorreu a pergunta:
— Como... Como encontrarei as respostas? Não posso simplesmente perguntar aos meus pais se eles veem fantasmas. Pensariam que fiquei maluco.
Ruth se virou.
— Mas pode ser que um deles lhe conte a verdade.
Jensen balançou a cabeça.
— Mas, se tudo isso for um grande equívoco, não ia adiantar nada. Continuariam insistindo para que eu fosse à psicanalista. Se eu começar a falar de fantasmas, talvez até me internem.
— A busca é sua, Jensen. Só você pode decidir como encaminhará as coisas.
Na manhã seguinte, Jensen e Jason foram tomar café juntos. Osric já tinha saído quando Jensen acordou. Quando perguntou sobre Osric, Jason disse que os vampiros às vezes se reúnem antes do amanhecer para realizar rituais.
— Que tipo de rituais? — quis saber Jensen.
— Não sei exatamente, mas suponho que tenham a ver com beber sangue —Jensen comprimiu o estômago com uma das mãos, lamentando ter feito a pergunta.
Sem dúvida, a sensação ruim podia se dever em parte ao fato de ter dormido pouco. Mas também, é claro, à ideia do sangue, que lhe causa enorme repulsa. Ver aquela coisa vermelha nos copos, durante o jantar da ultima noite, tinha sido demais para ele. Na melhor das hipóteses, pelo menos Jensen poderia perder alguns quilinhos durante o verão.
Caminharam em silêncio durante alguns minutos.
— Dormiu bem? — perguntou Jason finalmente, embora Jensen soubesse o que o colega de alojamento queria dizer. Ou seja, você está inteiro, então o que aconteceu para desmaiar?
Jensen decidiu ignorar as entrelinhas e respondeu à pergunta tal como havia sido formulada.
— Muito bem — disfarçou, ciente de que as mentirinhas funcionavam com Jason, mas não com Osric.
Na verdade, Jensen havia passado a noite medindo o teto e analisando o que Ruth dissera a respeito de sua busca. Não importava como abordasse o problema, parecia impossível descobrir um jeito de perguntar aos pais se eles não eram totalmente humanos. Entretanto, ele podia pensar em muitas outras perguntas que gostaria de fazer sobre si mesmo. Como, por exemplo: se sou sobrenatural, a que espécie pertenço? E, se não sou um de vocês, por acaso terei um tumor no cérebro?
Jensen não sabia o que podia ser pior. Então, algo revelador lhe ocorreu. Quem sabe se, obtendo respostas a essas perguntas, não descartaria a possibilidade de ele ser qualquer coisa que não fosse humano? Não era o melhor plano, mas talvez fosse um bom começo. E precisava começar de algum ponto.
— Você não parecia nada bem ontem à noite — observou Jason. De fato.
Quando Jensen finalmente adormeceu, vieram os sonhos. Sonhos malucos, estranhos, com Jared Padalecki e ele. Estavam nadando. Os dois seminus. Tinha acordado sem fôlego, tremendo. Tremendo como Daneel o fazia tremer depois de se beijarem por muito tempo. Como seu corpo podia traí-lo dessa maneira, fazendo-o achar Jared desejável? Não que ele fosse deixar seu corpo assumir o comando. Sabia que podia controlar seus desejos. Tinha conseguido deter Joseph, mesmo quando essa era a última coisa que desejava. Isso fez com que estabelecesse outra meta. Não apenas procuraria descobrir se era humano como faria tudo para não ficar muito perto de Jared.
— A noite foi tranquila — mentiu de novo.
— Não acredito em você, mas vamos deixar assim por enquanto — mirando olhou para o outro lado. — Alerta de vampira esperta e muito gata à esquerda! —sussurrou, mudando totalmente de conversa.
— O quê?
— A loira usando regata florida — sussurrou Jason de novo. — O que eu não daria para ficar com ela!
— Pensei que não gostasse de vampiras.
— Nunca disse isso. E se dissesse, isso não se aplicaria a vampiros do sexo feminino.
Jensen não estava nem aí com vampiras muito gatas e a última coisa em que pensava no momento era sair com alguém, mas ainda assim deu uma olhada. Não viu ninguém.
— Onde?
— Ali — disse Jason, acenando com a cabeça na direção oposta.
— Então quis dizer direita, não esquerda.
— Direita, esquerda, nunca sei direito. Sou disléxico, lembra? Mas ela é uma graça. Talvez eu descubra seu nome na reunião de hoje da Hora do Encontro com os Colegas de Acampamento.
A garota loira conversava com um grupo de amigos. Jensen se lembrava dela, mas não do seu nome. A estatura e o porte lembravam Laura, que não era o tipo de Jensen. Especialmente depois do que tinha acontecido na última noite.
— Você está bem mesmo? — perguntou Jason depois de passarem grupo de garotas. — Parecia fora de si ontem à noite. Sua aura estava esquisita.
— Estou bem — e, não desejando mais falar sobre o assunto, indagou: —Você é realmente disléxico?
Jason não respondeu logo.
— Sou. E, segundo minha família, é algo que eu pedi — seu tom de voz perdeu a leveza que o caracterizava.
— Então, na sua família, todos são bruxos?
— Sim, e mamãe também pode ser um osso duro de roer.
— Todas as mães são, não é?
— Talvez — suspirou Jason. — Não que eu a censure. Decepcionei minha família por muito tempo.
— Como assim? — perguntou Jensen.
— Eu sou o próximo da lista a ocupar o cargo de Alto Sacerdote. Mas, antes de receber o título, preciso fazer alguns testes. E testes não são meu forte. Mas minha família poderá perder seu lugar no grupo caso eu não seja aprovado.
— E por que tem que ser você? Por que não pode ser outra pessoa?
Jason suspirou de novo.
— Não é assim que funciona. Se não for eu, a honra passará a ser de Steve Carslon.
— Uau, tudo menos deixar que os Carslon passem vocês para trás! — brincou Jensen, para que Jason se sentisse melhor.
— Isso aí — o tom de Jason indicava que a tentativa de Jensen falhara.
— Sinto muito — disse Jensen. — Mas do que vai precisar para passar nos testes?
— Apenas superar a dislexia. O que é, basicamente, impossível. Ah, olhe para a esquerda... Quer dizer, para a direita. Sua gatinha vidrado em abdômen está aqui. E está corando. Deve ser péssimo para o ego dela ter sido escorraçada por você daquela maneira.
— Assim espero — olhou para Laura, que estava mesmo com o rosto muito vermelho.
Ótimo.
— Não contou a Ruth sobre isso, contou? — Jason parecia preocupado.
Sem dúvida, simpatizava com os bobalhões.
— Não — respondeu Jensen, em tom irritado. — Mas contarei caso ela me apronte de novo — será que Laura tinha super audição? Se tivesse, ótimo.
Estavam quase no refeitório, depois de terem passado pelo escritório do acampamento, quando os dois sujeitos de terno preto do dia anterior saíram às pressas pela porta. Jensen diminuiu o passo para estudar a linguagem corporal deles.
Não estavam nada contentes. Vendo-os caminhar apressados para o estacionamento, alimentou a esperança de que sua visita tivesse algo a ver com o fechamento do lugar.
Então, o mais alto se deteve e olhou para trás. Ficou ali parado, mirando Jensen e arqueando as sobrancelhas. Inclinou-se para o outro e cochichou alguma coisa. Em seguida, continuaram a andar. Na direção de Jensen.
Droga!
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